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07 dezembro 2009

A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA


Parte 1/3


Roger Stiefelmann Leal

Doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo. Professor da Faculdade de Direito da Ritter dos Reis.

SUMÁRIO:

I. Introdução.
II. O Poder Judiciário na visão clássica da separação dos poderes.
III. A transformação do perfil do Judiciário.
IV. IV. Conclusões.
V. V. Bibliografia.

I. Introdução

Nos últimos anos, vem se verificando, entre nós, uma significativa alteração no quadro político-institucional, devido a um novo delineamento constitucional atribuído ao Poder Judiciário. Vê-se, na atualidade, os membros do Poder Judiciário, no exercício de seu poder jurisdicional, intervindo em questões nunca antes exploradas. Além disso, tem-se visto uma crescente flexibilização dos parâmetros legais e constitucionais existentes em benefício de uma suposta independência judicial e de um pretenso poder normativo dos juízes.

O constitucionalismo contemporâneo, ao que parece, vem apresentando uma forte tendência em conceder maior poder aos órgãos judicantes de modo a controlar os avanços dos demais poderes constituídos. Evidenciam-se, de certo modo, os traços de judiciarismo denunciados já há muito pelo Ministro Orozimbo Nonato (1). O aumento do número de questões a serem decididas em sede jurisdicional e a referida flexibilização dos parâmetros têm permitido ao Poder Judiciário tomar decisões que, tradicionalmente, seriam da alçada de outros poderes. Todavia, tal tendência obedece a um movimento de agigantamento das funções jurisdicionais, que confere ao Poder Judiciário a competência, quase que irrestrita, de controlar os demais poderes públicos, alterando, sobretudo, o relacionamento e a coordenação entre os órgãos do Estado.

II. O Poder Judiciário na visão clássica da separação dos poderes

Sabe-se, contudo, que o Poder Judiciário, conforme a doutrina da separação dos poderes difundida por Montesquieu (2), não passava de um mero executor de leis. Montesquieu identificava o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil (3). Este terceiro poder, chamado de poder de julgar, teria como função punir os criminosos e resolver as querelas entre os particulares.

Ademais, Montesquieu define os juízes como apenas a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que não podem moderar sua força, nem seu rigor (4). Não se está, todavia, a dizer que o juiz, ao exercer a sua função judicante, não cria direito. É errônea a compreensão de que a lei tem somente um sentido, que existe apenas um significado verdadeiro do texto legal, que todas as leis são completas, inadmitindo-se pensar em lacunas. É fantasioso conceber que a função judicial simplesmente se restringe a verificar a ocorrência da hipótese prevista em lei e aplicar os efeitos jurídicos por ela comandados. Antes de mais nada, há de se ter em mente que Montesquieu elaborou uma doutrina política, e não jurídica, da separação dos poderes (5). Na verdade, a função de aplicação do direito, dada a sua complexidade, contém também elementos criativos. Com freqüência, principalmente nos dias atuais, encontram-se textos com mais de um significado possível, fato que atribui ao juiz uma certa liberdade, ao julgar, em optar entre as interpretações cabíveis (6). O que parece estar por trás da concepção exposta por Montesquieu é a necessidade de limitar ao máximo a liberdade de criação do juiz de modo a preservar o princípio da segurança jurídica, na medida em que se possa ter uma certa previsibilidade do conteúdo das decisões judiciais, o princípio da igualdade, na medida em que os casos iguais não sejam resolvidos de forma distinta, e o princípio da unidade do direito, na medida em que o direito seja aplicado uniformemente no território em que vige (7). Dizia Montesquieu que se os tribunais não devem ser fixos, os julgamentos devem sê-lo a tal ponto que nunca sejam mais do que um texto preciso de lei. Se fossem uma opinião particular do juiz, viveríamos em sociedade sem saber precisamente os compromissos que ali assumimos (8). Nitidamente, Montesquieu tem a intenção de preservar tais princípios e evitar a viabilidade do uso arbitrário do poder jurisdicional.

De outro lado, provavelmente devido à concepção que prevalecia à época, fenômeno chamado por Favoreu de sacralização da lei (9), vê-se que os poderes, na doutrina de Montesquieu, encontram-se submetidos à lei, e, ao que consta, o Poder Judiciário não teria condições de controlá-la. Além disso, os órgãos judicantes não teriam, a priori, o poder de controlar a atividade exercida pelo Poder Executivo, até porque sua função limitava-se a questões atinentes às relações internacionais, ou seja, fazer a paz ou a guerra, enviar ou receber embaixadas, instaurar a segurança e prevenir invasões (10). Tanto o Poder Executivo quanto o Poder Judiciário tinham a função de aplicar o direito. Previu-se, na realidade, uma divisão de competências. Enquanto a um cabia aplicar o direito das gentes, ao outro cabia aplicar o direito civil. Não se falava em controle judicial da atividade do Executivo. Tal disposição dos poderes traduzia uma prevalência da lei, o que, em última análise, resulta na supremacia do Parlamento (11).


Notas do Autor:
(1) Cf. voto proferido na Representação nº94-RS, in Revista Forense, março/1948, p.109
(2) Cf. O Espírito das Leis, Livro XI, cap.6. Martins Fontes, 1993, p.171.
(3) Cf. op.cit., p.171.
(4) Cf. op.cit., p.179.
(5) Cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Saraiva, 21ª edição, 1994, p.118
(6) Cf. Ignacio de Otto, Derecho Constitucional - Sistema de fuentes. Barcelona, Ariel, 1987, p. 288.
(7) Cf. Ignacio de Otto, op.cit., p.290.
(8) Cf. op.cit., p.174.
(9) Cf. Los Tribunales Constitucionales. Barcelona, Ariel, 1994, p.18.
(10) Cf. Montesquieu, op.cit., p.171-172.
(11) Cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Do Processo Legislativo. São Paulo, Saraiva, 1995, 3ªed., p.114-115.

Extraído do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRGS

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