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27 outubro 2010

IMPOSTO SOBRE TRANSMISSÃO CAUSA MORTIS E DOAÇÃO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, as Divergências da Legislação, Jurisprudência, Doutrina e sua Aplicação Prática-1,

Parte 1/3


Rita de Cássia Andrade
Juíza de Direito.

1. Introdução
O art. 155 da Constituição Federal disciplina que:
"Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
I - transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos;
(...)
§ 1º O imposto previsto no inciso I:
I - relativamente a bens imóveis, e respectivos direitos, compete ao Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal;
II - relativamente a bens móveis, títulos e créditos, compete ao Estado onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal;
III - terá competência para sua instituição regulada por lei complementar:
a) Se o doador tiver domicílio ou residência no exterior;
b) Se o de cujos possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior;
IV - terá suas alíquotas máximas fixadas pelo Senado Federal 1."
À vista do novo panorama traçado sobre a transmissão causa mortis e doação, importa aqui tentar desmembrar, ainda que de maneira superficial, os aspectos mais relevantes atinentes ao tributo, seus elementos, bem assim a diversidade de interpretação de sua regra matriz.
O ITCMD é um imposto Estadual devido por toda pessoa física ou jurídica que receber bens ou direitos como herança, diferença de partilha ou doação. Tem como fato gerador a transmissão, a qualquer título, por ato não oneroso, de imóveis e de direitos a eles relativos, inclusive bens móveis, títulos e créditos.
O ITCMD incide sobre bens imóveis situados no Estado e respectivos direitos, como também sobre os bens móveis, títulos e créditos, quando o inventário ou arrolamento se processar ou o doador tiver domicílio no Estado.
Em se tratando de doador com residência ou domicílio no exterior, ou ainda se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior, a Constituição exige que nesta hipótese seja regulamentado por lei complementar.
Desde já se afigura inequívoco que o primeiro imposto de competência privativa dos Estados, incidente sobre a transmissão causa mortis e doações de quaisquer bens ou direitos, não nos parece uma exação simples no seu contexto de interpretação e aplicação útil, notadamente no que diz respeito nos processos de inventário e arrolamento de bens, como teremos a oportunidade de verificar no decorrer da análise desta incidência específica. É uma oportunidade de rediscussão do tema, ampliando o seu horizonte, pois será preciso também traçar um perfil de análise material e subjetiva do mesmo, para sua melhor compreensão pedagógica.
O imposto sobre transmissão causa mortis e doação - ITCMD, não tem merecido muita atenção por parte da doutrina brasileira, o que implica numa carência de opiniões, que se revela em desarmonia com a grande quantidade de problemas que sua aplicação tem produzido no dia-a-dia, conforme se depreende dos desencontrados entendimentos e questionamentos judiciais sobre o imposto. Vale identificar e trazer a baile alguns dos temas polêmicos em relação ao referido tributo, analisando o aspecto da coexistência das diversas legislações estaduais no seu disciplinamento dos fatos geradores, bases de cálculo, alíquotas, contribuintes etc., dos julgados e da jurisprudência dos nossos tribunais.
No Brasil, desde a Emenda Constitucional nº 18/65 que serviu de base para o atual CTN, a Lei nº 5.172/66, no capítulo III, seção III, disciplina sobre a Transmissão de Bens Imóveis e de Direitos a eles Relativos, conforme se depreende do art. 35, incisos I a III e seu parágrafo único.
A Emenda Constitucional nº 1/69, no seu art. 23, I, §§ 1º e 2º, disciplinava que as transferências inter vivos e causa mortis eram de competência exclusiva dos Estados e do Distrito Federal. Vejamos o que transcreve seu texto:
"Art. 23. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
I - transmissão, a qualquer título, de bens imóveis por natureza e a cessão física e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como sobre a cessão de direitos à sua aquisição; (grifamos)
§ 2º O imposto de que trata o item I compete ao Estado onde está situado o imóvel, ainda que a transmissão resulte de sucessão aberta no estrangeiro; sua alíquota não excederá os limites estabelecidos em resolução do Senado Federal por proposta do Presidente da República, na forma prevista em lei."
