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04 fevereiro 2010

ANOTAÇÕES SOBRE O NOVO REGIME DA SÚMULA VINCULANTE

Parte 2


Elias Gazal Rocha

Procurador do Estado do Rio de Janeiro e Advogado. Mestrando em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.



III – A Emenda Constitucional Nº. 45, de 2004 e a Lei Nº. 11.417, de 19 de dezembro de 2006


Nesse cenário, o advento da Emenda Constitucional no 45, de 2004 só fez reafirmar e ampliar a força das decisões do Supremo Tribunal Federal, para além, até, dos processos puramente objetivos.

Isso ocorreu porque, já não bastasse todo o arsenal já disponível ao Supremo, outorgou-se-lhe, ainda, o poder de editar proposições com efeito vinculante − as quais, embora enraizadas no controle difuso, ganharam eficácia igual, ou maior até, que as decisões emanadas no próprio controle abstrato.

Há autores, inclusive, como André Ramos Tavares 18, que entendem que a sistemática dos enunciados com efeito vinculante caracteriza nova modalidade de processo objetivo típico, a exemplo das já previstas para processamento da ação direta de inconstitucionalidade, da declaratória de constitucionalidade e da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Defendendo esse ponto de vista, destacam as seguintes disposições da nova lei: (i) possibilidade de atuação ex officio do Supremo Tribunal Federal na edição, cancelamento ou revisão desses enunciados (art. 2º); (ii) manifestação prévia do Procurador-Geral da República, nas propostas que não as de sua própria iniciativa (art. 2º, §2º); e (iii) previsão da figura do amicus curiae, nos casos considerados pertinentes (art. 3º, §2º). M as, ainda que de processo objetivo típico não se trate, há consenso entre os doutrinadores quanto ao fato de que o advento das proposições de efeito vinculante consolida a “ponte” que o Supremo Tribunal Federal vem construindo do controle difuso para o controle abstrato de normas 19, reforçando, cada vez mais, a sua posição de Corte Constitucional.

Como seja, por conta das alterações trazidas pela Emenda no 45, de 2004, o Supremo Tribunal Federal pode editar20 enunciados com efeito vinculante, sobre matéria constitucional que esteja suscitando reiteradas decisões, sendo-lhe permitido fazê-lo de ofício ou mediante provocação de certos legitimados, desde que por decisão de 2/3 de seus integrantes (8 Ministros).

Após a pertinente publicação, essa nova modalidade de enunciado terá efeito vinculante em relação a todo o Poder Judiciário, inclusive ao próprio Supremo, por seus órgãos fracionários e Ministros, em suas decisões singulares 21. Atingirá, igualmente, todo o Poder Executivo, dos três níveis federados 22, em suas administrações direta e indireta. Alcançará, até mesmo o Poder Legislativo, que ficará vinculado à decisão da Corte Suprema, quando no exercício das suas funções atípicas, isto é, administrativas e judicantes.

Vale registrar que, para alguns estudiosos, o Legislativo estaria vinculado até mesmo no exercício da sua função típica, de legislar, conforme seja a amplitude da interpretação fixada pela Suprema Corte. O Min. Gilmar Ferreira Mendes, quando ainda era Consultor Jurídico da Secretaria Geral da Presidência da República, elaborou estudo que serviu de base à Proposta de Emenda Constitucional no 130, de 1992, referida no Capítulo II, no qual externou o seguinte pensamento:

“A declaração de nulidade de uma lei não obsta à sua reedição, ou seja, a repetição de seu conteúdo em outro diploma legal. Tanto a coisa julgada quanto a força de lei (eficácia erga omnes) não lograriam evitar esse fato. Todavia, o efeito vinculante, que deflui dos fundamentos determinantes (tragende Gründe) da decisão, obriga o legislador a observar estritamente a interpretação que o tribunal conferiu à Constituição. Conseqüência semelhante se tem quanto às chamadas normas paralelas. Se o tribunal declarar a inconstitucionalidade de uma Lei do Estado A, o efeito vinculante terá o condão de impedir a aplicação de norma de conteúdo semelhante do Estado B ou C (...)”23

Essa linha de entendimento é compartilhada por Rodolfo de Camargo Mancuso, em boa medida. Em obra clássica, recém-atualizada à luz da Emenda no 45, de 2004 e Lei no 11.417, de 19 de dezembro de 2006, aquele jurista assim se manifestou:

“Assim, um projeto legislativo, ao passar, v.g., pela Comissão de Constituição e Justiça, será, também, avaliado quanto à sua conformidade − formal ou material − em face de um enunciado vinculativo do Supremo Tribunal Federal existente sobre a matéria, e, conforme o resultado, terá prosseguimento, será reformulado ou mesmo arquivado. Até porque, a norma promulgada em assimetria com o conteúdo de súmula vinculante virá a ser, oportunamente, aplicada, ou por um juiz, num caso concreto, ou por um agente público, na relação com o administrado, e tanto a decisão judicial quanto o ato administrativo poderão vir a ser objeto de reclamação que, acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, levará à cassação da decisão judicial ou à anulação do ato administrativo (Constituição Federal, §3º do art. 103- A; Lei 11.417, de 19 de dezembro de 2006, §2º do art. 7º). É assim que o Legislativo, a nosso ver, pode ser alcançado, indireta ou reflexamente, pelos enunciados vinculativos do Supremo Tribunal Federal.”24

Alexandre de Moraes, invocando a doutrina de Domingo Garcia Belaunde, Francisco Fernandez Segado, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, também se mostra adepto dessa linha de pensamento:

“Entendemos que os efeitos vinculantes aplicam-se inclusive ao legislador, que não poderá editar nova norma com preceitos idênticos aos declarados inconstitucionais, ou, ainda, norma derrogatória da decisão do Supremo Tribunal Federal; ou, mesmo, estará impedido de editar normas que convalidem os atos nulos praticados com base na lei declarada inconstitucional.”25

Exemplo deste último (e mais sério) alcance da vinculação parece já ter sido antecipado pelo recente Enunciado no 2 − comentado mais à frente, de forma detalhada −, que dispõe que “é inconstitucional a lei ou ato normativo estadual ou distrital que disponha sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias”. A redação dessa proposição sugere que o Supremo Tribunal Federal teria subtraído de todos os entes legislativos estaduais e do Distrito Federal (e, mesmo, dos municipais, sequer mencionados na redação do enunciado) qualquer possibilidade de legislar, validamente, sobre aquela matéria, por ser ela de competência exclusiva da União.

Embora assim pareça, a Suprema Corte manteve, até aqui, em seus demais julgamentos, o entendimento de que o efeito vinculante não alcança o exercício da função legislativa típica, como ilustra o seguinte acórdão:

“Inconstitucionalidade. Ação Direta. Lei Estadual. Tributo. Taxa de Segurança Pública. Uso Potencial do Serviço de Extinção de Incêndio.
Atividade que só pode sustentada pelos impostos. Liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal Edição de Lei Posterior, de outro estado, com idêntico conteúdo normativo. Ofensa à autoridade da decisão do Supremo Tribunal Federal. Não caracterização. Função Legislativa que não é alcançada pela eficácia erga omnes, nem pelo efeito vincunlante da decisão cautelar na ação direta. Reclamação indeferida liminarmente.
Agravo Regimental Improvido. Inteligência do art. 102, § 2º, da Constituição Federal, e do art. 28 parágrafo único, da Lei Federal n.º 9.868, de 10 de novembro de 1999. A eficácia geral e o efeito vinculante de decisão, proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em ação direta de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal, só atingem os demais órgãos do Poder Judiciário e todos os do Poder Executivo, não alcançando o Legislador, que pode editar nova lei com idêntico conteúdo normativo, sem ofender a autoridade daquela decisão.”26

Mesmo o Min. Gilmar Ferreira Mendes parece ressalvar o seu entendimento, exposto acima quanto aos limites subjetivos dos enunciados vinculantes, em vista das alterações trazidas pela Emenda Constitucional no 45, de 2004:

“Os limites subjetivos estão expressamente definidos no texto constitucional. Nos termos do art. 103-A, caput, da Constituição, estão submetidos à súmula vinculante do Supremo Tribunal os demais órgãos do Poder Judiciário e administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
Vê-se, claramente, que o legislador constituinte excluiu do âmbito normativo do efeito vinculante o Poder Legislativo enquanto exercente de atividade legislativa. É claro que o Poder Legislativo quando praticar atos administrativos públicos (prática de atos administrativos e exercício de atividade administrativa pelos órgãos do Poder Legislativo) estará submetido ao estabelecido na súmula vinculante.
Essa opção do legislador constituinte explicita também que uma das formas adequadas de renovar a discussão sobre o conteúdo é a eventual promulgação de lei em sentido contrário ou que altere o objeto sobre o qual a súmula foi desenvolvida.”27

Vale registrar, também, que a redação (praticamente exaustiva) do art. 103-A, introduzido pela Emenda no 45, de 2004 na Constituição Federal de 1988, suscitou relativo debate à época de seu início de vigência, quanto a ser, ou não, auto-aplicável28. Todavia, a subseqüente Lei no 11.417, de 19 de dezembro de 2006, regulando o procedimento para elaboração dos enunciados com efeito vinculante, pôs fim a qualquer dúvida que ainda pudesse haver nesse tópico.

Primeiramente, a nova lei ampliou o rol dos legitimados ao procedimento de elaboração desses enunciados, da seguinte forma:

“Art. 3º. São legitimados a propor a edição, a revisão ou o cancelamento de enunciado de súmula vinculante:
I - o Presidente da República;
II - a Mesa do Senado Federal;
III - a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV - o Procurador-Geral da República;
V - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VI - o Defensor Público-Geral da União;
VII - partido político com representação no Congresso Nacional;
VIII - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional;
IX - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
X - o Governador de Estado ou do Distrito Federal;
XI - os Tribunais Superiores, os Tribunais de Justiça de Estados ou do Distrito Federal e Territórios, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais e os Tribunais Militares.
§1º. O Município poderá propor, incidentalmente ao curso de processo em que seja parte, a edição, a revisão ou o cancelamento de enunciado de súmula vinculante, o que não autoriza a suspensão do processo.”

Adicionalmente, a Lei no 11.417, de 19 de dezembro de 2006 previu a manifestação prévia do Procurador-Geral da República e a possibilidade de intervenção do amicus curiae, como já se viu acima. Fez, ainda, em seus arts. 8º e 9º, alguns acréscimos à legislação referente ao processo administrativo federal, de forma a adaptá-lo à previsão de responsabilização − nas áreas administrativa, civil e/ou penal − dos integrantes da Administração Pública que, porventura, se recusarem a acatar as disposições de qualquer enunciado com efeito vinculante.

Outro ponto digno de nota é a possibilidade, prevista no art. 4º da Lei no 11.417, de 19 de dezembro de 2006, de o Supremo modular o efeito vinculante dessa nova espécie de enunciados. Em outras palavras: embora, como regra, produza efeitos imediatamente após sua publicação29, o enunciado pode ter sua eficácia “temperada” pelo Supremo Tribunal Federal, de forma a só se aplicar, por exemplo, a partir de certo momento do tempo, ou para certas pessoas ou regiões geográficas. Há, portanto, além da possibilidade de restrição temporal, previsão também para modulação material da vinculação:

“O legislador estabeleceu aqui a possibilidade de que haja outro tipo de restrição, além do temporal. Por razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público, pode ser restringida a eficácia vinculativa da súmula a pessoas ou a regiões. Pode o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, estabelecer que os efeitos vinculantes de certa súmula só atinjam União e Estados Federados e não municípios. Ou só municípios com população acima de determinado número de habitantes.Evidentemente, sempre tendo como pano de fundo o excepcional interesse público.”30



Vale ressaltar, ainda, sobre as inovações da Lei no 11.417, de 19 de dezembro de 2006, que a simples proposta de elaboração de um novo enunciado com efeito vinculante não autoriza a suspensão de processos em curso, que versem sobre a matéria que se pretenda uniformizar31. Nesse ponto, a nova lei diverge expressamente da legislação correlata, como a Lei no 9.868, de 10 de novembro de 1999, que trata da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade (art. 21), a Lei no 9.882, de 3 de dezembro de 1999, que trata da argüição de descumprimento de preceito fundamental (art. 5º, §3º) e o novo art. 543-B, §1º, do Código de Processo Civil, que trata da repercussão geral, novo pressuposto de admissibilidade dos recursos extraordinários dirigidos à Suprema Corte.

Face à nítida diferença entre as disposições legais supracitadas, nos parece tratar-se do chamado silêncio eloqüente da norma, não cabendo, portanto, ao Supremo Tribunal Federal determinar a suspensão do andamento de processos pelo só fato de se ter aventado hipótese de confecção de proposição, com efeito vinculante, sobre o tema neles controvertido.

