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25 fevereiro 2010

REGISTRO CIVIL- DA POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO DO NOME E SEXO DO TRANSEXUAL NO REGISTRO CIVIL

Parte 3/4


Aline Dias de França

Advogada; Especialista em Direito Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Mestranda na Faculdade de Direito da USP. Membro do IBDFAM.


3.4 A POSIÇÃO DOS TRIBUNAIS BRASILEIROS

Superada a discussão da criminalização da cirurgia após a absolvição do médico Roberto Farina que realizou a primeira cirurgia do gênero no Brasil em 1971 e a autorização do Conselho Federal de Medicina para sua realização nos país através da resolução 1482 em 1997, crescente são as decisões favoráveis à alteração do nome do transexual. Elas se fundam, basicamente, no princípio da dignidade da pessoa humana, que é fundamento da República Federativa do Brasil e na proteção constitucional, entre outros direitos fundamentais, ao direito à vida, à existência e a identidade, que garantem aos seus direitos de personalidade.

Também afirmam atender ao princípio da isonomia, previsto nos artigos 1º, III, IV e 3º, III, IV da CF, "que proíbe qualquer prática discriminatória para a dignidade da pessoa humana, para os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, acesso ou manutenção do trabalho por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade".25

Ademais não há como negar que o fato do indivíduo apresentar-se como pessoa de um sexo e exibir documento como nome de outro a expõe a situação vexatória e humilhante. Ademais, no meio social em que vivem os transexuais são conhecidos por nome diverso do que o que exibem em sua certidão, o que analogicamente, poderia ser considerado apelido público e notório, garantindo-lhe a aplicação do disposto no artigo 58 da Lei 6.015/98.

Mas se tal alteração deve ser feita através de uma retificação ou de uma averbação, se deve ser alterado também o sexo, se deve ser dada publicidade a tal circunstância, se isso feriria o princípio da dignidade da pessoa humana e os da publicidade, continuidade e segurança dos registros públicos, são questões sob as quais não há consenso.

Nos tribunais pesquisados para a elaboração deste estudo, verificamos quatro posições distintas, todas concedendo a alteração do nome 26, mas divergindo quanto à alteração do sexo. No primeiro grupo de decisões estão as que concedem a alteração do nome e sexo, consignando que não deve ser dada publicidade à concessão exceto através de pedido de pessoa interessada ou ordem judicial. No segundo grupo as que determinam a alteração do nome e sexo através de averbação no assento que garante a publicidade da mudança enquanto no terceiro grupo as que garantem a alteração do nome determinando que conste no assento o sexo transexual. Por fim, no quarto as alteram o nome, mas negam a alteração do sexo.

Do primeiro grupo, destacamos a decisão do Desembargador Nascimento Povoas Vaz do TJRJ que determinou a retificação do nome e sexo, consignando que a manutenção do mesmo número de CPF protegerá terceiros. Neste sentido:

REGISTRO CIVIL. Transexual que se submeteu a cirurgia de mudança de sexo, postulando retificação de seu assentamento de nascimento (prenome e sexo). Adequação do registro à aparência do registrando que se impõe. Correção que evitará repetição dos inúmeros constrangimentos suportados pelo recorrente, além de contribuir para superar a perplexidade do meio social causado pelo registro atual. Precedentes do TJ/RJ. Inexistência de insegurança jurídica, pois o apelante manterá o mesmo número do CPF. Recurso provido para determinar a alteração do prenome do autor, bem com a retificação para o sexo feminino. (TJ/SP AC 2005.001.17926, 18ª. C.C, Des. Nascimento Povoas Vaz, Julg. 22/11/05)

Neste grupo parece estar o STJ que em recente decisão da lavra da Ministra Nancy Andrighi, determinou a alteração do prenome e da designação de sexo de um transexual de São Paulo que realizou cirurgia de mudança de sexo, sem que na certidão conste anotação sobre a decisão judicial. O registro de que a designação do sexo foi alterada judicialmente poderá figurar apenas nos livros cartorários 27.

