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01 dezembro 2009

CONTEÚDO JURÍDICO DO MEIO DE PROVA MORALMENTE LEGÍTIMO-2/5


Parte 2/5


CONTEÚDO JURÍDICO DO MEIO DE PROVA MORALMENTE LEGÍTIMO PREVISTO NO ARTIGO 332 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL:  O USO DO SÊMEN COLETADO NA REPRODUÇÃO ASSISTIDA

Andrea Carla Veras Lins
Advogada da União. Pós-graduanda em processo civil pela Faculdade de Negócios de Sergipe, integrante da comissão de advocacia pública da Ordem dos Advogados do Brasil/SE.

1 MEIO DE PROVA MORALMENTE LEGÍTIMO PREVISTO NO ARTIGO 332 DO CPC. ALCANCE

Insta esclarecer, primeiramente, que ao se tratar da prova ter-se-á em mente os meios dos quais se utilizaria a parte para provar os fatos que alega, como por exemplo, a ouvida de testemunha. No caso específico, abordar-se-á a utilização do sêmen doado para identificação do patrimônio genético, seja só com o objetivo de identificar a paternidade biológica, seja em situações de doação de parentes compatíveis nos casos que representam ou possam representar risco de morte.

Dispõe, expressamente, o artigo 332 do CPC, que “Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa.” (grifo nosso).

A verdade que se busca no processo é a mais próxima da real possível, daí porque, por exemplo, para a formação do livre convencimento do juiz, não só as partes poderão requerer a produção de prova, como o próprio magistrado tem condição de determinar a realização de provas ex officio (art. 130 do CPC), não obstante deva fazê-lo de forma fundamentada, já que vigora o Princípio dispositivo.

Quando se considera que o direito à prova está presente tanto na ação, quanto na defesa, e que pressupõe uma série de oportunidades previstas e delimitadas na legislação constitucional e infraconstitucional, poder-se-ia questionar se seria legítima uma prova produzida fora das hipóteses existentes. Ou ainda o que poderia ser enquadrado, ainda que não estivesse previsto expressamente no ordenamento pátrio, como meio de prova moralmente legítimo.

O certo é que a prova pode estar maculada desde a sua constituição, quando não é observada a regra de direito material, e não somente no momento em que produzida nos autos. Daí porque uma prova que “nasce” ilícita pode macular, inclusive, todas as outras que derivam dela. Entretanto, o juiz poderá, excepcionalmente, admitir provas que seriam consideradas ilegítimas, por contrariarem tão somente as regras processuais, utilizando-se de um juízo de proporcionalidade e razoabilidade.

A diferença na questão que envolve o uso do sêmen utilizado na reprodução assistida está no fato de que não há qualquer previsão ou regulamentação que o proíba, cabendo ao juiz observar critérios outros que não o legal, como a adequação, que implica a observância de que aquela prova que se determina a uma das partes do processo justifica-se pelos fins que ela alcançará.

Não se pretende questionar o conteúdo do chamado sistema legal das provas, mas levantar a discussão no sentido de que o juiz poderá, dentro do critério da persuasão racional, determinar a produção e aceitação de determinado meio de prova, ainda que não previsto expressamente, tendo em vista que o Código de Processo Civil traz rol meramente exemplificativo.

Também não se busca discutir as diversas fases do procedimento probatório ou mesmo as chamadas provas nominadas (previstas expressamente), mas sim refletir acerca da possibilidade de utilização de outros meios de prova, que não os previstos pelo legislador, para garantir a efetivação de direitos fundamentais e o acesso à justiça, sempre calcado no Princípio da Proporcionalidade, considerando três elementos (1): necessidade (o meio de prova é imprescindível para demonstrar direito que o autor alega ou no qual o réu sustenta a resistência à pretensão?), adequação (o meio de prova utilizado é o único (ou melhor) do qual se dispõe para comprovação do fato alegado?) e o binômio custo-benefício (o resultado alcançado na busca da verdade real é maior que o sacrifico ao direito atingido da outra parte ou de terceiro?).

Ao pensarmos o sistema processual brasileiro de forma sistêmica, numa análise conjunta com o texto constitucional, vemos que uma tutela jurisdicional justa, efetiva, passa pelo devido processo legal substancial, e consequentemente, por uma ampla defesa substancial.

