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13 outubro 2010

ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA RESULTANTE DO INADIMPLEMENTO DO CONTRATO DE COMPROMISSO DE VENDA E COMPRA-1

Parte 1/3

Luiz Tadeu Barbosa Silva
Desembargador do TJMS. Mestre em Direito.


SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Concepção Tradicional do Contrato. 3 A Teoria da Vontade na Concepção Alemã. 4 Nova Concepção Social do Contrato. 5 Elementos Constitutivos da Obrigação. 6 Fungibilidade da Declaração de Vontade. 7 Infungibilidade Jurídica. 8 Adjudicação Compulsória. 9 Adjudicação Compulsória no Direito Brasileiro. 10 O Instituto perante o Vigente CPC. 11 Objeto da Declaração de Vontade. 12 Natureza Jurídica da Ação de Adjudicação Compulsória. 13 Obrigatoriedade ou Não do Registro do Contrato. 14 Condições para o Exercício do Direito de Ação. 5 Considerações Finais.

1 Introdução

Indubitável ser o contrato o centro de atenção do direito das obrigações e, porque não dizer, do direito econômico. Representa o contrato a expressão maior do princípio da autonomia da vontade. O pacto de contrahendo, como uma modalidade de contrato, não dispunha de um título ou capítulo específico no CC/16. No entanto, o CC/02 (Lei nº 10.406, de 10.01.02) acabou disciplinando essa matéria a partir do art. 462, dando-lhe uma seção própria no Título IV (Dos Contratos em Geral), Capítulo I, Seção VIII, visando preparar o caminho da realização do contrato definitivo.

Por inúmeras razões, que vão da impossibilidade momentânea de estruturar-se o contrato final à pura conveniência pessoal dos estipulantes, não raro as pessoas não podem ou não querem realizar, desde logo, o definitivo. Mas pactuam uma forma de assegurar sua efetivação no futuro. Daí a promessa de contratar ou de prestar declaração de vontade. É a obrigação firmada de concretizar num futuro o contrato definitivo, fruto da autonomia da vontade.

Não há confundir negociações preliminares com o contrato preliminar a que se refere o art. 462 do CC. As negociações preliminares representam mera fase anterior à própria proposta, sem poder vinculante quanto ao elo de ligação visualizado pelos interessados. Descumprimento de negociações preliminares daria ensejo, quando muito, à discussão de perdas e danos. Em contrapartida, discussão acerca do cumprimento ou não do contrato preliminar, reflete justamente no objeto da obrigação descumprida ou da própria contratação.

Seria inócuo ao credor uma obrigação não cumprida sem a sanção e, consequentemente, sem a atuação do órgão jurisdicional, para atuar a vontade concreta da lei. O direito material e o processual ainda passam por profundas reformas. Nessa nova ordem teve ampla repercussão a reforma do processo civil em sua área obrigacional, com a introdução, em nosso sistema positivo, de institutos como da antecipação da tutela e uma mais rígida e eficiente disciplina das obrigações de fazer ou não fazer 1. Ainda recentemente foi editada a Lei nº 11.232/05, alterando, profundamente, a forma de execução dos títulos judiciais.

O processo civil está intimamente ligado ao direito das obrigações. Seria impertinente uma obrigação insatisfeita, sem a instrumentalidade do processo; enfim, sem os atos coativos tendentes à satisfação do direito declarado ou reconhecido num título. Daí o equacionamento do direito obrigacional com as normas do processo, notadamente para obtenção de uma sentença visando a condenação do devedor a prestar declaração de vontade.

Sucessivas formas de contratação dão margens ora à sua rescisão, ora à sua execução e ora a uma sentença que possa substituir a vontade do contratante inadimplente, funcionando mencionada sentença como comando substitutivo da vontade do devedor.

Conviveu-se no passado distante com a impossibilidade de o Estado-Juiz compelir o devedor a prestar declaração de vontade, quando o objeto dessa declaração decorresse de uma obrigação infungível. Imperou a ideia de reputar inadmissível a substituição da vontade omitida por ato judicial, supostamente agressivo à liberdade do cidadão, motivo por que ao prejudicado caberia, somente, pretensão a perdas e danos 2.

A evolução do processo civil como ciência acabou contribuindo para o nascimento do conceito de obrigação juridicamente infungível, a permitir que a vontade não cumprida do devedor fosse substituída por uma sentença, que tivesse o mesmo valor caso fosse a obrigação espontaneamente cumprida.

O provimento jurisdicional pretendido, nesse caso, se dá através da ação condenatória de emitir declaração de vontade, forma genérica descrita nos arts. 466-A, 466-B e 466-C do CPC, pela redação que lhe deu a referida Lei nº 11.232/05.

O presente trabalho procura analisar a natureza jurídica da sentença que condena o devedor a prestar declaração de vontade, à luz também dos arts. 463 e 464 do CC/02.

2 Concepção Tradicional do Contrato

Exerce o direito das obrigações fundamental importância na nossa sociedade de consumo. Na verdade o direito das obrigações constitui a base não somente do direito civil, senão de todo o direito (principalmente direito comercial, direito administrativo, direito internacional privado e público). Está assentado no princípio da autonomia da vontade, pois, fixando normas gerais, inclusive dos contratos, deixa à vontade individual um campo enorme para sua manifestação 3.

Certo é que no moderno sistema econômico, o dogma da autonomia da vontade, de ordem individual, cede a uma quantidade enorme de interesses coletivos, restringindo, sobremaneira, o império da vontade.

De uma forma genérica, toda a sociedade está centralizada na ideia de um contrato. Traz o direito econômico enorme contribuição às teorias do contrato, pois situa claramente o contrato como um meio pelo qual as partes contratantes participam direta ou indiretamente da "política econômica" posta em prática pelo Estado 4.

Para a escola do direito natural, escreve Radbruch, "[...] o contrato era como se sabe, o fundamento de todo o Direito, fornecendo a solução do problema básico da Filosofia jurídica individualista – isto é, o problema de saber como é possível que o Direito, que foi inventado para servir exclusivamente os indivíduos, pode também obrigá-los e vinculá-los ao mesmo tempo. Fundar o Estado com todo o seu poder jurídico soberano sobre a ideia dum contrato celebrado entre os seus membros, pareceu ser o suficiente para poder apresentar, em última análise, toda a obrigação como uma auto-obrigação. Julgou-se encontrar assim na ideia de contrato social o meio que permite reconduzir com pleno êxito toda a heteronomia a uma autonomia e deste modo resolver todo o direito público no direito privado" 5.

Nesse norte, todo o contratualismo visa resolver a oposição entre autonomia e heteronomia; entre a exigência de não serem obedecidas senão as normas ditadas direta ou indiretamente pelos sujeitos e a exigência oposta de serem editadas normas por uma entidade distinta das pessoas às quais as normas se destinam.

O contratualismo, porém, nem sempre consegue ser uma realização de autonomia. É que o contrato dá origem a uma situação de fato, mas não a uma vinculação ou a uma obrigação. A obrigatoriedade não resulta da vontade, mas sim da norma que rege a situação de fato posta pela vontade. É a lei que obriga e, se assim é, na afirmação de Radbruch, não é o vínculo ou a obrigação contratual que poderá jamais servir de fundamento filosófico para justificar a sujeição à lei, "mas será a sujeição à lei que poderá servir de fundamento filosófico para justificar a obrigatoriedade resultante dum contrato" 6.

A ciência jurídica do século XIX foi marcada pelo dogma da autonomia da vontade. A concepção de vínculo contratual desse período está centrada na ideia de valor da vontade, como fonte única e como legitimação para o nascimento de direitos e obrigações. É a época do liberalismo na economia e do chamado voluntarismo no direito 7. Nas grandes codificações do século XIX, o contrato era a própria expressão da autonomia privada, reconhecendo às partes a liberdade de estipularem o que lhes conviesse, "servindo portanto como instrumento eficaz da expansão capitalista", na observação de Leonardo Mattietto 8.

Nesse período, para fomentar a economia de mercado, deixou o Estado de intervir na maioria absoluta dos atos de manifestação de vontade. Só posteriormente é que houve uma mudança de comportamento por parte do Estado, mais precisamente a partir do momento da percepção de que a concentração de renda provocada pelo livre mercado, nas mãos de pessoas ou de grupos econômicos sólidos acabava impondo às partes contratantes de menor poder aquisitivo, condições excessivamente onerosas, abusivas e incompatíveis com a boa-fé ou a equidade.

Na sociedade moderna há uma tendência de um abrandamento cada vez maior do dogma da autonomia da vontade, que passa a não ser absoluto, como se pretendeu no liberalismo.

3 A Teoria da Vontade na Compreensão Alemã

Calcado no direito romano e aperfeiçoado principalmente na Alemanha, pelos pandectistas, o direito das obrigações ganhou contorno próprio no século XIX. A teoria formulada pela Escola das Pandectas, na Alemanha, embora tenha dado enorme contribuição a uma sistematização obrigacional, por outro lado legitimou abusos, ao favorecer a prepotência das pessoas economicamente fortes.

Na época imperava o liberalismo, sonho da política econômica que premiava o individual, em detrimento do coletivo. A dogmática do direito obrigacional no período do liberalismo mereceu a crítica de Von Ihering, "que introduziu surpreendente revolução na cultura jurídica, ao se inclinar em favor do coletivo contra o indivíduo, com a afirmação de que o Direito se determina pelo que é útil à sociedade", como narra Orlando Gomes 9.

Como era de se esperar, a doutrina individualista foi batida em seus próprios fundamentos éticos e culturais, ruindo, com ela, os conceitos e pressupostos filosóficos tão excelentemente construídos pelos pandectistas.

Anota ainda Orlando Gomes que: "O positivismo científico florescente no século XIX concebia o Direito como sistema de preceitos e decisões derivados de princípios deduzidos racionalmente, sem levar em conta, como proclamou Windscheid, considerações éticas, políticas ou econômicas. A tarefa obsessiva dos positivistas era de burilar conceitos" 10.

Para os pandectistas, o ordenamento jurídico nada mais era do que um sistema totalmente organizado e independente, isento de lacunas, de sorte que todo o caso jurídico pudesse ser resumido num conceito. A função do juiz era reduzida a mero autômato. Julgava pelo processo da subsunção, numa sucessão sistemática, totalmente ordenada sob forma estritamente lógica. O método dessa Escola se caracterizava pelo abuso de abstrações lógicas.

Desta forma, previsível que houvesse gradativamente a decadência do voluntarismo jurídico. De fato. Transformações econômicas, políticas e sociais provocaram a decadência do voluntarismo no Direito Privado. O individualismo instituiu o dogma da autonomia da vontade, sem levar em conta que "admitir a força criadora da vontade individual era consagrar o arbítrio" 11.

Evidente que gigantescos grupos privados exercem um poder de fato não menos ameaçador que o Estado, convertendo em pura ilusão a teórica igualdade das partes e a autonomia da vontade 12.

4 Nova Concepção Social do Contrato

Gradativamente a sociedade moderna vem rompendo com certos dogmas, nascendo uma concepção social do contrato, como tendência moderna inclusive no âmbito constitucional 13. É o direito como instrumento de conformação social, como ilustra Canotilho 14.

Para essa nova concepção, não só o momento da manifestação da vontade (consenso) é o que importa; importa também os efeitos do contrato na sociedade. Haverá um intervencionismo cada vez maior do Estado nas relações contratuais, no intuito de relativizar o antigo dogma da autonomia da vontade com as novas preocupações de ordem social, com a imposição de um novo paradigma, notadamente o princípio da boa-fé objetiva 15.

Tem sido uma constante a revisão dos contratos, tanto para coibir abusos quanto para adequá-los à sua função social. Lembra Heloísa Carpena que ao indivíduo serão reconhecidos direitos, poderes e faculdades, na medida em que venham a contribuir com o bem-estar da coletividade, que sejam socialmente úteis 16.

Há uma tendência de ceder a autonomia da vontade diante de matéria de ordem pública ou de ofensa ao consumidor ou, ainda, nos pactos marcados pela manifesta desproporcionalidade entre os promitentes ou que revelam cláusulas abusivas ou injusta desvantagem para uma das partes, prevalecendo o coletivo ao individual. Desta forma, a defesa dos direitos difusos e uma nova ordem social tendem para uma consolidação ainda maior da teoria da confiança ou da validade, de sorte a coibir formas usuais de abusos na celebração dos contratos.

O CC/02 reflete um direito contratual reestruturado. Celebra a primazia dos chamados valores plurais ou coletivos em face dos equivalentes axiológicos do plano individual. Está o novo estatuto civil concentrado na função social do contrato (art. 421) e na proteção do hipossuficiente da relação contratual (art. 423). Em sua nova concepção, diz Miguel Reale ser o contrato um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar "onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e medida" 17.

O poder da vontade humana, criadora de obrigações, sempre se pautou no princípio da autonomia da vontade. O Código Civil Francês de então, ao dispor em seu art. 1.134 que "as convenções legalmente formadas têm o valor das leis para aqueles que a fizeram", mereceu de Ripert a crítica de parecer extraordinariamente forte a fórmula preconizada por seu legislador 18.

Notas do Autor:

1 - ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil. p. 60.
2 - ASSIS, Araken de. Manual do Processo de Execução. p. 405.
3 - AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria Geral das Obrigações. p. 24.
4 - SOUZA, Washington Peluso Albino de. Lições de Direito Econômico. p. 135/136.
5 - RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução de Cabral de Moncada. São Paulo, 1937. p. 207. Apud REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. p. 18.
6 - RADBRUCH, Gustav. Apud REALE, Miguel, op. cit., p. 20.
7 - MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. p. 37.
8 - O Direito Civil Constitucional e a Nova Teoria dos Contratos. p. 174.
9 - GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações. p.2.
10 - GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações. p.3.
11 - GOMES, Orlando. Transformações Gerais do Direito das Obrigações. p. 9.
12 - LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do Direito Privado. p. 119.
13 - A esse respeito a doutrina de MATTIETTO, Leonardo. O direito civil constitucional e a nova teoria dos contratos. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de direito civil-constitucional. p.163/185.
14 - CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. p. 326.
15 - MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. p.102.
16 - Abuso do direito. p. 133.
17 - O projeto do Código Civil, p. 10.
18 - Segundo Georges Ripert, "para chegar a esta concepção da vontade soberana, criando ela própria e unicamente pela sua força direitos e obrigações, foi preciso que na obra lenta dos séculos a filosofia espiritualizasse o direito para desembaraçar a vontade pura das formas materiais pelas quais se dava, que a religião cristã impusesse aos homens a fé na palavra escrupulosamente guardada, que a doutrina do direito natural ensinasse a superioridade do contrato, fundando a própria sociedade sobre o contrato, que a teoria do individualismo liberal afirmasse a concordância dos interesses privados livremente debatidos sobre o bem público. Pode então reinar a doutrina da autonomia da vontade que é ao mesmo tempo o reconhecimento e o exagero do poder absoluto do contrato. Hoje procura-se a fonte de todos os compromissos numa vontade expressa ou tácita, e ensina-se que a vontade pode sempre criar um compromisso lícito. A obrigação assumida não é mais que uma manifestação do direito natural que assiste a todo o homem de se obrigar e, portanto, de manifestar uma liberdade que ele não pôde alienar. A Escola do direito natural persuadiu todos de que este compromisso, porque é voluntário, é necessariamente conforme à lei moral. Quando alguém decide alguma coisa a respeito do outro, dirá Kant, é sempre possível que lhe faça alguma injustiça, mas toda a injustiça é impossível quando ele decide por si próprio" (A regra moral nas obrigações civis. p.53-4).

Extraído de Editora Magister/doutrina

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