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12 fevereiro 2010

A HISTÓRIA DA ÉTICA-2

Parte 2-Final


GISELE LEITE

Professora Universitária no Rio de Janeiro

Mais tarde, sem o dualismo agudo e acirrado entre corpo e alma 11, Aristóteles desenvolveu também uma ética racionalista e mais realista onde enxerga como fim último do homem à felicidade. Todos nós indistintamente buscamos sermos felizes. A felicidade se encontraria na vida teórica e mais precisamente na razão.


O homem que se desenvolveu no plano teórico, contemplativo pode compreender a essência da felicidade e realizá-la de forma consciente. Isso seria privilégio da minoria, o homem comum aprenderia somente através do hábito a agir corretamente.

A agir corretamente seria praticar virtudes: a virtude moral é o meio-termo entre dois vícios; um dos quais envolve o excesso e, o outro a deficiência, e isso porque a sua natureza é visar à mediania nas paixões e nos atos.

A coragem seria um meio-termo entre a covardia e a temeridade. Assim, a ética aristotélica se consagrava em ser à ética do meio-termo.

Tanto em Platão como em Aristóteles, a ética está vinculada à vida política (polis). Aliás, Aristóteles se refere mesmo à ética como sendo ramo da política, já que a primeira trataria do bem-estar individual, enquanto a segunda trataria do bem comum.

Com a perda da autonomia das cidades-estados gregas, a partir do século III a.C., surgem novas escolas filosóficas de inspiração socrática, mas que passa a tematizar a questão ética não mais a partir da relação do indivíduo com a polis.

As principais escolas desse período de fragmentação grega são o estoicismo e o epicurismo, buscando a realização moral do indivíduo fora dos contornos da vida política, desenvolveram uma ética baseada na busca da paz interior e no autocontrole individual.

O princípio da ética estóica 12 é apathéia (a atitude de aceitação de tudo que acontece, porque tudo faz parte de um plano superior guiado por uma razão universal que a tudo abrange).

O princípio da ética epicurista 13 é ataraxia (atitude de desvio da dor e a busca do prazer espiritual através da paz de espírito e o autodomínio, encarar todas as coisas com serenidade de espírito). Minimizando os fatores exteriores e sua influência sobre o bem-estar espiritual.

Assim Epicuro asseverava: "O essencial para nossa felicidade é nossa condição íntima e dela somos senhores".

É importante ressaltar que os filósofos cristãos herdaram alguns destes elementos da tradição filosófica grega, reconfigurando-os na concepção cristã. A purificação da alma sugerida inicialmente por Platão foi retomada e repaginada por Santo Agostinho (séc. II) na idéia de elevação ascética para compreender os desígnios de Deus. Também a imortalidade da alma é retomada sob a perspectiva cristã, pois no reino de Deus vige a eternidade.

Convém refletirmos sobre as palavras de Santo Agostinho: "Ama e faz o que queres, porque se amas corretamente, tudo quanto faças será bom".

Santo Tomás de Aquino (século XVII) retomou a idéia de felicidade da ética aristotélica, pontificou que Deus era fonte dessa felicidade. A ética cristã abandonou a idéia de que é através da razão que se alcança à perfeição moral e centrou-a no amor e na boa vontade.

A ética cristã deu prisma estritamente pessoal à moral, como uma relação do indivíduo e Deus, isolando-o de seu meio e condição social e cultural. Atribuindo à subjetividade uma enorme importância.

Assim a liberdade cristã reside na relação interior de cada um com Deus. Se Deus é bondade infinita, como pode existir o mal. A liberdade é livre-arbítrio. O afastamento de Deus é que seria o mal, de acordo com Santo Agostinho.

O livre-arbítrio traduz a imensa subjetividade nas coisas do mundo. E no mau uso do livre-arbítrio que estaria a origem de todo o mal.

O conceito de livre-arbítrio esvaziou a acepção grega de liberdade como a possibilidade plena dos indivíduos em seu meio social.

Desta forma, reduzida a dimensão social da liberdade, esta passou a possuir um caráter mais pessoal, subjetivo e individualista.

Com o Renascimento houve uma retomada do humanismo que voltou a reflexão ética para a autonomia humana. No Iluminismo os filósofos passam a defender que a moral deve ser fundamentada não em valores religiosos e sim na compreensão sobre a natureza humana. A concepção mais expressiva é a natureza racional que encontra em Kant.

