Translate

10 fevereiro 2010

ANOTAÇÕES SOBRE O NOVO REGIME DA SÚMULA VINCULANTE

Parte 6 - Final

Elias Gazal Rocha

Procurador do Estado do Rio de Janeiro e Advogado. Mestrando em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.

 
VIII – Conclusões


Sumariando a exposição acima, entendemos que a edição dos primeiros enunciados de efeito vinculativo não se processou da forma como prevista no art. 103-A da Constituição Federal de 1988 e na correspondente Lei no 11.417, de 19 de dezembro de 2006.

A Suprema Corte não vem seguindo um procedimento específico, predeterminado, bem como adequado para o processamento dessas novas proposições. Ao invés disso, se serviu, até aqui, de deliberações tomadas em sessões administrativas privativas, adaptadas para apreciação dos projetos internos dos possíveis enunciados, de forma quase idêntica à rotina regimental adotada para a elaboração das tradicionais proposições, meramente persuasivas.

Adicionalmente, o Supremo Tribunal Federal já antecipou que irá seguir ritos distintos, conforme a proposta do enunciado que for examinar: se de sua própria iniciativa ex officio, seguirá o “procedimento” ora criticado; se de iniciativa de um dos demais legitimados na Lei, irá adotar outro ritual, que, entretanto, ainda depende de alteração do Regimento Interno da Corte58.

Como corolário desse primeiro problema, a fundamentação e a publicidade das decisões atinentes às proposições já editadas ficou comprometida, a nosso ver, eis que não foram integralmente atendidas as determinações da Carta Magna e da legislação de regência, sem o que essas primeiras proposições não podem ser tidas como perfeitamente legítimas, ou, no mínimo, não se deverá admitir que elas possam ter a eficácia vinculante pretendida59.

Os requisitos da existência prévia de reiteradas decisões do Supremo, na matéria constitucional a se uniformizar, e da concomitância de controvérsia atual, grave nsegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre mesma questão, também não nos parece terem sido inteiramente observados. Além da reduzida quantidade e relativa obsolescência, os precedentes invocados são, na maioria, concisos e pouco aprofundados no tema discutido, assim como ainda não exibem, na quase integralidade dos casos, a necessária harmonia em sua fundamentação, mas apenas em sua parte dispositiva.

Não se deve esquecer, igualmente, que dois Ministros não participaram do julgamento de qualquer precedente, pois ainda não integravam o Tribunal àquela época, o que significa que estão sendo elaborados enunciados sobre matérias ainda não totalmente pacificadas no Supremo Tribunal Federal (ou, ao menos, por meio de debates consistentes com toda a sua composição atual).

Ainda no campo formal – e ratificando o que dissemos sobre a carência de um rito adequado ao processamento dos enunciados de efeito vinculante –, parece-nos que o STF enfrenta dificuldades na seleção das matérias objeto de futuras proposições da nova espécie.

Das três já editadas, uma envolve tema já decidido em seis ações diretas de inconstitucionalidade (que lhe serviram de precedente), cuja eficácia obrigatória já deveria ter bastado, desde a decisão da primeira delas, para o acatamento à determinação da Suprema Corte; e outra trata de matéria da competência originária do Supremo Tribunal Federal, o que, em tese, tornaria desnecessária a adoção da eficácia vinculante, porque destinada, basicamente, a obrigar o próprio Tribunal.

Parece-nos, também, faltar maior rigor técnico no julgamento das reclamações, as quais ora são decididas como sendo ação, ora como se fossem recurso, ora como um tertium genus.

Já no aspecto prático, reitere-se, uma vez mais, que os enunciados com efeito vinculante não deverão servir, por si sós, para resolver o problema do gigantesco aumento da quantidade de novas ações que surgem diariamente, porque, até que se possa editar uma proposição vinculativa (por conta do ingresso daqueles feitos no Judiciário), milhares de outras ações novas já terão sido ajuizadas, bastante tempo antes de aquele enunciado poder surtir o efeito prático dele esperado – que está, exatamente, em evitar a multiplicação infindável de processos.

O enorme volume de trabalho que, há tempos, emperra a máquina judiciária tem compelido os magistrados a julgarem suas causas por decisões singulares, tão logo possível, à luz do art. 557 do Código Penal Civil (na média, mais de 87% dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal em 2006 e 2007 foram singulares 60). De outra banda, o instituto da repercussão geral sugere uma drástica redução na quantidade de recursos extremos admitidos ao Supremo Tribunal Federal (da ordem de mais de 90%).