Assim como os demais direitos, o direito à prova não possui caráter absoluto, encontrando limites na própria Constituição Federal, ao proibir, verbi gratia, o uso de provas ilícitas. Entretanto, não há qualquer vedação aos meios de prova moralmente legítimos, até porque se trata de expressão sem conteúdo jurídico delimitado.

Os direitos e garantias fundamentais, em regra, são relativos, e não absolutos. Esse é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal. Embasado no princípio da convivência entre liberdades, a Corte concluiu que nenhuma prerrogativa pode ser exercida de modo danoso à ordem pública e aos direitos e garantias fundamentais, as quais sofrem limitações de ordem ético-jurídica.

[...]

A relatividade dos direitos fundamentais é, em grande parte, um problema de interpretação. Cada caso é único. Não é preciso sacrificar um direito fundamental em relação ao outro; basta que se reduz, proporcionalmente, o âmbito de alcance dos interesses em disputa, mediante a técnica da ponderação de valores.(2)

Isso quer dizer que todo aquele que busca o Judiciário, seja como autor, seja como réu tem a garantia de poder produzir a prova necessária e suficiente a garantir o seu direito constitucional, desde que legítima, moral, razoável, encontrando limites nos outros direitos constitucionais. Utilizando-se desses critérios, observado o caso concreto, é que se poderá definir se o meio de prova utilizado é moralmente legítimo ou não, focado em qual seja a finalidade buscada.

Segundo lição de Fredie Didier Jr, Rafael Oliveira e Paula Sarno Braga, existem três teorias que explicariam a finalidade da prova:

a) a que entende que a finalidade da prova é esclarecer a verdade;
b) a que sustenta ser sua finalidade fixar formalmente os fatos postos no processo;
c) a que entende que a sua finalidade é produzir o convencimento do juiz, levando-o a alcançar a certeza necessária à sua decisão.(3)

Ao pensarmos que o principal destinário da prova é o juiz, a prova teria como finalidade formar o seu convencimento, levando-o a decidir da melhor maneira e de forma mais justa. Dessa forma, a utilização do material colhido na reprodução assistida pode ser considerado meio de prova moralmente legítimo, a despeito de não estar previsto expressamente na legislação pátria (artigos 130 e 332 do Código de Processo Civil e artigo 212 do Código Civil).

E o que seria meio de prova moralmente legítimo? Este é o ponto nodal de toda a discussão, pois uma vez entendendo-se qual seja o conteúdo jurídico do meio de prova moralmente legítimo, poderá decidir-se se a utilização do sêmen para identificação do patrimônio genético seria aceito juridicamente.

Indo mais longe: a que se aplicar a razoabilidade/proporcionalidade na aceitação da produção de prova a viabilizar o direito à identidade genética, garantido por meio de exame com o sêmen coletado do doador, inobstante a previsão do direito ao anonimato e privacidade de quem doa.

No bojo do presente artigo a questão sobre o que seja moral ou mesmo o seu conteúdo não será aprofundada, já que a idéia é lançar a reflexão para posteriores discussões e avanços junto à classe jurídica, ressaltando que a expressão “meio de prova moralmente legítimo” possui conteúdo e alcance que permeiam o campo de equilíbrio entre direitos, garantias e realizações de todos os indivíduos envolvidos.

Ao analisarmos a moral e o direito em conjunto, de forma uníssona, poderíamos entender, por exemplo, como sendo moralmente legítimo todo o meio de prova que não anulasse o direito fundamental daquele que resiste à pretensão.

Nas palavras de Andrew C. Varga, ao tratar da Ética da Lei Natural(4):

[...] O homem é livre em muitas de suas atividades e pode agir livremente, de acordo com sua natureza racional ou, mesmo, opor-se a ela; ele pode agir de maneira humana e desumana. O ato moralmente bom é aquele que forma livremente em nós o genuinamente humano e nos leva para mais perto de nossa autorealização.

Atos que são conforme com nossa natureza são (atos) moralmente bons.

Imagine-se, por exemplo, o doador, que só fez a doação por ser garantido o anonimato e, após vários anos, tivesse que ser obrigado a fazer um exame, porque a criança gerada quer conhecer o pai biológico, aplicando-se, então, a presunção relativa prevista no artigo 232 do Código Civil. Estaríamos diante de direitos fundamentais em conflito ou colisão: direito à intimidade/privacidade e direito à identidade genética, que está incluído no direito ao nome (já erigido à categoria de direito da personalidade – artigo 26 do diploma material civil).

