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01 outubro 2010

OS FUNDAMENTOS DOS CONTRATOS NO NOVO ORDENAMENTO CIVIL



Voltaire Giavarina Marensi
Advogado e Professor no DF; Conselheiro Editorial da Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil.

Renata Silva Pires
Pós-graduada em Direito Processual Civil.


O contrato pode ser conceituado, em uma visão clássica ou moderna, como sendo um negócio jurídico bilateral ou plurilateral, que visa à criação, modificação ou extinção de direitos e deveres com conteúdo patrimonial. Em um primeiro momento, a pessoa do devedor era submetida aos interesses de seu credor. Porém, mais tarde, assinala Arnaldo Rizzardo, "a obrigação passou a ter realce sobretudo patrimonial. A execução foi encontrar a satisfação dos créditos no patrimônio do devedor" (1). No direito romano, doutrina (2) Pontes de Miranda, "as relações jurídicas do direito das obrigações eram mais estritamente pessoais do que hoje. O vinculum iuris prendia as pessoas do devedor e do credor, de modo que o objeto da prestação era secundário. O direito germânico foi que concorreu para essa deslocação dos pontos de ligação, caracterizando a pessoalidade do direito e das pretensões como relação entre sujeito ativo e passivo, porém sem a inserção da pessoa em si.

Todavia, diante das profundas alterações pelas quais vem passando o instituto, alguns autores, como Paulo Nalin (3), propõem um conceito pós-moderno de contrato. Para este autor, o contrato constitui "a relação jurídica subjetiva, nucleada na solidariedade constitucional, destinada à produção de efeitos jurídicos existenciais e patrimoniais, não só entre os titulares subjetivos da relação, como também perante terceiros". Tal conceito pode ser justificado primeiro porque o contrato está amparado em valores constitucionais. Segundo, porque envolve, também, situações jurídicas existenciais das partes contratantes. Terceiro, porque o contrato pode gerar efeitos perante terceiros, sendo essa, justamente, a feição da eficácia externa da função social dos contratos.

Atualmente, está em voga no Direito Comparado, e mesmo no Brasil, afirmar sobre a "crise dos contratos", chegando a se dizer que o contrato tende a desaparecer, surgindo outro instituto em seu lugar. Fala-se que o fenômeno da padronização das transações teria subvertido inteiramente o princípio da liberdade contratual.

Na verdade, crise significa mais mudança de estrutura do que possibilidade de extinção. E é realmente isto que está ocorrendo quanto ao contrato: uma intensa e convulsiva transformação, uma renovação dos pressupostos e princípios da Teoria Geral dos Contratos, que tem por função redimensionar seus limites, e não extingui-los.

É um grave equívoco aceitar e compreender o contrato com sua estrutura clássica, concebido sob a égide do pacta sunt servanda, puro e simples, com a impossibilidade de revisão das cláusulas e do seu conteúdo. Surgem princípios sociais contratuais, como a boa-fé objetiva, a função social dos contratos, a justiça contratual e a equivalência material que mitigam sobremaneira a força obrigatória dos contratos, em prol de uma interpretação mais justa, baseada na lei e nos fatos sociais. Assim, não se pode falar em extinção do contrato, mas no renascimento de um novo instituto para atender a dinâmica social.

Os princípios assumem papel de importante destaque na atual codificação civil, podendo o Código Civil ser considerado um Código de Princípios.

Os princípios podem estar expressos, como o da função social dos contratos (art. 425, do CC). Também podem ser implícitos, como o princípio da confiança.

O modelo do Código Civil 2002 também determina uma nova visão dos institutos privados, que devem ser vistos dentro da ótica constitucional.

Cumpre destacar os princípios do Direito Civil Constitucional, que devem ser aplicados aos contratos e às relações civis. São eles: dignidade da pessoa humana, solidariedade social e isonomia.

Comentado este ponto, mister ressaltar a horizontalidade dos direitos fundamentais que impõe o reconhecimento da existência e aplicação dos direitos civis constitucionais no âmbito privado.

Vale lembrar que os princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva constituem cláusulas gerais. E, segundo o ilustre professor Miguel Reale, as cláusulas abertas traduzem a operabilidade do novel diploma civilista.

O ponto nodal deste tópico traz a nova visão do que seria o princípio da autonomia privada. Estabelece uma releitura do princípio da autonomia da vontade, uma vez que os princípios e as normas constitucionais impõem, de forma cogente, sua aplicação nas relações civis. Isto significa dizer que mesmo se tratando do âmbito privado, os contratantes devem respeitar as regras de ordem pública.