Essas duas ferramentas terão que ser bem utilizadas, de forma conjugada, pela Suprema Corte, para não inviabilizarem os enunciados de efeito vinculante, pois ambas reduzem, enormemente, o estoque de possíveis precedentes: a primeira, porque reduz os julgados úteis (só acórdãos, a nosso ver); a segunda, porque reduz o número absoluto de recursos (e, logo, dos julgados em si).

Em nossa opinião, a nova espécie de enunciados servirá, basicamente, para desobstruir a pauta atual de julgamentos do Supremo Tribunal Federal, pela possibilidade de decisão conjunta de grupos de recursos que versem sobre um mesmo tema constitucional, como sugere, por exemplo, o texto do Enunciado no 1, que afetará, com toda certeza, milhares de feitos que discutem acordos celebrados para o pagamento de expurgos do FGTS. Também a idade dos precedentes, invocados nesse primeiro enunciado de efeito vinculante, corrobora nossa afirmativa: todos os feitos são originários de 2002, foram distribuídos no Superior Tribunal Federal em 2004 e já estavam julgados desde 2005. Só em junho de 2007, entretanto, cogitou-se de usá-los como precedentes de um primeiro enunciado com efeito vinculativo.

Outra conclusão, que extraímos dos cálculos feitos no Capítulo VII, é que as controvérsias sobre matéria constitucional que, potencialmente, poderiam ser solucionadas com o auxílio dos novos enunciados envolverão causas contadas às dezenas de milhares, talvez mais. E esse gigantesco volume de ações novas (e semelhantes), necessárias à edição de uma única proposição de efeito vinculante, só costuma se verificar em algumas poucas áreas, quase todas ligadas, direta ou indiretamente, à Administração Pública.

São causas versando sobre interesses de funcionários públicos, discussões acerca do pagamento de verbas “públicas” (como o FGTS, recolhimentos previdenciários, pensões e congêneres), temas afetos ao direito regulatório61 (discussões a respeito de taxas de juros, ou sobre o valor de tarifas ou preços públicos, ou quanto à necessidade de pagamento de assinatura pelo uso de serviços públicos, como o de telefonia, por exemplo) etc.

Vale ressaltar, por oportuno, que o conceito de Administração Pública, aqui, está sendo estendido à sua maior amplitude possível, haja vista que muitas das discussões recorrentes nos fóruns envolvem divergências não apenas entre administrados e Administração, mas entre os próprios poderes constituídos.

O Enunciado no 1, aliás, é exemplo disso: além de evocar matéria atinente aos expurgos do FGTS, que o Governo Federal resiste em pagar e discute há quase duas décadas no Judiciário, só se fez necessário pela peculiaridade da discussão suscitada nos Juizados Especiais Federais do Rio de Janeiro, cujas Turmas Recursais editaram enunciado (absolutamente equivocado) desconsiderando os acordos feitos pelo próprio Governo Federal.

No fim, o enunciado das Turmas Recursais acabou considerado “inconstitucional” pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário no 418.918-RJ (que, por sua vez, tornou-se o primeiro precedente do Enunciado no 1, de efeito vinculante), para evitar a subida de dezenas de milhares de outras causas idênticas, em curso nos Juizados Federais de origem.

Outro exemplo de nosso Estado do Rio, mas que deve ter-se replicado nacionalmente: as discussões a respeito das taxas de juros foram julgadas de forma diferente pelas Varas Cíveis e pelos Juizados Especiais Cíveis: estes não admitiram a cobrança de juros, sequer por instituições financeiras, superiores a 12% anuais; aquelas, em sentido diverso, autorizaram os juros acima de 12% ao ano, desde que praticados por instituições financeiras, ao entendimento de que o antigo art. 192 da Constituição Federal de 1988 carecia de regulação por lei complementar.

Muito tempo (e dezenas de milhares de ações) depois, sobreveio emenda à Constituição para deixar “evidente” a necessidade daquela legislação específica.

Nem mesmo assim, após envolvidos os Poderes Legislativo e Executivo na questão, o debate no Poder Judiciário parece estar resolvido no âmbito estadual (e, imaginamos, também não o estará, ainda, em âmbito nacional).

Parece-nos, assim, que, a menos que a própria Administração Pública se “comova”, de algum modo, e adote postura mais republicana − no sentido de honrar os seus deveres da forma prevista na Constituição Federal, sem discussões infindáveis e protelatórias no Poder Judiciário −, a chamada “súmula vinculante” adiantará pouco, ou quase nada, ao Supremo Tribunal Federal.62

O Supremo, em última análise, também vivencia o conflito democrático de não poder deixar de considerar a repercussão e o caráter políticos de suas decisões, sobretudo em relação aos litígios envolvendo o Governo, quando, ao mesmo tempo, os seus Ministros são escolhidos pelo Poder Executivo – que, no caso atual, já teve a oportunidade de aprovar os nomes de 7 (sete) dos 11 (onze) Ministros integrantes do Supremo Tribunal Federal63.

