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02 fevereiro 2010

AMICUS CURIAE: UM INSTITUTO DEMOCRÁTICO

Adhemar Ferreira Maciel
Advogado, ministro aposentado do STJ
(Publicado na Revista Jurídica nº 312, p. 75)

Como adverte Gustav Radbruch em seu pequeno grande livro Der Geist des englischen Rechts (O Espírito do Direito Inglês), torna-se praticamente impossível a tradução da terminologia jurídica de uma língua para outra. É o caso de amicus curiae do direito norte-americano, que, vez por outra, se traduziria mais num amicus partis ou num amicus causae: o terceiro que comparece ao processo alheio vem, na realidade, mais com o intuito de ajudar uma das partes do que mesmo trazer esclarecimento ao tribunal.


Esse instituto amicus curiae, por sua informalidade e peculiaridades, não guarda verossimilhança com nossa intervenção de terceiros, que se desdobra em diversos institutos processuais (CPC, arts. 56/80).

O amicus curiae é um instituto de matiz democrático, uma vez que permite, tirando um ou outro caso de nítido interesse particular, que terceiros penetrem no mundo fechado e subjetivo do processo para discutir objetivamente teses jurídicas que vão afetar toda a sociedade. O direito anglo-americano, como se sabe, não é, como o nosso (romano- decisões dos tribunais, por causa dos precedentes (stare decisis), é que vão dizer o que a lei significa, trate-se de common law, equity, act, ordinance ou mesmo by-law. No Brasil, salvo causas julgadas abstratamente (controle concentrado), as decisões judiciais valem para as partes, não tendo força erga omnes.

As regras do instituto americano não são lá muito bem delineadas, uma vez que podem variar de Estado para Estado, de tribunal para tribunal. Mas, de um modo geral, o terceiro - pessoa natural ou jurídica -, que tem um "forte interesse" que a decisão judicial favoreça um determinado ponto de vista, sumariza um pedido (brief) ao juiz (comumente tribunal de 2º grau), trazendo, em poucas linhas, suas razões de convencimento. À evidência, não é todo arrazoado de qualquer pessoa que é admitida. As partes, como domini litis, podem recusar o ingresso do tertius em "seu" processo. Muitas vezes, as partes se põem de acordo, mas, ainda assim, a Corte nega o pedido de ingresso do terceiro: a matéria não é relevante, as partes já tocaram no assunto. Órgãos governamentais, associações particulares de interesse coletivo, "grupos de pressão" muito se utilizam do judicial iter para deduzirem seus entendimentos, influindo na vida de toda a comunidade. Aliás, na Suprema Corte dos Estados Unidos, mais da metade dos casos de amicus curiae são ocasionados pelo solicitor general, que representa a União Federal.

A "Rule 37" do Regimento Interno da Suprema Corte dos Estados Unidos1, por exemplo, traz seis itens e subitens sobre o Brief for an Amicus Curiae naquele Tribunal. Vamos, mais para dar uma idéia, pinçar os tópicos mais importantes: 1) O reconhecimento pela Corte da importância do instituto, uma vez que o amicus curiae deve trazer "matéria relevante" (relevant matter) ainda não agitada pelas partes (not already brought to its attention by the parties). O dispositivo regimental lembra que se não for observado esse cânone (matéria relevante, não trazida antes), o amicus vai sobrecarregar inutilmente a Corte. 2) O amicus curiae deve trazer, por escrito, o assentimento das partes em litígio, nos casos especificados regimentalmente. Caso seja negado o consentimento, o amicus terá de juntar, com seu pedido, os motivos da negação para que a Corte aprecie. 3) Mesmo em se tratando de pedido de intervenção para sustentação oral, o amicus deve, ainda assim, juntar o consentimento das partes, por escrito, para que possa peticionar. 4) O Solicitor General não necessita de consentimento das partes para intervir em nome da União. O mesmo tratamento é reservado a outros representantes de órgãos governamentais, quando legalmente autorizados. 5) O arrazoado não deve ir além de cinco páginas. 6) Em sendo o caso, o amicus deve ser munido de autorização de seu representado, e fazer uma espécie de "preparo" para custeio processual, salvo se a entidade estiver previamente arrolada como isenta.

Como já se delineou, o direito norte-americano é um "direito de casos judiciais". Assim, nada melhor para ilustrar do que um case célebre, o Gideon vs. Wainwright, julgado em 1963. Esse caso ganhou o mundo, sendo objeto de livro2 e filme. Mostra a persistência de um homem (Clarence Earl Gideon) na defesa de seus direitos, em contraste com a dureza da lei (estadual). Também mostra a sensibilidade de um juiz (Hugo Black) que soube garimpar em julgados anteriores e ver nas Emendas Constitucionais nºs 6 e 14 a imperiosa necessidade de assistência de advogado, como direito fundamental, para se atingir um "julgamento justo" (fair trial). "Advogados em julgamentos criminais são necessidade, não superfluidade", arrematou Black.

A Emenda nº 6 à Constituição dos Estados Unidos, que faz parte do Bill of Rights, garante julgamento penal rápido, imparcial, por juiz competente, assegurando ao acusado o direito de arrolar testemunhas e de "ter assistência de um advogado para sua defesa" (to have the assistance of counsel for his defense). Até 1963, pode-se dizer, para simplificar, que o entendimento da Suprema Corte era de que o preceito constitucional (assistência de advogado) se aplicava obrigatoriamente aos tribunais federais3. Quanto aos Estados-membros, cada um tinha sua lei. Em cinco unidades federadas, a lei não previa a presença de advogado para processos criminais com pena não-capital: Alabama, Flórida, Mississippi, Carolina do Norte e Carolina do Sul4.