Voltaire inspirado proferiu a seguinte assertiva: "Ser desprezado por aqueles com quem se vive é coisa que ninguém pôde e jamais poderá suportar. Talvez seja esse o maior freio que a natureza posta na injustiça dos homens".

A reflexão ética contemporânea (séc. XIX e XX) se desdobrou numa série de concepções distintas sobre o que seja moral e sua fundamentação que se recusam em sua grande parte a ter base exterior, transcendental para moralidade, que centrada no próprio homem situa a origem dos valores e das normas morais.

Os pensadores contemporâneos reagiram ao formalismo da ética kantiana posto que postulava o dever como norma universal, sem se preocupar com a condição individual na qual cada um se encontra diante desse dever.

Kant nos forneceu a forma da ação moralmente correta, mas não diz nada a respeito de seu conteúdo. Hegel critica Kant, pois considera a moral como mera questão pessoal, íntima e subjetiva, na qual o sujeito tem que se decidir entre suas inclinações e sua razão.

Assim a moralidade assume conteúdos diferenciados ao longo da história das sociedades humanas, e a vontade individual seria apenas um dos elementos da vida ética de uma sociedade em seu conjunto.

A insuficiência kantiana quanto ao quanto conteúdo da ação moralmente correta e a crítica hegeliana é uma conquista definitiva na relação ética contemporânea.

Kierkergaard foi um crítico de Hegel, enfatizando a subjetividade como algo irredutível à sistematização racional. Além de inspirar a corrente existencialista, tal filósofo influenciou a psicanálise.(ler também o ensaio "O romântico Kierkergaard" da mesma autora)

A concepção ética passou a enxerga à ação moral ao reconhecer a existência de uma esfera inconsciente que determina, em grande parte, as ações humanas. A recusa ao absolutismo da razão e o reconhecimento do aspecto irracional presente no homem.

Nietzsche criticou o racionalismo ético que era repressor bem como sua moral racionalista que entrava o pleno desenvolvimento da liberdade. É mordaz crítico da moralidade cristã-ocidental e a identifica com a moral dos rebanhos.

As noções de pecado, de culpa e inferno são apenas formas de dominação de força vital individual. Nietzsche encaminhou sua reflexão de forma radical para o questionamento da própria moral como elemento regulador da vida social, o que não existe em Kierkergaard ou nos existencialistas.

Sigmund Freud também reconheceu o aspecto repressivo da moral, mas não questionou a necessidade da moral como instância reguladora, pois sem esta, a própria civilização humana estaria em grave risco.

Já para Marx, o homem não é nem essência e nem um "recipiente" no qual o Espírito se manifesta e, sim, um indivíduo que se forma e se constitui no interior das relações sociais nas quais está inserido e vive. Marx não sendo inédito declara explicitamente que o homem é um ser social.

Em face de multiplicidade de valores e códigos morais, alguns filósofos defendem a teoria do relativismo ético que afirma não existir uma só base objetiva e universal sobre a qual se possa erguer um sistema moral único, válido para todos os homens.

O conteúdo da consciência moral varia muito no tempo e no espaço. Os relógios e as geografias definem códigos morais que refletem valores éticos dominantes em cada sociedade. Para o relativismo ético, a moral é fruto de padrão cultural vigente assim a ética torna-se uma questão de ótica (grifo nosso).

A virtude estaria na tolerância, no respeito pelos diferentes sistemas morais que, entre si, admitam conviver pacificamente. É possível estabelecer valores objetivamente válidos para todos os seres humanos e tal humanismo tentar deslindar a complexa natureza humana.

Para alguns pensadores a solução dos valores da moral universal escapa à ética e se centram em problemas sociais que geram violência e atrocidades. Outros doutrinadores defendem que o sistema de valores que adotamos não pode ser definido em função de quaisquer desejos subjetivos ou preferências arbitrárias.

Para ética humanista objetiva deve orientar os desejos humanos, Erich Fromm enuncia: "Valioso e bom é tudo aquilo que contribui para o maior desdobramento das faculdades específicas do homem e que favorece a vida".

Bertrand Russel enunciou que o grande fim da ética seria "produzir desejos harmoniosos em vez de desejos discordantes". A felicidade segundo Russel só é possível como combate aos medos irracionais, a todos preconceitos cunhados pela ignorância e a dissolução dos fanatismos em conflitos (políticos e religiosos).