A competência exclusiva dos Estados e do Distrito Federal se manifestava claramente no enunciado transcrito, precisamente na expressão "a qualquer título". Com o novo ordenamento jurídico a transferência por ato oneroso inter vivos passou para a competência tributária dos municípios, denominado ITBI, e as transferências causa mortis e inter vivos por ato gratuito permaneceram na competência dos estados, sob o título de imposto sobre transmissão causa mortis e doação – ITCMD.
Houve, portanto, uma divisão de competência na transmissão de bens imóveis e respectivos direitos. Aos Estados e o Distrito Federal coube a responsabilidade para instituir e cobrar imposto sobre herança e doações a título gratuito. E aos Municípios foi atribuída competência para tributação do imposto nas transmissões inter vivos a título oneroso, incidente sobre venda e as figuras assimiladas desse direito, como usufruto oneroso, cessão de uso a título oneroso, habitação, direito de superfície, servidões prediais sobre bens imóveis urbanos e rústicos, e outras.
Incluiu-se, ainda, na competência dos Estados e do Distrito Federal, a tributação sobre a transmissão inter vivos a título gratuito (doação), dos bens móveis, títulos e créditos.
Sendo que relativamente a bens móveis, títulos e créditos, compete ao Estado, ou ao Distrito Federal, onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador.
Na compreensão de Regina Fernandes "com a extensão da competência tributária, passaram os Estados-membros e o Distrito Federal a tributar a riqueza mobiliária, mais expressiva que a imobiliária, possuindo, assim, maior relevância no contexto da tributação" 2.
Da análise dos dispositivos constitucionais em vigência, vê-se que houve uma redução da competência dos Estados-membros em razão da transferência da competência impositiva do imposto sobre transmissão de bens imóveis a título oneroso aos Municípios. Mas não entendemos que essa redução tenha sido compensada com a ampliação da competência Estadual e Distrital na transmissão de bens e direitos sobre móveis, a título gratuito. Pois, indiscutivelmente, a arrecadação do ITBI é muito superior, levando-se em conta a alíquota aplicada pelos municípios, o grande crescimento imobiliário e a verticalização das construções.
Outra inovação trazida pela CF/88 foi a determinação estabelecida no inciso III, de que a competência para a instituição do imposto será regulada por lei complementar se o doador tiver domicílio ou residência no exterior e se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior.
De notar-se que cada Estado tem sua legislação própria na regulação do ITCMD, embora todos cuidem de aspectos jurídicos comuns, mas existem algumas variáveis na imposição tributária, notadamente em relação as hipóteses de incidência, bases de cálculo e alíquotas, isto em face da ausência de lei complementar dispondo sobre normas gerais, na forma preconizada no art. 146, III, da CF, como veremos do estudo comparativo entre a legislação de alguns Estados.
O STF entendeu que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, na ausência de lei complementar, podem editar as leis necessárias à instituição do imposto em seu território utilizando-se da competência legislativa excepcional que receberam do constituinte de 1988 (art. 24, § 3º, da CF/88 e art. 34, § 3º, do ADCT), salvo quando se trata de exigência específica de lei complementar (letras a e b do inciso III do art. 155 da CF/88) (STF, 1ª T., RE 236. 931-8/SP. Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 10.08.99, DJ 29.10.1999) 3.
2. Das Hipóteses de Incidência do ITCMD
O CTN – Lei nº 5.172/66, capítulo III, seção III, que trata do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis e de Direitos a eles Relativos – disciplina que:
"Art. 35. O imposto, de competência dos Estados, sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos a eles relativos tem como fato gerador:
I – a transmissão, a qualquer título, da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis, por natureza ou por acessão física, como definidos na lei civil;
II - a transmissão, a qualquer título, de direitos reais sobre imóveis, exceto os direitos reais de garantia;
III – a cessão de direitos relativos às transmissões referidas nos incisos I e II.
Parágrafo único. Nas transmissões causa mortis, ocorrem tantos fatos geradores distintos quantos sejam os herdeiros ou legatários 4." (grifamos)
Conforme se depreende do caput do art. 35, acima transcrito, a transmissão dos impostos a título gratuito, seja por causa mortis ou doação, se restringiam aos bens imóveis, sendo que com advento da Constituição de 1988, a competência tributária dos Estados-membros e do Distrito Federal foi ampliada para alcançar os bens móveis, títulos e créditos, a que alude o art. 155, I, § 1º, e incisos da CF/88.
Como não existe nova lei complementar disciplinando o novo tributo, utiliza-se, como referência geral, os dispositivos do CTN, naquilo que foi recepcionado pela nova ordem constitucional. O art. 35 do CTN, que tratava do fato gerador do imposto de transmissão de bens imóveis e direitos a eles relativos, não passou por um novo formato após a Constituição de 1988, pois além da tributação nas transmissões de bens imóveis e direitos, agora se tem uma nova exação fiscal, que é a transmissão de bens móveis, títulos e créditos, com reflexos significativos na apuração do imposto.
Com isso, diante da inexistência de lei federal sobre normas gerais da tributação dos impostos, os Estados exerceram a competência plena para atender as suas necessidades (art. 24, § 3º, da CF). Evidenciando-se, nesse contexto, uma ausência de uniformidade em relação aos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes, como já dito nas primeiras linhas.
Portanto, o inciso I, do art. 35 do CTN, encontra-se em desarmonia com o texto da CF/88, onde através do art. 155, § 1º, II, na redação da Emenda Constitucional nº 3, foi inserido o imposto sobre bens móveis, títulos e créditos, de competência tributária do Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal.
Assim, na ausência de uma legislação nacional atualizada, vamos tomar como referência a legislação de alguns Estados. A Lei nº 10.705/2000, que instituiu o ITCMD no Estado de São Paulo, se posiciona da seguinte forma nas hipóteses de incidência do imposto:
"Art. 1º. Fica instituído o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos - ITCMD, previsto no art. 155, I, da Constituição Federal, na redação da Emenda Constitucional nº 3, de 1993."
"Art. 2º. O imposto incide sobre a transmissão de qualquer bem ou direito havido:
I - por sucessão legítima ou testamentária, inclusive a sucessão provisória;
II - por doação.
§ 1º - Nas transmissões referidas neste artigo, ocorrem tantos fatos geradores distintos quantos forem os herdeiros, legatários ou donatários.
§ 2º - Compreende-se no inciso I deste artigo a transmissão de bem ou direito por qualquer título sucessório, inclusive o fideicomisso.
§ 3º - A legítima dos herdeiros, ainda que gravada, e a doação com encargo sujeitam-se ao imposto como se não o fossem.
§ 4º - No caso de aparecimento do ausente, fica assegurada a restituição do imposto recolhido pela sucessão provisória.
§ 5º - Estão compreendidos na incidência do imposto os bens que, na divisão de patrimônio comum, na partilha ou adjudicação, forem atribuídos a um dos cônjuges, a um dos conviventes, ou a qualquer herdeiro, acima da respectiva meação ou quinhão."
"Art. 3º. Também sujeita-se ao imposto a transmissão de:
I - qualquer título ou direito representativo do patrimônio ou capital de sociedade e companhia, tais como ação, quota, quinhão, participação civil ou comercial, nacional ou estrangeira, bem como Direito Societário, debênture, dividendo e crédito de qualquer natureza;
II - dinheiro, haver monetário em moeda nacional ou estrangeira e título que o represente, depósito bancário e crédito em conta corrente, depósito em caderneta de poupança e a prazo fixo, quota ou participação em fundo mútuo de ações, de renda fixa, de curto prazo, e qualquer outra aplicação financeira e de risco, seja qual for o prazo e a forma de garantia;
III - bem incorpóreo em geral, inclusive título e crédito que o represente, qualquer direito ou ação que tenha de ser exercido e direitos autorais.
§ 1º - A transmissão de propriedade ou domínio útil de bem imóvel e de direito a ele relativo, situado no Estado, sujeita-se ao imposto, ainda que o respectivo inventário ou arrolamento seja processado em outro Estado, no Distrito Federal ou no exterior; e, no caso de doação, ainda que doador, donatário ou ambos não tenham domicílio ou residência neste Estado.
§ 2º - O bem móvel, o título e o direito em geral, inclusive os que se encontrem em outro Estado ou no Distrito Federal, também ficam sujeitos ao imposto de que trata esta lei, no caso de o inventário ou arrolamento processar-se neste Estado ou nele tiver domicílio o doador."
"Art. 4º. O imposto é devido nas hipóteses abaixo especificadas, sempre que o doador residir ou tiver domicílio no exterior e, no caso de morte, se o de cujus possuía bens, era residente ou teve seu inventário processado fora do país:
I - sendo corpóreo o bem transmitido:
a) quando se encontrar no território do Estado;
b) quando se encontrar no exterior e o herdeiro, legatário ou donatário tiver domicílio neste Estado;
II - sendo incorpóreo o bem transmitido:
a) quando o ato de sua transferência ou liquidação ocorrer neste Estado;
b) quando o ato referido na alínea anterior ocorrer no exterior e o herdeiro, legatário ou donatário tiver domicílio neste Estado."

"Art. 5º. O imposto não incide:
I - na renúncia pura e simples de herança ou legado;
II - sobre o fruto e rendimento do bem do espólio havidos após o falecimento do autor da herança ou legado;"
Pela lei paulista o imposto incide sobre a transmissão de qualquer bem ou direito havido por sucessão legítima ou testamentária, inclusive a sucessão provisória e por doação.
Compreende-se sob o título de qualquer bem ou direito, a transmissão de bem ou direito por qualquer título sucessório, inclusive o fideicomisso, a legítima dos herdeiros ainda que gravada, a doação com encargos, os bens que, na divisão de patrimônio comum, na partilha ou adjudicação, forem atribuídos a um dos cônjuges, a um dos conviventes, ou a qualquer herdeiro, acima da respectiva meação ou quinhão.
Também se sujeita ao imposto a transmissão qualquer título ou direito representativo do patrimônio ou capital de sociedade e companhia, tais como ação, quota, quinhão, participação civil ou comercial, nacional ou estrangeira, bem como, Direito Societário, debênture, dividendo e crédito de qualquer natureza; dinheiro, haver monetário em moeda nacional ou estrangeira e título que o represente, depósito bancário e crédito em conta corrente, depósito em caderneta de poupança e a prazo fixo, quota ou participação em fundo mútuo de ações, de renda fixa, de curto prazo, e qualquer outra aplicação financeira e de risco, seja qual for o prazo e a forma de garantia; bem incorpóreo em geral, inclusive título e crédito que o represente, qualquer direito ou ação que tenha de ser exercidos e direitos autorais.
Vale dizer, a transmissão de propriedade ou domínio útil de bem imóvel e de direito a ele relativo, situado no Estado, se sujeita ao imposto, ainda que o respectivo inventário ou arrolamento seja processado em outro Estado, no Distrito Federal ou no exterior; e, no caso de doação, ainda que o doador, donatário ou ambos não tenham domicílio ou residência neste Estado.
Os bens móveis, os títulos e créditos em geral, inclusive os que se encontrem em outro Estado ou no Distrito Federal, também ficam sujeitos ao imposto, no caso de o inventário ou arrolamento processar-se no Estado ou nele tiver domicílio o doador.
O imposto é devido, ainda, nas hipóteses em que, sendo corpóreo o bem transmitido, o mesmo se encontrar no território do Estado, ou se encontrando no exterior o herdeiro, legatário, ou donatário tiver domicílio no Estado. E sendo incorpóreo o bem transmitido, o ato de sua transferência ou liquidação ocorrer neste Estado, e quando a transmissão ocorrer no exterior e o herdeiro, legatário, tiverem domicílio no Estado.
O parágrafo único, do art. 35 do CTN disciplina que "nas transmissões causa mortis, ocorrem tanto fatos geradores distintos quantos sejam os herdeiros ou legatários" 5. Preceito que se repete na lei paulista e em todas as legislações estaduais, admitindo-se que nas transmissões causa mortis de bens imóveis, móveis e direitos a eles relativos e doações, ocorrem tantos fatos geradores distintos quantos sejam os herdeiros, legatários ou donatários.
Com efeito, se o fato gerador é a transmissão de bens, e se ocorrem várias transmissões de acordo com o número de herdeiros ou legatários, e como a transmissão é fenômeno vinculado ao indivíduo que adquire os bens, devem ocorrer transmissões próprias e individualizadas relativas a cada beneficiário. De maneira que se existir um processo de inventário contendo dez herdeiros, ocorrerão dez transmissões, e, de igual modo, dez obrigações tributárias particularizadas.
Notas da Autora:
1 - Constituição Federal de 1998, art. 155, I.
2 - FERNANDES, Regina Celi Pedrotti Vespero. Imposto sobre transmissão causa mortis e doação – ITCMD. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
3 - STF, 1ª T., RE 236. 931-8/SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 10.08.1999, DJ 29.10.99.
4 - Art. 35 da CTN.
5 - CTN, art. 35, parágrafo único.

Extraído de Editora Magister/doutrina

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