Gideon foi acusado perante a justiça da Flórida de ter invadido domicílio, cometendo um crime grave (felony) não punível com pena de morte. Pela lei local, ele poderia - pois não se trata de "crime capital"5 - ser condenado sem a assistência técnica de advogado. O acusado pediu ao tribunal local que lhe nomeasse advogado dativo, pois era indigent ("miserável", na terminologia brasileira). Famosa ficou a resposta do "relator" à sua súplica:

"Senhor Gideon, sinto muito, mas eu não tenho como indicar um advogado para o senhor neste caso. Sob as leis do Estado da Flórida, a única modalidade em que o Tribunal tem de nomear um advogado para o réu é quando ele está sendo acusado de crime capital. Sinto muito, mas tenho que indeferir seu pedido para que um advogado possa defendê-lo (dativamente) neste caso."

Gideon acabou por fazer sua própria defesa. Foi condenado a cinco anos de prisão. Não se conformou. Interpôs um habeas corpus perante a Suprema Corte da Flórida, insistindo que condenação sem assistência técnica (advogado) feria a Constituição e o Bill of Rights, que se aplicavam aos Estados. Tornou a perder. Sua causa chegou à Suprema Corte (federal) através de um writ of certiorari. Por ser pobre, a Suprema Corte nomeou-lhe um advogado dativo, o grande Abe Fortas (mais tarde juiz da Suprema Corte)6. Como amici curiae figuraram J. Lee Rankin, que falou pela American Civil Liberties Union, e outras entidades. Engrossaram a fileira dos defensores da tese sustentada por Gideon: Norman Dorsen, John Dwight Evans Jr., Melvon Wulf, Richard J. Medalie, Howard W. Dixon e Richard Yale Feder.

Pelo réu (Wainwright), sustentou Bruce R. Jacob, assistente do Attorney General (uma mistura de secretário estadual da Justiça e procurador-geral), que foi coadjuvado por Richard W. Erwin, Attorney General, e A. Spicola Jr., seu assistente.

Como amici curiae em defesa da tese de que em crime não punido com pena capital não era obrigatória a presença de advogado, porfiaram George D. Mentz, do Ministério Público do Alabama. Também reforçaram a defesa do réu (certiorari) MacDonald Gallion (Attorney General do Alabama), T. W. Bruton (Attorney General da Carolina do Norte) e Ralph Moody (Assistant Attorney General da Carolina do Norte). As intervenções não ficaram nisso. Cerca de 22 Estados e entidades públicas - pasmem! - foram admitidos como amici curiae... Cada um apresentou suas razões...

Vê-se, por esse exemplo, escolhido a esmo, a importância da participação de segmentos sociais, oficiais ou não, na formação da Justiça. Nada mais democrático e representativo.

No Brasil, onde temos um sistema fechado e legal, essa democratização seria impensável. Para finalizar, quero registrar que o processo na Suprema Corte demorou apenas três meses (de 15 de janeiro a 18 de março de 1963).

NOTAS DO AUTOR

1. Para se fazer distinção das supremas cortes estaduais, coloca-se "U.S". para a Suprema Corte dos Estados Unidos: "U.S. Supreme Court".
2. Gideon's Trumpet, escrito por Anthony Leswis, jornalista, jurista e professor da Faculdade de Direito da Universidade de Colúmbia e professor-visitante da James Madison (cf. Dworkin. Ob. cit., p.198 e ss.).
3. Em Betts vs. Brady, 316 U. S. 455 (1942), a Suprema Corte admitiu que em special circunstances (retardado mental, jovem demais) a presença de advogado se fazia necessária, ainda que não prevista por lei estadual.
4. Krash, Abe. Artigo cit., p.4.
5. No meado da década de 1950, em todos os Estados-membros era obrigatória a presença de advogado para crimes punidos com morte; em cerca de um quarto, também era exigido advogado no caso de "felony" apenado com pena não capital; metade dos Estados também previa advogados dativos para misdemeanors (Cf. Mayers, Lewis. Ob. cit., p.141 e ss.).
6. Fortas, nomeado pelo presidente Johnson, veio a ocupar a cadeira na Suprema Corte onde se assentaram grandes magistrados de origem judaica: Cardozo, Frankfurter e Goldberg. Daí, jocosamente, falar-se em Jewish Seat... Mais tarde, uma reportagem na revista Life, demonstrando que Fortas havia prestado aconselhamento ao financista Louis Wolfson (Fundação), acabou por levá-lo a pedir exoneração de seu cargo: "Deixo a Corte prosseguir com seu trabalho vital, livre de (qualquer) pressão estranha".

BIBLIOGRAFIA

Abraham, Henry. The judicial process - an introductory analysis of the courts of the United States, England and France. 5.ed. New York: Oxford University Press, 1986.
Chemerinsky, Erwin. Constitutional law - principles and policies. New York: Aspen Law & Business, 1997.
Cushman, Clare (Ed.). The Supreme Court justices - illustrated biographies, 1789-1993. Washington, DC: Congressional Quarterly, 1993.
Dworkin, Ronald. Freedom's law - the moral reading of the American constitution. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1996.
Krash, Abe. Architets of Gideon: Remembering Abe Fortas and Hugo Black. Disponível em:
Mayers, Lewis. The American legal system: the administration of justice in the United States by judicial, administrative, military, and arbitral tribunals. New York: Hasper & Brothers , 1955.
Munro, William Bennett. The government of the United States - national, state, and local. 5.ed. 1947.
Radbruch, Gustav. El espíritu del derecho inglês. Madrid: Revista de Occidente, 1958.
Tribe, Laurence H. American constitutional law, 2.ed. Mineola, New York: The Foundation Press, Inc., 1988.

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