Essa nova visão mitiga a plenitude advinda da vontade, como era estabelecida pelos romanos. Vejamos o que diz o enunciado 23 da I Jornada de Direito Civil do CJF:

"Enunciado 23 – Art. 421: A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana."

O professor Miguel Reale sabiamente disciplinou: "O imperativo da ‘função social do contrato’ estatui que este não pode ser transformado em um instrumento para atividades abusivas, causando dano à parte contrária ou a terceiros, uma vez que, nos termos do art. 187, ‘também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes’."

Assim, o contrato é reconstruído em um contexto social, deixando de ser interesse apenas das partes contratantes.

Na realidade, diante da personalização e constitucionalização do Direito Civil, podemos afirmar que a real função do contrato não é a segurança jurídica, mas sim atender aos interesses da pessoa humana.

Decorrente do princípio da autonomia privada, a força obrigatória dos contratos prevê que tem força de lei o estipulado pelas partes na avença, constrangendo os contratantes ao cumprimento do conteúdo completo do negócio jurídico. Tal princípio também é conhecido como pacta sunt servanda.

No entanto, o princípio da força obrigatória dos contratos sofre limitações. Como exemplo, temos a relativização pela aplicação da teoria da imprevisão nas relações civis comuns e pela teoria da nulidade da base objetiva do negócio jurídico (ou onerosidade excessiva) nas relações de consumo.

Outro princípio que merece destaque no Código Civil de 2002 é o da boa-fé contratual. A boa-fé objetiva constitui um princípio geral, aplicável ao direito.

Segundo o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, podemos definir boa-fé como "um princípio geral de Direito, segundo o qual todos devem comportar-se de acordo com um padrão ético de confiança e lealdade. Gera deveres secundários de conduta, que impõem às partes comportamentos necessários, ainda que não previstos expressamente nos contratos, que devem ser obedecidos a fim de permitir a realização das justas expectativas surgidas em razão da celebração e da execução da avença".

Tal princípio se coaduna com um dos princípios do Código Civil, qual seja, eticidade. Na codificação civilista anterior os contratos com cláusulas obscuras eram analisados sob o prisma da boa-fé subjetiva. Já o Novo Código Civil trata a boa-fé em sua acepção objetiva.

Esse princípio tem uma íntima conexão com a função social. Com efeito, registra Gustavo Tepedino (4) "a função social associa-se ao fenômeno conhecido como funcionalização das estruturas jurídicas, processo que atinge todos os fatos jurídicos".

Este princípio se encontra corporificado no Enunciado 22 do CJF, e significa que em um contrato as partes devem guardar equilíbrio entre as prestações pactuadas, ou seja, "constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas".

Em definitivo, diz Gustavo Tepedino: "a função social – elemento interno do contrato – impõe aos contratantes a obrigação de perseguir, ao lado de seus interesses privados, interesses extracontratuais socialmente relevantes, assim considerados pelo legislador constitucional, sob pena de não merecimento de tutela do exercício da liberdade de contratar".

Um princípio que também merece destaque na nova ordem civilista é o da relatividade dos efeitos do contrato, que impõe que o contrato vincula em nível obrigacional apenas as próprias partes contratantes (eficácia interpartes). Mesmo esse princípio sofre mitigações na codificação privada e mesmo na legislação extravagante. Pois, se reconheceu que o contrato pode ter uma eficácia trans-subjetiva à luz do princípio da boa-fé. Como por exemplo, a estipulação em favor de terceiro e o contrato com pessoa a declarar.

A tutela externa do crédito excepciona, também, o princípio da relatividade dos efeitos do contrato. Essa expressão foi criada pelo professor Antônio Junqueira de Azevedo. A tutela externa do crédito sustenta a responsabilização do terceiro que interfere na relação jurídica alheia violando o princípio da boa-fé.

Pelo exposto, se conclui que em razão das novas necessidades e preocupações, principalmente sociais, fez-se imperioso uma reforma na codificação das relações civilistas. O novo sistema civil implantado é regido pela tipificação aberta, devido ás cláusulas gerais, fornecendo ao juiz um novo instrumento de interpretação no âmbito contratual. Cabe ao juiz, definindo seu sentido e alcance, aplicar as cláusulas gerais (boa-fé, função social e ordem pública) como novos princípios do direito contratual que são, atualmente, da sua essência no julgamento das relações obrigacionais.

NOTAS:

1 - Direito das Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 10.
2 - Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. v. 22. p. 8.
3 - NALIN, Paulo. Do contrato conceito pós-moderno. Juruá.
4 - Temas de Direito Civil. Renovar, 2009. t. III. p. 150.

Extaído de Editora Magister/doutrina

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