Deve-se registrar, por fim, quanto aos principais pontos da Lei no 11.417, de 19 de dezembro de 2006, a previsão de seu art. 7º, sobre o cabimento de reclamação em caso de eventual descumprimento de um enunciado de efeito vinculante. A nova lei vê esse desacato em sentido amplo, autorizando o uso da reclamação contra decisão judicial ou ato administrativo que contrarie qualquer enunciado, que lhe negue vigência, que o aplique indevidamente, que deixe de aplicá-lo etc. Impõe, ainda, como dito, responsabilização plena ao agente da Administração que desacate proposição com efeito vinculante, tanto no âmbito civil, como na esfera penal e administrativa.

Por sua vez, o uso da reclamação − “sem prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação”, como prevê o art. 7º da Lei no 11.417, de 19 de dezembro de 2006 – está franqueado a “todos que comprovem prejuízo oriundo de decisões dos órgãos do Poder Judiciário, bem como da Administração Pública de todos os níveis, contrárias ao julgado do Tribunal.”32

Notas do autor:

18 “Nova lei da súmula vinculante: estudos e comentários à Lei no 11.417, de 19 de dezembro de 2006”, Ed. Método, São Paulo, 2007, p. 30.
19 Vide, e.g., Gilmar Ferreira Mendes e Samantha Meyer Pflug, ob.cit., pp. 373/374; André Ramos Tavares, ob.cit., pp. 13/14; e Fernando Facury Scaff, “Novas dimensões do controle de constitucionalidade no Brasil: prevalência do concentrado e ocaso do difuso”, in Revista Dialética de Direito Processual no 50, pp. 20/41.
20 Bem como rever e cancel ar, naturalmente.
21 O Supremo Tribunal Federal pode, naturalmente, rever seu entendimento como Corte Constitucional (e.g., Informativo no 331, nas notícias sobre o início de julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade no 2.675-PE, Rel. Min. Carlos Velloso, e no 2.777, Rel. Min. Cezar Peluso). Entretanto, só deve fazê-lo face a relevante alteração no cenário fático ou jurídico (e, mesmo assim, com forte argumentação contrária ao entendimento que se quer modifi car), mediante cancelamento ou revisão do enunciado de efeito vinculante porventura questionado.
22 O Distrito Federal foi “esquecido” na redação dess e texto legal e na redação do art. 102, §2º, da Constituição Federal de 1988. Entretanto, não pode haver dúvida de que esse ente federado também estará sujeito ao efeito vinculant e das novas proposições aqui examinadas, como sugerem, à toda evidência, as normas contidas nos arts. 32, §1º, e 103, incisos IV e V, da Constituição Federal de 1988, e no art. 3º, incisos IX e X, da própria Lei no 11.417, de 19 de dezembro de 2006.
23 Gilmar Ferreira Mendes e Samantha Meyer Pflug, ob.cit., pp. 339/340, grifou-se.
24 Ob.cit., pp. 360/361.
25 Ob.cit., p. 733. Ainda nessa linha de entendimento, vide Pierpaolo Cruz Bottini, “Mecanismos de uniformização jurisprudencial e a aplicação da súmula vinculante”, cit., p. 35.
26 Agravo Regimental na Reclamação no 2.617-MG, Rel. Min. Cézar Peluso, Pleno, j. 23, de fevereiro de 2005 (in RTJ-193/858), grifou-se.
27 Gilmar Ferreira Mendes e Samantha Meyer Pflug, ob.cit., p. 371, grifou-se.
28 Vide, e.g., Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, “Breves comentários à nova sistemática processual civil 3”, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2007, p. 256; e José Carlos Barbosa Moreira, “A Emenda Constitucional no 45, de 2004 e o processo”, cit., pp. 240/241.
29 E só a partir dessa publicação (ex nunc). Quanto ao efeito apenas prospectivo dos enunciados com efeito vinculante, vide, e.g.: Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, ob.cit., p. 272; e Gilmar Ferreira Mendes e Samantha Meyer P flug, ob.cit., p. 365.
30 Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, ob.cit., p. 274.
31 A respeito, veja-se, e.g., Rodolfo de Camargo Mancuso, ob.cit., p. 357 e nota de rodapé no 192.
32 Agravo Regimental na Reclamação no 1.880, Rel. Min. Maurício Corrêa, Pleno, j. 07, de novembro de 2002.

Extraído do site da PGE-RJ, Revista de Direito da PGE- RJ, no. 63,(no prelo, pendente de revisão das provas gráficas).

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