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05 fevereiro 2009

DECISÃO DIFÍCIL E DOLOROSA

Em artigo publicado na revista jurídica Última Instância, a advogada paulista Rafaella Marcolini aborda a situação de duas irmãs siamesas do Recife, PE, ligadas por órgãos vitais e cuja separação depende de delicada cirurgia, que coloca em risco a vida de uma delas.

Pesquisando a respeito na internet, encontrei o caso de duas irmãs siamesas denominadas de “Mary” e “Jodie”, porquanto, para preservar as crianças, a justiça inglesa não permite a divulgação de seus nomes verdadeiros. Houve grande repercussão na Europa e também no Brasil. Vou tentar resumir os fatos:

Os pais residiam no povoado de Gozo, uma pequena ilha do Mar Mediterrâneo, próximo de Malta. Diante da falta de recursos no local da residência foram para o Reino Unido, que custeou as despesas, para o parto das gêmeas no Hospital St. Mary, na cidade de Manchester. As crianças nasceram em 8 de agosto de 2000, ligadas pela parte inferior do abdômen, porém só uma delas (Jodie) tinha coração e pulmões e cérebro com desenvolvimento normal. Os médicos pretendiam operar para separar as irmãs dentro de três meses porque achavam que se não operassem as duas morreriam. Os pais, católicos praticantes, foram terminantemente contrários à cirurgia com o fundamento de que não poderiam decidir sobre quem viveria ou morreria e que a natureza se encarregaria de resolver se elas deveriam viver ou morrer, segundo a vontade de Deus. Diante da negativa dos pais, os médicos pediram uma autorização judicial. O juiz Justice Johnson remeteu-a à uma junta médica que, por sua vez, encaminhou-a à Corte de Apelação que então solicitou a opinião de dois especialistas do Hospital Great Ormon Street, para aconselhar, ou não, a separação das gêmeas xifópagas. Ficou esclarecido que o procedimento médico começaria com a separação dos ossos pélvicos. Depois, seria a vez da espinha, por onde as gêmeas estão unidas. O passo seguinte seria separar um vaso sangüíneo, que é a continuação da aorta de Jodie, que servia para levar o fluxo de sangue a Mary. Por último, a veia cava seria separada, o que causaria definitivamente a morte de Mary. Antes do julgamento, um dos juízes, Alan Ward, afirmou que a decisão seria "dolorosamente difícil" porque envolvia "as mais dramáticas questões sobre a vida e a morte". Para chegar ao veredicto, que tem 130 páginas, os três juízes que compunham a Corte de Apelação entraram em contato com seus pares na Austrália, na África do Sul e no Canadá - cujo direito segue a mesma tradição que o da Inglaterra - para verificar se havia nesses países relatos de caso similar e não encontraram nenhuma referência. Decidiram autorizar. Os pais, abalados, não compareceram ao julgamento e resolveram não recorrer à Câmara dos Lordes. A decisão foi criticada pelo Vaticano e por grupos de defesa da vida. Feita a operação, Mary morreu. Jodie ficou em estado crítico. Não consegui mais informações se ela sobreviveu ou não. Se alguém encontrar, favor comentar no blog.

As informações foram colhidas de Veja e Uol, pelo portal da Bioética e podem ser consultadas na integralidade aqui e aqui, respectivamente, este último com redirecionamento para o jornal Zero Hora, de Porto Alegre.

Retornando ao caso brasileiro. As irmãs pernambucanas Luana e Luiza, nasceram no Recife em 11 de novembro de 2008. Segundo o jornal Goiás Agora, os pais procuraram o Hospital Geral de Goiânia (HGG) para uma possível cirurgia de separação. Após a primeira consulta com o cirurgião Zacharias Calil e realizada uma tomografia computadorizada, em 03/12/2008, ficou constatado que as irmãs possuem apenas um fígado e uma vesícula biliar, o que complicaria a separação das duas. Segundo o médico, elas ainda iam ser avaliadas por uma equipe de cirurgiões vasculares do aludido hospital, mas qualquer operação só poderia ser feita depois de um ano ou um ano e meio.

As informações dão conta de que os pais brasileiros querem a realização da cirurgia para separação das gêmeas.

Esses casos são extremamente complexos e desafiam o debate sob a perspectiva da bioética, da religiosidade, do avanço científico da ciência médica e da legalidade. Um excelente tema para uma monografia de mestrado ou doutorado.


Leiam abaixo o artigo a que me referi no início.


A escolha de Salomão

Rafaella Marcolini

No final de 2008, a mídia nos surpreendeu com a notícia do nascimento de gêmeas siamesas na cidade de Recife, envolvendo o drama vivido pelos seus pais. Suas filhas compartilham órgãos vitais como o fígado e, provavelmente, o intestino. Diante da constatação da equipe médica de que a cirurgia em benefício de uma implicaria em risco de morte para a outra, os médicos recifenses se recusam a operá-las, alegando ética médica. Caso permaneçam unidas, as crianças terão uma vida de sacrifícios.

A questão que se coloca ao debate público é a colisão de direitos igualmente relevantes e amparados sob o manto constitucional, quais sejam, o direito a vida de ambas as crianças, e o princípio da legalidade, que não obriga ninguém a fazer ou deixar de fazer algo salvo em virtude de lei, e que afastaria, em um primeiro momento, a obrigação, ao menos legal, dos médicos realizarem a cirurgia.

De um lado, exercendo o juramento de Hipócrates, os médicos, que diante do dilema de salvarem uma vida em detrimento do sacrifício de outra, recusam-se a realizar uma intervenção cirúrgica cuja chance de óbito de uma das crianças é expressiva. De outro, o direito de ambas à saúde e à dignidade de uma vida plena.

Sob a perspectiva de ponderação de princípios, há que se buscar se existe um confronto entre interesses de natureza distinta e, em última análise, qual seria o valor maior a ser assegurado.

Embora, à primeira vista, o direito à vida se coloque como um bem maior, não se pode ignorar o fato que a negativa dos médicos consultados em realizar a intervenção cirúrgica repousa em sólido argumento: referida intervenção conduzirá, sob considerável possibilidade, ao óbito de uma das pacientes operadas. Certamente que a negativa desses profissionais em agir se deve à complexa controvérsia: ao mesmo tempo em que a cirurgia assegurará a vida plena de uma das gêmeas, significará, por outro lado, a morte provável da outra. Face este dilema ético, e, não estando, por lei, obrigados a operá-las, decidiram-se por afastar-se deste encargo, em uma decisão pessoal e controvertida.

Os deveres inerentes à medicina são dispostos em norma vigente e de aplicação sobre esta categoria profissional por meio da Lei 268/57, que editou o Código de Ética dos Conselhos de Medicina do Brasil, e que dispõe, dentre seus dispositivos, que é dever do médico:

1 – “Guardar absoluto respeito pela vida humana, jamais usando seus conhecimentos técnicos ou científicos para sofrimentos ou extermínio do homem”.

2- “Não pode o médico, seja qual for a circunstância, praticar atos que afetem a saúde ou a resistência física ou mental do ser humano, salvo quando se tratar de indicações estritamente terapêuticas ou profiláticas em benefício do próprio paciente”.

Extrai-se da leitura da legislação em vigor que, ao mesmo tempo em que o bem jurídico tutelado é a vida, ao profissional da medicina é vedado fazer uso de suas habilidades técnicas de forma a afetar a saúde ou resistência física ou mental do paciente submetido aos seus cuidados. Este mesmo dispositivo é questionado diante de outros temas igualmente polêmicos, como a legalização do aborto e a eutanásia.

Não sabemos com exatidão o grau de risco envolvido numa operação cirúrgica de separação de gêmeas siamesas com órgãos vitais em comunhão, tampouco o quanto se exige da aptidão técnica do médico para o sucesso da cirurgia. Contudo, havendo meios de que ela seja realizada com êxito, ainda que esta possibilidade seja reduzida, é possível que se garanta a realização desta cirurgia através de uma ação judicial especialmente para este fim, evocando que o direito a vida e a saúde sejam preservados, tal como comanda o texto disposto na Constituição.

Em casos semelhantes, divulgados outrora pela mídia, pôde-se perceber que, dependendo do grau de tecnologia disponível e do empenho e especialização dos médicos envolvidos, há a real possibilidade de se reverter diagnósticos pessimistas, voltando a trazer esperança àqueles que se submetem a intervenções inovadoras.

Em prol do direito a vida, há que se empenhar até mesmo as técnicas que possam, eventualmente, colocar este bem tão precioso em risco, se for esta a vontade do paciente. Esta decisão, por seu caráter extremamente individual e personalíssimo, cabe, tão somente, ao paciente, ou a seus responsáveis, e não ao médico a quem recai o encargo de executá-la. Sem dúvida que esta missão é por demais onerosa, mas é o dever que decorre da responsabilidade da função que o indivíduo que se formou médico optou em receber.

A noção de normatividade em que repousa o constitucionalismo moderno assegura, a cada direito inserido neste sistema, uma posição, conforme a relevância do bem jurídico que está sendo protegido. A fim de propiciar uma dialética entre esses direitos, criou-se uma estrutura que possibilita avaliar qual deles deve sobrepor-se aos demais, em caso de confronto.

A análise do caso concreto permite avaliar quais desses direitos avançam e quais recuam, sem que nenhum deles se anule, vindo, apenas, a alcançar mais destaque em determinadas circunstâncias, para que seja possível atingir a proteção do bem jurídico maior, a quem deve se subjugar os demais direitos que gravitam em torno dele.

A partir deste raciocínio, é dever do médico envolvido em caso desta gravidade, comunicar a família do paciente as escolhas que possuem e os riscos que serão assumidos ao optarem por cada um delas. Uma vez escolhido o caminho a seguir, é dever do médico aceitar o encargo e envidar seus maiores esforços para a execução daquele objetivo, mesmo ciente dos riscos. É o que se infere da redação do Código de Ética da Medicina conjugado com os direitos fundamentais do cidadão, presentes na Constituição da República, sob o revestimento de cláusulas pétreas.

Por força do sistema normativo brasileiro, diante de uma possibilidade real, ainda que ínfima, de realização desta cirurgia com sucesso, a essas crianças não pode ser negado o direito desta tentativa, ressaltando que esta decisão deve surgir do consenso dos pais, que são, por lei, salvo exceções, aqueles que melhor dispõe de meios para concluírem sobre o que é melhor para seus filhos.

Exercer a medicina não significa navegar sobre as águas tranqüilas da certeza, mas estar preparado para assumir a missão que lhe é confiada, mesmo sob intempéries. É este o espírito do juramento assumido por esses profissionais ao serem investidos nessa nobre missão.

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