Todavia, em 2007, a mesma Turma decidiu permitir a alteração de nome e sexo com a publicidade da sentença, conforme demonstra a ementa a seguir:

MUDANÇA DE SEXO. AVERBAÇÃO NO REGISTRO CIVIL. 1. O recorrido quis seguir o seu destino, e agente de sua vontade livre procurou alterar no seu registro civil a sua opção, cercada do necessário acompanhamento médico e de intervenção que lhe provocou a alteração da natureza gerada. Há uma modificação de fato que se não pode comparar com qualquer outra circunstância que não tenha a mesma origem. O reconhecimento se deu pela necessidade de ferimento do corpo, a tanto, como se sabe, equivale o ato cirúrgico, para que seu caminho ficasse adequado ao seu pensar e permitisse que seu rumo fosse aquele que seu ato voluntário revelou para o mundo no convívio social. Esconder a vontade de quem a manifestou livremente é que seria preconceito, discriminação, opróbrio, desonra, indignidade com aquele que escolheu o seu caminhar no trânsito fugaz da vida e na permanente luz do espírito. 2. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 678933 / RS, 3ª Turma, Ministro Relator Carlos Alberto Menezes Direito, julgamento 22/03/2007, DJ 21/05/2007 p. 571).

Posicionamento adotado recentemente pelo TJSP que determina a alteração de nome e sexo através de alteração, a fim de preservar a continuidade dos registro e direito de terceiros, como demonstra ementa a seguir:

Retificação de registro civil. Transexual. Obediência ao princípio da dignidade da pessoa humana. Aplicação do artigo 1º, III , da CF e dos artigos 55, parágrafo único e 58 da Lei 6 0 1 5 / 7 3 . Modificação de nome e sexo que, no entanto, devem ser averbadas em cartório para que se preserve a continuidade do registro civil e os direitos de terceiros. Jurisprudência deste Egrégio Tribunal de Justiça. Recurso provido, com observação. (TJ/SP, AC 619.671.4/9, Guarulhos, 4ª. C. de Direito Privado, Rel. Des. Maia da Cunha, Julg. 19/02/2009; DJESP 07/05/2009).

Outras decisões há como a do TJRS, que determina a alteração do nome e do sexo para nele constar que é a pessoa é transexual

ALTERAÇÃO DO NOME E AVERBAÇÃO NO REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALIDADE. CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. O fato de o apelante ainda não ter se submetido à cirurgia para a alteração de sexo não pode constituir óbice ao deferimento do pedido de alteração do nome. Enquanto fator determinante da identificação e da vinculação de alguém a um determinado grupo familiar, o nome assume fundamental importância individual e social. Paralelamente a essa conotação pública, não se pode olvidar que o nome encerra fatores outros, de ordem eminentemente pessoal, na qualidade de direito personalíssimo que constitui atributo da personalidade. Os direitos fundamentais visam à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, atua como uma qualidade inerente, indissociável, de todo e qualquer ser humano, relacionando-se intrinsecamente com a autonomia, razão e autodeterminação de cada indivíduo. Fechar os olhos a esta realidade, que é reconhecida pela própria medicina, implicaria infração ao princípio da dignidade da pessoa humana, norma esculpida no inciso III do art. 1º da CF, que deve prevalecer à regra da imutabilidade do prenome. Por maioria, proveram em parte. (TJ/RS, AC 70013909874, Porto Alegre, 7ª Câmara Cível, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 05/04/2006, Publicação 17/4/2006)

Mais raras são as que, alteram o nome e não o sexo, assim:

