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20 maio 2010

COISA JULGADA NAS AÇÕES DE PATERNIDADE - APONTAMENTOS SOBRE A FLEXIBILIZAÇÃO-4

Parte 4-Final



Suzana Santi Cremasco
Mestre em Direito pela UFMG. Especializanda em Direito de Família e das Sucessões pela Escola Paulista de Direito. Professora de Processo Civil da UFMG. Professora; Membro do IBDFAM.

III.5 A coisa julgada na ação de paternidade: segurança jurídica X justiça da decisão

As ações de paternidade são uma das espécies de litígio onde a prova do fato constitutivo que sustenta a ação é mais difícil, vez que envolve inúmeras questões, muitas das quais ligadas à vida íntima do autor, do réu e de seus respectivos familiares.

Em razão disso, o risco de erro na busca pela verdade alegada pelas partes é grande e, não raras vezes, a verdade judicial atestada pela sentença não corresponde à verdade dos fatos que é atestada, nos dias de hoje, pelo exame de DNA.

O choque entre essas duas situações, a princípio aparentemente conflituosas, fez com que a doutrina e a jurisprudência começassem a questionar a autoridade da coisa julgada nas ações de paternidade, ao fundamento de que tal disparidade se caracterizaria como uma situação de extrema injustiça, que não poderia ser eternizada, em nome da segurança e da estabilidade das relações sociais.

Nesse ínterim, a questão da verdade biológica e, por conseguinte, da justiça (ou injustiça) da sentença que julga a paternidade sem amparo em prova pericial genética constituem um dos pontos principais da teoria da relativização da coisa julgada nessa espécie de ação.

Já tivemos a oportunidade de demonstrar no presente trabalho, que o critério estabelecido pelo legislador para a formação da coisa julgada, no Direito brasileiro, é objetivo e não se prende a questões como a justiça ou injustiça do conteúdo veiculado pela decisão.

O legislador, por razões políticas, opta por estabelecer um momento a partir do qual os litígios entre as partes têm fim e as questões existentes, decididas pelo Poder Judiciário, não podem mais ser objeto de discussão.

Isso se faz de forma a garantir a segurança e a estabilidade das relações jurídicas e, por conseguinte, restabelecer a paz social.

A prevalência da segurança jurídica em detrimento da justiça das decisões decorre, portanto, da escolha feita pelo legislador que, entre o risco político de haver uma sentença injusta no caso concreto e o risco político de instaurar-se a insegurança, a desordem e o caos social, se preocupou em impedir o segundo, embora também não tenha descuidado do primeiro 45. Tanto assim, que, se por um lado assegurou a garantia da intangibilidade da coisa julgada, por outro estabeleceu um complexo sistema recursal, que propicia a discussão, em mais de uma instância, em torno da justiça ou injustiça da decisão.

Quanto a esse aspecto, anota MOACYR AMARAL SANTOS:

A verdadeira finalidade de processo, como instrumento destinado à composição da lide é fazer justiça, pela atuação da vontade da lei ao caso concreto. Para obviar a possibilidade de injustiças, as sentenças são impugnáveis por via de recursos, que permitem o reexame do litígio e a reforma da decisão. A procura de justiça, entretanto, não pode ser indefinida, mas deve ter um limite por exigência de ordem pública, qual seja a estabilidade dos direitos, que inexistiria se não houvesse um termo além do qual a sentença se tornou imutável 46.

Não se questiona, aqui, nenhum desses conceitos. Entretanto, a grande questão que se coloca, quanto a esse aspecto, é que ao garantir indiscutibilidade e imutabilidade a uma decisão que contempla uma realidade distinta da realidade fática a pretexto de garantir a segurança de todos, o sistema acaba por criar um cenário de insegurança e instabilidade na qual a prestação jurisdicional é dada em torno de uma situação inexistente, na qual a resposta que o cidadão recebe do Estado para o seu conflito de interesses não é condizente com a realidade.

Nada, absolutamente nada, pode ser mais inseguro do que se admitir a perenização de um instrumento que tem o poder de dizer existente e de tornar eterna e imutável uma realidade que jamais existiu, independentemente de que se faça qualquer juízo de valor em torno da justiça ou da injustiça dessa decisão.

Trata-se de algo extremamente perigoso porque o descompasso entre os fatos e a decisão que gera a insegurança traz consigo a desconfiança, a instabilidade, a desarmonia, a desordem e o caos social, além da total descrença nas instituições. Ou seja, exatamente tudo aquilo que a autoridade conferida à coisa julgada tem por função evitar.

Uma decisão que diga que Caio é filho de Tício sem que exista entre eles qualquer tipo de vínculo biológico ou afetivo, muito antes de pacificar a controvérsia existente entre eles para que passem a conviver em harmonia só acirra o litígio que já era latente, além de ter o condão de gerar conflitos com terceiros que eventualmente mantenham relações com cada um deles.

Nesse cenário, admitir a relativização da coisa julgada é medida que se impõe de modo a preservar a sua própria autoridade e a garantir as suas próprias funções como instituto processual.

III.6. Parentalidade sócio-afetiva x direito à filiação biológica: relativização?

O estado de filho é "um direito elementar que tem a pessoa de conhecer sua origem genética, um direito de personalidade à descoberta de sua real identidade, e não mais apenas um vínculo presumido por disposição de lei" 47. E a todo tempo o filho, qualquer filho, tem direito de reclamar em juízo o status que lhe compete, não lhe sendo lícito recusar-lhe, em nenhum caso, a proclamação judicial do seu status 48.

Ocorre que, para além do estado de filho decorrente de vínculo biológico, o direito brasileiro, conhece também, por disposição constitucional e por disposição do Código Civil, o parentesco civil e, em doutrina e na jurisprudência, também o parentesco sócio-afetivo.

A teoria da paternidade sócio-afetiva ou da desbiologização da paternidade, criada por JOÃO BAPTISTA VILLELA 49 no final da década de 1970, tem por preceito fundamental que "a relação paterno-filial não se esgota na mera consideração física da hereditariedade sangüínea, mas é feita de laços afetivos, história pessoal pautada por alegrias e tristezas, redes de parentesco, de apoio, de comprometimento, de influência ambiental que a realidade dos testes de identificação genética não podem levar em consideração" 50.

Destarte, o vínculo de paternidade "não se esgota na fragilidade de um momento capaz de decidir toda uma vida, ou na fecundação do óvulo pelo espermatozóide; ela é experiência de vida, ela evolui e se desdobra com a vida, de acordo com modalidades constantemente imprevistas, cuja constância, precisamente, é a imprevisibilidade" 51.

Ocorre que a partir do momento em que se tornou "direito de toda a criança poder conhecer a sua origem, sua identidade biológica e civil, sua família de sangue" 52, que esse direito é considerado um direito fundamental de personalidade, integrante da dignidade humana, ele não poderia "ser afastado nem pelo Poder Judiciário, nem pela sociedade, nem pelo Estado" 53:

"a Constituição Federal Brasileira, invocando os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (art. 226, § 1º), assegura à criança o direito à dignidade e ao respeito (art. 227). Saber a verdade sobre a sua paternidade é um legítimo interesse da criança. Um direito humano que nenhuma lei e nenhuma Corte pode frustrar".

Nesse contexto, a questão que se coloca é: em havendo vínculo afetivo em relação à criança, será que se poderia a relativização da coisa julgada tendo como fundamento o vínculo biológico?

A nosso ver, é preciso que antes de tudo se faça a distinção entre duas realidades diferentes: o direito à identidade genética, esse sim, inafastável pela lei ou pelo Poder Judiciário, até em razão de questões ligadas à saúde, e o direito à filiação biológica, que não se superpõe à filiação afetiva. Ambos estão no mesmo plano, inexistindo qualquer tipo de gradação, valoração ou hierarquia entre eles:

"enquanto a paternidade biológica navega na cavidade sanguínea, a família afetiva transcende os mares do sangue, conectando o ideal da paternidade e da maternidade responsável, hasteando o véu impenetrável que encobre as relações sociológicas, regozijando-se com o nascimento emocional e espiritual do filho, edificando a família pelo cordão umbilical do amor, do afeto, do desvelo, do coração e da emoção, (re)velando o mistério insondável da filiação, engendrando um verdadeiro reconhecimento de estado de filho afetivo" 54.

A partir do momento em que há um vínculo sócio-afetivo estabelecido, capaz de suprir todas as necessidades materiais e espirituais inerentes à condição de pai e filho, que é a verdadeira ratio do direito à filiação, não há porque se pretender desconstituir a autoridade da coisa julgada anteriormente formada, na medida em que, neste caso, haveria a adequação dos fatos à decisão judicial, com a sua consequente compatibilização. Nenhum motivo há para que, sem prejuízo à identidade genética, esse vínculo seja perdido.

Como acentua ANTÔNIO EZEQUIEL INÁCIO BARBOSA:

Não se passa a ser pai, no sentido mais profundo da palavra, por causa de uma decisão judicial. Tampouco se deixa de sê-lo em razão de uma, ainda que miraculosa, nova descoberta científica. A autêntica paternidade não se funda na verdade biológica, mas está, antes, calcada na verdade afetiva 55.

Daí porque nesse cenário, não se poderia permitir a flexibilização

IV. CONCLUSÃO

À vista de tudo quanto se expôs, é conclusão necessária que a teoria da relativização da coisa julgada nas ações de paternidade encontra amparo na Constituição Federal e, igualmente, em uma interpretação sistemática dos preceitos do Código de Processo Civil, sendo que sua aplicação é desejável sempre houver descompasso entre a realidade assentada pela sentença e a realidade dos fatos efetivamente existentes e desde que não haja vínculo de filiação sócio-afetiva entre as partes.

Notas da Autora:

45 - NERY JR., 2004, p. 507.
46 - MOACYR AMARAL SANTOS apud DELGADO, 2002, p. 91.
47 - WELTER, 2002, p. 94.
48 - PEREIRA, 2004, p. 361.
49 - VILLELA, 1979.
50 - LEITE, 1999, p. 193.
51 - LEITE, 1999, p. 193.
52 - ROLF MADALENO apud WELTER, 2002, p. 96.
53 - WELTER, 2002, p. 126.
54 - WELTER, 2002, p. 118.
55 - BARBOSA, 2003, p. 64.

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Extraído de Editora Magister/doutrina

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