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25 outubro 2010

CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO DE ACESSO À JUSTIÇA: Imperativo Ético do Estado Democrático de Direito-6

Parte 6-Final


MARCELO MALIZIA CABRAL
Juiz de Direito/TJRS



REFLEXÕES FINAIS

O direito humano de acesso à justiça constitui tema da mais alta relevância na atualidade, seja em razão da sua extensão, seja em decorrência da necessidade de sua afirmação.
Como houve oportunidade de se demonstrar, garantir-se concretude a esse direito implica, por princípio, ofertar-se informação precisa à humanidade quanto aos direitos que titulariza, os quais, em regra, são desconhecidos por dezenas de milhões de brasileiros.
Um grande esforço de informação e de educação há de produzir seres humanos conscientes da verdadeira dimensão que a Carta Política outorgou aos povos que ocupam o território nacional.
Ao lado da consciência das promessas de garantia de direitos humanos insculpidas pela República Federativa do Brasil em sua norma maior, ao povo deve chegar, igualmente, informação sobre a magnitude das violações a esses direitos, impostas diariamente à humanidade.
Somente o conhecimento coletivo e integral da amplitude dos direitos conferidos à população, da necessidade de sua concretização imediata e do descomprometimento do poder público e da sociedade para com esses compromissos éticos, podem construir lastro firme e dar vida ao direito humano de acesso à justiça.
Em outras palavras, sem que a comunidade se aproprie do rol de direitos que a ordem jurídica lhe confere e do sistemático desrespeito a essas ordenações, não haverá percepção das injustiças que lhe são impostas cotidianamente.
Da mesma forma, sem essas experiências, a população não experimentará a necessidade incessante da busca por justiça e não reclamará a concretização desse direito, pressuposto do alcance de todos os outros.
Então, somente com educação e informação, formar-se-á uma cidadania consciente, questionadora, organizada, articulada, protagonista da luta pela asseguração de seus direitos. Esse, exatamente, constitui o primeiro elemento do direito humano de acesso à justiça.
Somente uma cidadania informada do conteúdo e da extensão de seus direitos promoverá a mobilização social necessária à realização das políticas públicas e das ações afirmativas imprescindíveis à realização do direito humano de acesso à justiça.
Importante registrar-se que essa política de informação e de disseminação do conhecimento dos direitos humanos há de ser direcionada, preferencialmente, às comunidades que registram hipossuficiência social, porquanto a igualdade material somente será alcançada com o estabelecimento de ações estratégicas à sua redução.
O conceito de direito humano de acesso à justiça carece, da mesma forma, de revisão. Com efeito, o que se verifica, na atualidade, é uma garantia de acesso à justiça eminentemente formal.
O sistema de distribuição de justiça está aberto a todas as pessoas. Todavia, somente aquelas que dispõem de condições sociais, econômicas e culturais mínimas, dele se utiliza.
E essa realidade se instala como decorrência de diversos fatores que limitam o acesso da população à justiça, tais como a desinformação sobre o conteúdo dos direitos humanos e dos mecanismos de resolução de conflitos existentes; o elevado valor das custas processuais; a insuficiência dos serviços ofertados pelas Defensorias Públicas; a impossibilidade econômica e social de se suportar a longa tramitação dos processos até a realização do direito; a distância física, social e cultural das comunidades com os locais de prestação de justiça e com as pessoas que nele trabalham; a falta de compreensão das formalidades e da linguagem próprias do sistema de justiça formal, assim como de sua morosidade, dentre outros.
A revisão conceitual necessária é justamente aquela capaz de reduzir esses obstáculos em número e intensidade, o que reclama o desenvolvimento de políticas públicas e de ações afirmativas.
Nesse sentido, há de se caminhar na busca da democratização, da desburocratização, da informalização, da celeridade e da consensualização do acesso à justiça.
Somente se alcançará a tão sonhada igualdade material dos usuários dos serviços de pacificação social com a real universalização dos mecanismos de resolução de conflitos, quando os serviços de distribuição de justiça estiverem próximos da população, nos bairros, nos centros comunitários, assim como nos grupos sociais mais distantes e periféricos.
Além de se integrar aos contextos territorial, social e cultural, os mecanismos de pacificação social hão de estabelecer comunicação adequada com seus usuários. Hão de existir, assim, locais para a informação e para a distribuição de justiça nos centros comunitários e nas escolas, em parceria com os serviços já existentes nas comunidades em situação de hipossuficiência social.
O atendimento há de ser descomplicado, a linguagem acessível, o que se mostra possível com a integração, a articulação e a utilização preferencial dos recursos humanos existentes nas próprias comunidades.
Valorizam-se, dessa forma, os recursos comunitários, seu protagonismo e reconhece-se seu potencial organizacional, passível, inclusive, de proceder à pacificação dos conflitos existentes, com geração de justiça e paz.
Do mesmo modo, os mecanismos tradicionais de resolução de conflitos formais, lentos e dispendiosos hão de ceder lugar a ferramentas informais, rápidas, gratuitas, que privilegiem o consenso, o diálogo, o entendimento.
Para que se alcance esse objetivo, necessária se faz a ruptura de paradigmas culturais, dentre os quais aquele que traduz a justiça como algo alcançável somente após um longo tempo de batalha, com a observância e a reverência a fórmulas e formalidades.
Esse novo modelo de justiça participativa, informativa, consensual, próxima, acessível, somente será alcançado com a integração e com o estabelecimento de parcerias entre o poder público e a sociedade.
A valorização de ferramentas pouco utilizadas e algumas vezes até mesmo desvalorizadas, como a informação, a orientação, a conciliação, a mediação, a arbitragem, dentre outras, há de ser procedida pelos agentes do sistema de justiça e pela sociedade.
A justiça há de ser pensada como instrumento de concórdia, de consenso, de restabelecimento de relações, de reajuste de regras de convivência, de diálogo, valores sempre buscados com informalidade, rapidez e eficiência.
A jurisdição formal, instrumento a que se resume o acesso à justiça hodiernamente, há de constituir instrumento complementar, utilizado somente após o insucesso daquelas ferramentas, ou quando não recomendada sua utilização.
Óbices legais à garantia do acesso materialmente igualitário e à redução da morosidade do sistema formal de prestação de justiça também haverão de ser transpostos.
Enfim, com a ruptura de paradigmas, utilização de ferramentas modernas, valorização da participação comunitária, desenvolvimento de políticas públicas e ações afirmativas de ampliação do acesso à justiça, será possível materializar-se o acesso universal a um sistema de resolução de conflitos seguro, rápido e eficaz, com produção de justiça e paz.
O desafio, agora, prende-se à concretização do direito humano de acesso à justiça, transformando-se em realidade a promessa de justiça para todos.


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Extraído da Coletânea de trabalhos de conclusão de curso apresentados ao Programa de Capacitação em Poder Judiciário - FGV Direito Rio. – Porto Alegre : Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Departamento de Artes Gráficas, 2009. Coletânea de Administração Judiciária, v. 5

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