Para Bertrand Russel o hábito de fundamentar suas crenças em resultados científicos já reflete a busca incessante dos homens pela verdade cada vez mais plena sua fórmula da felicidade é enunciada resumidamente: "inspirada no amor e guiada pelo conhecimento".

Convém novamente refletirmos sobre o enunciado de Bertrand Russel: "Três grandes desejos marcaram minha vida: o desejo de ser amado; o desejo de saber e o desejo de aliviar o sofrimento humano".

A ética que se desenvolveu a partir da análise da linguagem teve em Jurgen Habermas um de seus maiores representantes.

Desenvolve elementos de uma ética discursiva fundada no diálogo e no consenso entre os sujeitos. O que se busca no diálogo é a razão que, tendo sido reconhecida pelos participantes do diálogo, que serviria de base última para a ação moral.

O conceito de razão em Habermas (é a razão comunicativa) que é inacabada, mas se constrói a partir da argumentação. É uma razão interpessoal e não mais subjetiva; é uma razão processual, não definitiva e não acabada.

É necessário o diálogo livre, sem constrangimentos assim a ética de Habermas 14 é uma aposta na linguagem e na capacidade de entendimento entre as pessoas na busca da ética universal baseada em valores válidos e aceitos por consenso.

A questão perdura sobre as condições de realização de um diálogo livre e igualitário dentro de uma sociedade marcada pela agressão, desigualdade. Enfim, não é pretensioso o presente artigo, pois apesar de não abordar plenamente toda a história da ética serve para dar uma visão panorâmica sobre a evolução da ética e das questões que até hoje ainda atormentam o pensamento contemporâneo.

NOTAS DA AUTORA:

11 - Alma, do latim anima, sopro vital, por oposição ao corpo, é um dos princípios do composto humano. Pela filosofia aristotélica-escolástica é uma alma pensante, é um princípio de vida, “forma de um corpo organizado tendo a vida em potência”. Para Schelling, a alma é o princípio de unidade e de movimento sustentando a continuidade do mundo (orgânico e inorgânico) e unindo toda a natureza num organismo universal. Hegel fala da “bela alma” para designar uma atitude existencial do indivíduo que procura preservar sua pureza moral, sem se engajar na ação, refugiando-se na pureza de seu coração.
12 - O estoicismo deriva seu nome da Sloca Poikilé um pórtico em Atenas aonde lecionava seu fundador Zenão de Cicio também conhecida como filosofia do Pórtico. A lógica estóica teve pouca repercussão vez que fora superado pela lógica aristotélica e da qual difere sobretudo por ser fundamentalmente de proposição e não do silogismo.Um grande nome do estoicismo romano ou novo é Sêneca (os homens são iguais contra a escravidão, os males são devidos às paixões humanas e o papel do soberano é o de encarnar a sabedoria realizando a ordem).
13 - Epicurismo prega “bem é o prazer” isto é a satisfação de nossos desejos e impulsos de forma moderada, levando assim à tranqüilidade. Segundo Epicuro, o prazer é o começo e o fim da vida feliz e constitui o Bem supremo, cujo modelo perfeito nos fornecido pela vida levada pelos deuses. O prazer só é obtido ao fim de um discernimento refletido.
14 - A obra de Habermas segue a teoria crítica da sociedade iniciada pela escola de Frankfurt, apesar dele ser da segunda geração. Pretende assim propor uma revisão atualizante do marxismo, com grande inspiração em Weber, parte da análise da racionalidade social, caracterizando-a segundo uma razão instrumental. É preciso recuperar a dimensão da interação humana, daí a grande relevância do diálogo. Defende o racionalismo iniciado pelo iluminismo, principalmente em função do agir comunicativo.

Referências

Cordi, Santos Bório, Correa, Volpe, Laporte, Araújo, Schlesner, Ribeiro, Eloriani e Justino. Para Filosofar.Editora Scipione, São Paulo, 1999.
Japiassú, Hilton e Marcondes, Danilo. Dicionário básico de filosofia, 3a. edição, ver. e atual. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1996.
Bittar, Eduardo Carlos Bianca e Guilherme de Assis de Almeida.Curso de filosofia do direito, São Paulo, Atlas, 2001.
Cotrim, Gilberto. Fundamentos da Filosofia. 15a.edição 2000. Rio de Janeiro. Editora Saraiva.
Chauí, Marilena. Convite à Filosofia, edição, 2000. Rio de Janeiro. Editora Ática.

Extraído de Editora Magister. Data de acesso: 22/01/2010.

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