Ação de retificação do registro de nascimento. Transexual. Adequação do sexo psicológico ao sexo genital. Sentença de procedência. Apelação. Sentença que julgou procedente o pedido, deferindo a alteração no registro civil, consistente na substituição do nome do requerente, passando a figurar como pessoa do sexo feminino. Características físicas e emocionais do sexo feminino. Artigo 13 do CC. Defeso o ato de dispor do próprio corpo. Exceção quando for por exigência médica. Ciência moderna trata o transexualismo como uma questão neurológica. Análise citogenética. Prova definitiva para determinar o sexo. Diferença encontrada nos cromossomos sexuais é a chave para a determinação do sexo. Cirurgia de mudança de sexo não é modificadora do sexo. Mera mutilação do órgão genital, buscando a adaptação do sexo psicológico com o sexo genital. Mudança de sexo implicaria em reconhecimento de direitos específicos das mulheres. Segurança jurídica. Mudança do nome do apelado se afigura possível. Artigos 55 e 58 da Lei 6.015/73. Nome pode ser alterado quando expõe a pessoa ao ridículo. Quanto a mudança de sexo, a pretensão deve ser rejeitada. Modificação do status sexual encontra vedação no artigo 1.604 do CC. Ensejaria violação ao preceito constitucional que veda casamento entre pessoas do mesmo sexo. Retificação do sexo no assento de nascimento tem como pressuposto lógico a existência de erro. Inexistência de erro. Apesar da aparência feminina, ostenta cromossomos masculinos. Dá-se provimento ao recurso. (TJRJ, AC 2004.001.28817, Rel. Des. Otávio Rodrigues, julgado em 02/03/2005.)

Diante de tamanha polêmica e divergência, um regramento legislativo sobre o tema se faz necessário, pois, a alteração do sexo traz conseqüências as demais áreas da vida jurídica do indivíduo, especialmente no Direito de Família.

3.5 O TRANSEXUALISMO E O DIREITO DE FAMÍLIA

Sem dúvida, o que mais perturbam os profissionais do Direito ao enfrentarem a questão da transexualidade é o reflexo que a mudança do sexo pode trazer para o direito de família, afinal, com outro sexo e diante da diversidade deles óbice legal não há para a celebração de um futuro casamento. E ao admitir a alteração do sexo, por uma questão de coerência e adequação, devemos permitir o casamento de um ex-homem, agora mulher, com um homem, já que há diversidade de sexos, ainda que só jurídico, e como o matrimônio não pressupõe a capacidade reprodutiva é só o preconceito e ignorância que nos impedem de ver nesta união uma legítima formação de família.

Mas se o transexual ocultar sua condição do cônjuge, este poderia alegar erro sobre a pessoa e pleitear a anulação do casamento? De acordo com o disposto no artigo 219 do CC, sim se tal fato tornar a vida em comum insuportável e o mesmo for descoberto após a celebração da união, devendo tal pleito ser interposto pelo cônjuge enganado (artigo 1.557 do CC) no prazo decadencial de três anos.

Há os que defendem que tal casamento poderia ser considerado inexistente, já que do ponto de vista unicamente biológico o transexual continua a pertencer ao seu sexo de origem uma vez que a cirurgia muda seu fenótipo, mas é incapaz, pelo menos no atual estagio da ciência médica de lhe atribuir os demais caracteres do sexo oposto como órgãos reprodutores, glândulas e produção de respectivos hormônios. Informa Aracy Augusta Leme Klabin que decisões há neste sentido nos Estados Unidos e Clóvis Bevilacqua afastava a inexistência do casamento apenas diante de casos de hermafroditismo ou deformações, os hoje designados intersexos 28.

Mas não é só a polêmica quanto à questão da admissibilidade de um casamento posterior à alteração do registro que devemos enfrentar já que, a despeito de mais raros, casos há de transexualismo secundário e algumas destas pessoas podem realizam a cirurgia de transgenitalização após terem casado e tido filhos. Seria esta situação motivo de dissolução do casamento? Para a realização da cirurgia, deveria ter anuído o cônjuge?

Entendemos que neste caso, para a dissolução do casamento não poderá o cônjuge pedir anulação do matrimônio em razão da identidade de sexos (o que ocorreu após a cirurgia) e na nossa legislação este fato em si não seria causa legitima para a propositura da ação de divórcio litigioso. Poderia até a vir configurar descumprimento do dever de mútua assistência já tal mudança pode tornar impossível ou inviabilizar o cumprimento do débito conjugal mas, nos parece, o caminho menos tortuoso para o consorte surpreendido pelo transexualismo do outro seria a possibilidade de formular pedido de divórcio em razão da separação de fato ou do mútuo consentimento.

A legislação sueca e alemã para evitar esta confusão só permite a realização da cirurgia de transgenitalização se o candidato for solteiro ou divorciado, mas a doutrina e jurisprudência destes países tem tido dificuldades para encontrar uma solução justa para outra questão que surge após a intervenção médica: a alteração do nome e sexo deve ter efeito ex nunc e como fica o registro de nascimento dos filhos desta pessoa?

Para evitar constrangimentos aos filhos e cônjuge, propõe Tereza Rodrigues Vieira que "o reconhecimento jurídico da adequação de sexo deve ser concedido apenas ao transexual solteiro, divorciado ou viúvo" e que a sentença que ordenar a retificação do sexo tenha efeitos ex nunc, não isentando o transexual de "prestar alimentos aos filhos e ex-cônjuge", sendo desnecessária a anuência do último por tratar-se de questão de saúde 29.

Por obvio, mantêm-se inalterados os direitos e obrigações do transexual decorrentes da relação de filiação e na dissolução da sociedade conjugal a guarda deverá ser atribuída àquele que tiver melhor condições de exercê-la, independentemente de sua identidade sexual, tanto que notório é o caso no qual o Tribunal de Apelação do Colorado, Estados Unidos, manteve a guarda de uma transexual mulher sob suas filhas, mesmo após divorciar-se do pai delas e realizar a cirurgia de reatribuição de sexo, casando-se novamente com uma mulher. Entendeu o Tribunal que as meninas deveriam permanecer com a mãe natural, agora homem, em razão do interesse e bem-estar das menores.

Mas será que devemos admitir a anotação e conseqüente alteração do nome do genitor na certidão de nascimento e demais documentos dos filhos nascidos antes da cirurgia? Parece-nos que tal circunstância pode gerar grandes dissabores e constrangimentos aos menores e por isso não deveria ser permitida, mas deixamos ao leitor a resposta a esta tormentosa questão.

Ainda maior tormentosa é a questão sobre a admissibilidade da adoção após a readequação do sexo, uma das formas pelo qual o transexual poderá ter um filho já que a cirurgia o deixa infértil. Outro meio seria algum método de reprodução assistida.

Tal qual a adoção por homossexuais grande resistência encontrou, a por transexuais também enfrentará, mas acreditamos que, em uma ou outra, o que deve ser analisado é o melhor interesse da criança e que diante da constatação de capacidade dos adotantes de dar ao menor uma família que lhe possibilite crescer com afeto, apoio e segurança, não deve a orientação sexual ou identidade de gênero ser óbice à sua concessão.

Por fim as alterações no registro civil do transexual não afasta os direitos sucessórios que possam ter já que diante da prova das mudanças realizadas mediante processo judicial, poderá ele se habitar em qualquer arrolamento no qual venha a ter condições de ser herdeiro.

Notas da Autora:

25 - MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. O direito da personalidade no novo código civil e os elementos genéticos para identidade da pessoa humana. In Novo Código Civil: Questões Controvertidas. Série Grandes Temas de Direito Privado, vol. 1. São Paulo: Método, 2003, p. 66.
26 - Nestes tribunais também há decisões negando as alterações de nome e sexo para o transexual, em menor número.
27 - Veja em http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=94241.
28 - KLABIN, Aracy Augusta Leme. Aspectos Jurídicos do Transexualismo. In Revista da Faculdade de Direto da Universidade de São Paulo. V.90, 1995, p.219.
29 - VIERA, Tereza Rodrigues. Nome e sexo: mudanças no registro civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 307-308.

Extraído de Editora Magister/doutrina, 06.01.2010

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