Conflito democrático de igual, ou até maior, gravidade se verifica na possibilidade de o Supremo Tribunal Federal poder, agora, editar enunciados com efeito vinculante erga omnes – que se qualificam, portanto, e em larga medida, como norma equiparada à lei –, capaz de obstar a eficácia de normas gerais editadas pelos demais Poderes constituídos, o Legislativo e o Executivo. No ponto, vale recordar a advertência de Lenio Luiz Streck:

“Na medida em que as Súmulas, não em raros casos, criam Direito contra o texto legal vigente e contra a própria Constituição Federal, inexoravelmente há que se indagar acerca da legitimidade do Poder Judiciário para tal. Esta tal vez seja a mais grave objeção contra a criação jurisprudencial em um ordenamento filiado à família romanogermânica.Essa objeção se baseia na questão de que tal criação não se compactua com a democracia. Com agudez, Winterton, citado por Cappelletti (ibidem, p. 93) escreve que ‘a tentativa de elevar o Judiciário, que não é eleito, sobre o Legislativo, que o é, pelo contrário, é antidemocrática.’ (...).”64

Da solução que o Supremo conseguir oferecer a esses dilemas, decorrerá a maior ou menor legitimidade de suas decisões ao longo do tempo. Embora a construção dessa legitimidade seja um fator indispensável ao seu objetivo de se firmar no papel exclusivo de Corte Constitucional, o Supremo Tribunal Federal não deve perder de vista que a mesma Carta Magna, de que ele é o guardião máximo, não o criou apenas com aquela finalidade, que, em última análise, acaba por restringir a jurisdição originalmente ofertada aos cidadãos brasileiros.

Este, todavia, é tema que demanda outro estudo.

Notas do Autor:

58 DJe nº 78/07, de 10 de agosto de 2007, disponível no site do Supremo Tribunal Federal, na opção “ Publicações” e, a seguir, em “Diário da Justiça Eletrônico”: , acesso em 30/01/08. Vide referência a essa duplicidade de procedimentos à fl. 19.
59 No ponto, vide, e.g., Roger Stiefelmann Leal, “O efeito vinculante na jurisdição constitucional”, Editora Saraiva, São Paulo, 2006, pp. 175/176.
60 Em , acesso em 15 de fevereiro de 2008.
61 Não sendo demais relembrar que, atualmente, após as alterações da Emenda no 45/04, muitas dessas questões passaram à competênci a do Supremo Tribunal Federal, por autorizarem recurso extraordinário nos casos de divergência entre lei federal e l ei local (Constituição Federal de 1988: “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...) III - julgar, mediante recurso extraordinário, as caus as decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: (...) d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.”)
62 Roger Stiefelmann Leal parece concordar integralmente com nossa afi rmativa: “A finalidade precípua do efeito vinculante consiste em coibir a recal citrânci a dos demais órgãos e poderes do Estado às decisões proferidas em sede de controle abstrato de constitucionalidade, especialmente em relação aos atos que tenham por objeto a reprodução substancial de preceito normativo já julgado inconstitucional. Não constitui, porém, instrumento voltado especifi cament e à redução do número de processos e à agilização de sua tramitação no Poder Judici ário, embora possa reflexamente contribuir para tal objetivo.” (ob.cit., pp. 181/182).
63 Havendo a possibilidade, já comentada a esta altura, de a Min. Ellen Gracie s er indicada para a Corte Internacional de Justiça, em Haia, o que permitiria ao Governo atual indicar, ainda nest e ano, um 8º Ministro para o Supremo Tribunal Federal. Considere-se, ainda, para fins de ilustração, que o Presidente do Supremo Tribunal Federal, hoje o Min. Gilmar Ferreira Mendes (não indicado pelo Governo atual), acumula a Presidência do Conselho Nacional de Justiça, deixando de participar da grande maioria dos julgamentos da Suprema Corte. Daí, poderá ocorrer a seguinte e curiosa situação: o Governo atual pode fechar est e ano de 2008 tendo indicado 8 dos 10 Ministros atuantes no Supremo Tribunal Federal, precisamente o quórum necessário para a edi ção das proposições com efeito vinculant e. Este dado, em se confi rmando, só fará aument ar a responsabilidade do Supremo Tribunal Federal para com os demais Poderes da República, como dito acima.
64 Ob.cit., p. 243.

Revista de Direito da PGE- RJ, no. 63,(no prelo, pendente de revisão das provas gráficas).

Nenhum comentário: