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18 maio 2010

COISA JULGADA NAS AÇÕES DE PATERNIDADE - APONTAMENTOS SOBRE A FLEXIBILIZAÇÃO-2

Parte 2/4




Suzana Santi Cremasco
Mestre em Direito pela UFMG. Especializanda em Direito de Família e das Sucessões pela Escola Paulista de Direito. Professora de Processo Civil da UFMG. Professora; Membro do IBDFAM.


II. A FLEXIBILIZAÇÃO DA COISA JULGADA


II.1 Breves considerações sobre a coisa julgada

A coisa julgada é um dos temas de Direito Processual que, ao longo da história, maior atenção recebeu por parte dos mais qualificados doutrinadores da literatura jurídica mundial.

Não obstante, como bem identificou BARBOSA MOREIRA, "séculos de paciente e acurada investigação foram incapazes de produzir [...] ao menos a fixação de uma base comum em que se possam implantar as multiformes perspectivas adotadas para o tratamento da matéria" e "longe se está de alcançar um consenso mínimo sobre a determinação mesmo do ponto de partida" 7.

É certo que digressões acerca do instituto da res iudicata e do seu tratamento na legislação, doutrina e jurisprudência dos diversos países, ao longo dos tempos 8, extrapolam, por completo, o objeto de exame do presente trabalho.

Entretanto, não há como se discutir o fenômeno da flexibilização da coisa julgada sem que se fixe o conceito do instituto no Direito brasileiro e sem que se identifiquem ao menos os seus fundamentos e as suas funções na disciplina jurídica em vigor.

O art. 467 do Código de Processo Civil, adotando a concepção de LIEBMAN 9, define a coisa julgada material como "a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário".

A res iudicata apresenta-se, assim, não como um efeito da sentença, como sustenta CHIOVENDA 10, mas como uma qualidade especial que a lei confere ao julgado, de forma a garantir a imutabilidade e a indiscutibilidade do conteúdo nele veiculado, a fim de evitar a perpetuação dos litígios existentes e, por conseguinte, restabelecer a paz e a segurança indispensáveis ao convívio social. É a coisa julgada "uma exigência da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, pois que evita que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, obsta a que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a dirimir. Ela é, por isso, expressão dos valores de segurança e certeza que são imanentes a qualquer ordem jurídica 11.

Como "resultado da definição da relação processual" 12, ou seja, da solução do conflito de interesses existente entre as partes e submetido à apreciação e acertamento por parte do julgador, a sentença transitada em julgado "tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas" (art. 468, CPC), tornando-se não só de observância obrigatória para todos os sujeitos do processo, mas também impedindo a reabertura de discussão em relação àquele litígio já julgado.

A razão de ser da imutabilidade produzida pela coisa julgada e, portanto, o seu fundamento 13, é o princípio da segurança jurídica, que se manifesta através da estabilidade que é conferida às decisões judiciais que põem fim aos conflitos de interesses existentes e por força da qual, a partir de um dado momento, o seu conteúdo não pode mais ser alterado senão naquelas hipóteses expressamente previstas em lei e desde que observados os procedimentos legais adequados para tanto.

Ao garantir a imutabilidade das decisões e a segurança das relações jurídicas, a coisa julgada atua como mecanismo de pacificação social. Há, assim, uma opção política clara do legislador, no sentido de privilegiar a estabilidade em detrimento da busca indefinida por justiça. Ao assegurar a imutabilidade e a indiscutibilidade das decisões, a coisa julgada tem por função "estender ou projetar os efeitos da sentença indefinidamente para o futuro" 14 e, como tal, proporcionar o alcance de equilíbrio e estabilidade nas relações dos jurisdicionados.

Isso se dá de duas formas: de um lado, permite-se à parte argüir a coisa julgada como matéria de defesa, de modo a impedir um novo julgamento sobre aquilo que já foi anteriormente decidido (função negativa); de outro, vincula os juízes de processos futuros a respeitar o que foi decidido no processo anterior sempre que invocado como fundamento questão acobertada pela autoridade da coisa julgada (função positiva). "Quer isso dizer que, pela primeira função da coisa julgada, ‘não podem as partes, unilateralmente, escapar aos efeitos da declaração jurisdicional’. E que, pela segunda, ‘cabe a qualquer dos litigantes a exceptio rei iudicatae, para excluir novo debate sobre a relação jurídica decidida’" 15.

A garantia da intangibilidade da coisa julgada, contudo, não é absoluta. Tanto assim que o ordenamento jurídico brasileiro contempla a ação rescisória como mecanismo apto a desconstituí-la, desde que presentes os requisitos previstos nos arts. 485 e seguintes do Código de Processo Civil. É o que ocorre naqueles "casos em que o legislador considerou os vícios tão graves que justifica abrir-se mão da segurança em benefício da garantia de justiça e de respeito aos valores maiores consagrados na ordem jurídica" 16.

Há casos, porém, em que, embora a sentença transitada em julgado não contemple a melhor aplicação da lei ao caso concreto, não é dado à parte valer-se da via rescisória para desconstituir a decisão, seja porque já decorrido o prazo decadencial de dois anos para a propositura da ação, seja porque a hipótese não se enquadra entre aquelas previstas no rol do art. 485 do CPC. Nessas circunstâncias, o que fazer?

A questão sempre foi controvertida e há muito vem sendo discutida no Direito Processual brasileiro, por autores preocupados com o conflito, não raras vezes existente, entre a segurança jurídica garantida pela coisa julgada e a (in)justiça do conteúdo veiculado pela decisão.

Entretanto, foi apenas no final da década de 1990 que a doutrina e a jurisprudência voltaram suas atenções no sentido de repensar, de fato, o instituto da coisa julgada, ao fundamento de que "não é legítimo eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternização de incertezas" 17.

Surgia, assim, o fenômeno da flexibilização da coisa julgada.

II.2 A flexibilização da coisa julgada: conceito, fundamento e limites

A segurança nas relações jurídicas é um dos fins perseguidos pela ordem processual e a coisa julgada é o instrumento de que dispõe o legislador para alcançá-la. Através da imutabilidade e da indiscutibilidade das decisões asseguradas pela auctoritas rei judicatae, extinguem-se os litígios existentes e se restabelece a paz e a segurança necessárias ao convívio social.

Em determinadas hipóteses, porém, a intangibilidade da coisa julgada culmina por proteger situações que, por alguma razão, não deveriam eternizar-se, gerando certo desconforto e certo inconformismo na comunidade jurídica e social em geral.

A relativização da coisa julgada surge, nesse contexto, como um mecanismo para mitigar a imutabilidade e a indiscutibilidade asseguradas pelo instituto, de forma a garantir, em detrimento da segurança jurídica das relações sociais, que o conteúdo veiculado pela decisão não atente contra os princípios da legalidade e da moralidade, contra a realidade dos fatos e, sobretudo, contra os preceitos estatuídos pela Constituição.

Nos dizeres de TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER, "trata-se [...] de uma certa desmistificação da coisa julgada" que, "tal qual vinha sendo concebida pela doutrina tradicional, já não corresponde mais às expectativas da sociedade, pois, a segurança que, indubitavelmente, é o valor que está por detrás da construção do conceito da coisa julgada, já não mais se consubstancia em valor que deva ser preservado a todo custo, à luz da mentalidade que vem prevalecendo" 18.

No direito brasileiro, a superação da auctoritas rei judicatae passou a ser admitida, pouco a pouco, em nome de princípios maiores existentes na sistemática em vigor, que encontram respaldo nos valores que estão a inspirar o direito processual moderno, que não mais se contenta em se apresentar como um fim em si mesmo e cada vez mais busca ser instrumento de atuação e outorga, válida e eficaz, do direito material tutelado.

A idéia que norteia a teoria da relativização da coisa julgada é a de que a segurança jurídica das relações sociais e, por conseguinte, a garantia da imutabilidade e da indiscutibilidade das decisões não são valores absolutos no ordenamento jurídico pátrio – como, aliás, nenhum valor o é – e, enquanto tal, não pode se sobrepor a outros valores de igual ou maior importância, como a constitucionalidade, a moralidade, a veracidade e a justiça dos provimentos jurisdicionais.

A princípio, são inúmeras (e inimagináveis) as hipóteses que autorizariam a relativização da coisa julgada com fundamento no interesse público ou a fim de evitar injustiças sérias e flagrantes, eis que ofensas a princípios e garantias, abusos, imoralidades, aberrações, injustiças e fraudes, em tese, seriam passíveis de ocorrer em qualquer litígio trazido a apreciação do Poder Judiciário.

Entretanto, se assim inadvertidamente o fosse, subvertida estaria toda a ordem jurídica processual e estariam abertas as portas para a instabilidade, a desordem e o caos social decorrente da repropositura sem fim de ações anteriormente julgadas. De fato, sendo o inconformismo com a derrota inerente a condição humana, não seria raro se deparar com demandas fundadas em "injustiças flagrantes" sem que injustiça alguma tivesse havido no julgamento.

Conscientes disso, desde o primeiro momento, os partidários da teoria da relativização da coisa julgada sempre se preocuparam em fixar, pontualmente, aquelas situações excepcionais em que efetivamente a superação da disciplina geral da coisa julgada se justificaria, de forma a atender aos fins do processo e da própria ordem jurídica em vigor.

A teoria da relativização, com efeito, não tem por escopo aniquilar ou desvalorizar a autoridade da coisa julgada; tampouco se pretende fazer dela a regra, porque, nesse caso, reconhece-se, "o sistema processual perderia utilidade e confiabilidade, mercê da insegurança que isso geraria" 19. O que se propõe com a flexibilização, na verdade, é o cuidado com situações excepcionais, que devem ser tratadas mediante critérios também excepcionais que limitam as hipóteses de relativização.

Embora se reconheça também que "não existem critérios objetivos para a determinação das situações em que essa autoridade deva ser afastada ou mitigada, nem dos limites dentro dos quais isso deve ocorrer" 20, a valoração acerca da ocorrência ou não de situações que autorizem ou justifiquem a relativização da autoridade da coisa julgada deverá ser feita pelo magistrado, quando da análise e decisão do caso concreto, momento adequado para tal aferição 21.

Sempre que o magistrado estiver diante de absurdos, injustiças graves ou transgressões constitucionais – como ocorre naquelas situações em que vínculos familiares que inexistem são declaradas como existentes ou vice-versa – dever-se-ia flexibilizar a autoridade da coisa julgada, de forma a assegurar a correta aplicação da lei ao caso concreto. Caso contrário, a imutabilidade e a indiscutibilidade do conteúdo da decisão deveriam ser mantidas, consoante estabelecido na legislação processual. O que não é lícito é "entrincheirar-se comodamente detrás da barreira da coisa julgada e, em nome desta, sistematicamente assegurar a eternização de injustiças, de absurdos, de fraudes ou de inconstitucionalidades" 22 como tantas vezes a história do Direito já assistiu ocorrer, de forma impotente e triste.

Notas da Autora:

7 - BARBOSA MOREIRA, 1970, p. 9.
8 - Para tanto, cf.: NEVES, 1971.
9 - "A autoridade da coisa julgada, que se pode definir, com precisão, como a imutabilidade do comando emergente de uma sentença. Não se identifica ela simplesmente com a definitividade e intangibilidade do ato que pronuncia o comando; é, pelo contrário, uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que reveste o ato também em seu conteúdo e torna assim imutáveis, além do ato em sua existência formal, os efeitos, quaisquer que sejam, do próprio ato". LIEBMAN, 1981, p. 54.
10 - CHIOVENDA, 2002.
11 - SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. Lisboa: Lex, 1997, p. 568. Apud THEODORO JR., 2006, p. 165.
12 - CHIOVENDA, Giuseppe. Apud OSVALDO ALFREDO GOZAINI, p. 253.
13 - Está-se aqui diante do fundamento político da autoridade da coisa julgada. Quanto ao fundamento jurídico, anotam JOSÉ AUGUSTO DELGADO, 2005, e SÉRGIO GILBERTO PORTO, 2006, que "inexiste, na doutrina, unidade de pensamento sobre o fundamento jurídico do instituto da coisa julgada. [...] Há quem sustente que a res iudicata constitui simples presunção da verdade; outros asseguram tratar-se de uma ficção; e outros, ainda, que se resume em ser mera verdade formal". A questão, de fato, é controvertida e várias são as teorias que procuram explicá-la: "(a) a da presunção de verdade contida na sentença (Ulpiano, Pothier e outros); (b) a da ficção de verdade ou da verdade artificial (Savigny); (c) a da força legal, substancial da sentença (Pargenstecher); (d) a da eficácia da declaração contida na sentença (Hellwig, Binder, Stein); (e) a da extinção da obrigação jurisdicional (Ugo Rocco); (f) a da vontade do Estado (Chiovenda e doutrinadores alemães); (g) a de que a autoridade da coisa julgada está no fato de provir do Estado, isto é, na imperatividade do comando da sentença onde concentra-se a força da coisa julgada (Chiovenda); (h) a teoria de Liebman que vê na coisa julgada uma qualidade especial da sentença".
14 - WAMBIER, 2003, p. 21.
15 - THEODORO JR, 2008, p. 11.
16 - THEODORO JR., 2006, p. 139.
17 - DINAMARCO, 2002, p. 39.
18 - WAMBIER, 2003, p. 13.
19 - DINAMARCO, 2002, p. 54.
20 - DINAMARCO, 2002, p. 57.
21 - DINAMARCO, 2002, p. 67.
22 - DINAMARCO, 2002, p. 69.

Extraído de Editora Magister/doutrina

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