Ou ao contrário, o doador quisesse obrigar os pais da criança ou adolescente a fazer o exame, por querer incluir o indivíduo gerado na qualidade de seu sucessor, caso não tivesse herdeiros. Leila Donizetti traz interessantes questionamentos em seu livro:

Onde estaria, portanto, a dignidade dos doadores de sêmen que, premidos pela certeza de estarem fazendo uma boa ação - tal como as praticadas pelos doadores de sangue -, refutam a imposição de qualquer tipo de revelação sobre seus dados pessoais? E a dignidade do pai socioafetivo que, inicialmente não gostaria que a sua função de pai fosse ameaçada diante da possibilidade de o filho querer conhecer suas origens genéticas? Qual será o lugar-comum que permitirá a todas as partes envolvidas viver com dignidade?(5)

Em artigo publicado na revista eletrônica diálogo médico, há menção aos projetos de lei no Brasil, que tratam do tema quanto à identificação dos doadores de sêmen, pois há o temor que a possibilidade de identificação possa diminuir as doações, como já ocorreu em outros países.

O artigo traz o caso do garoto americano de quinze anos que mandou fazer o mapa genético num laboratório e de posse das informações, depois de nove meses, localizou dois homens com as características que buscava, descobrindo, ao final, quem era o seu pai biológico.(6) Segundo o que restou noticiado à época, gerou-se uma discussão: a criança gerada a partir de uma doação anônima de sêmen tem direito de conhecer o pai biológico? Em alguns países, como na Inglaterra, este direito virou Lei(7).

Roberto Wider(8) aponta opiniões contrárias e favoráveis à inseminação artificial heteróloga (aquela realizada com sêmen de doador desconhecido).

Interessantes alguns dos argumentos dos opositores mencionados no livro do autor, que se reputa conveniente destacar para enriquecer a discussão do que seria moralmente legítimo.

Os opositores à inseminação heteróloga argumentam que esta desestrutura a família, pois contraria a estrutura básica do matrimônio. Em contraposição menciona-se que o conceito de família restou ampliado com a Constituição Federal de 1988 (art. 226).

Sustentam, também, que há introdução de um ser formado sem o patrimônio genético do marido e que, caso não tenha havido consentimento deste, equivaler-se-ia ao adultério, o que encontra resistência no fato que não há relacionamento íntimo a configurar o crime.

Um outro ponto interessante é a alegação de que posteriormente pode haver repulsa do pai socioafetivo em relação ao filho e vice-versa. Neste caso, seria necessário o acompanhamento anterior de profissional da área de psicologia, o que não impediria a realização da inseminação.

De certo que são questões que não se limitam ao mundo jurídico, mas envolvem o conhecimento sociológico, psicológico, científico, e principalmente emocional. E somente todos esses fatores conjugados à questão jurídica, analisados e ponderados poderão estabelecer o que seja moralmente legítimo.

Notas da Autora:

[1] Os elementos são citados por Gisele Santos Fernandes Góes, em seu livro Princípio da Proporcionalidade no processo civil: o poder de criatividade do juiz e o acesso à justiça. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 115
[2] BULOS, Uadi Lâmego. Curso de Direito Constitucional. Atualizado até a Emenda Constitucional n. 53, de 19-12-2006. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 406-407 [3] DIDIER JR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podivm, 2007, vol. 2, p. 28.
[4] VARGA, Andrew C. Problemas de bioética edição revisada, traduzido por Pe. Guido Edgar Wenzel, S.J., São Leopoldo: Unisinos, 1998, p. 27
[5] DONIZETTI, Leila. Filiação Socioafetiva e Direito à Identidade Genética. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.58
[6] Identificar ou não. 2007. Disponível em < FONT>www.dialogomedico.com.br/dm/2007_01_02/secoes/polemica_PT.htm.> Acessado em 16.jun.2008.
[7] DOAÇÃO DE SÊMEN. 2005. . Acessado em 30.jun.2008
[8] WIDER, R. Reprodução Assistida. Aspectos do Biodireito e da Bioética, Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007, p.90-92

Extraído da Revista Virtual da AGU, Ano IX nº 90, julho de 2009

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