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08 dezembro 2009

A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA (2)


Parte 2/3


Roger Stiefelmann Leal
Doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo. Professor da Faculdade de Direito da Ritter dos Reis.

III. A transformação do perfil do Judiciário


Com o advento do Estado do bem-estar, o Welfare State, os órgãos estatais passaram a assumir funções que antes não lhes eram próprias. A partir das críticas ao modelo liberal provenientes, principalmente, do marxismo e da doutrina social da igreja, admitiu-se, em muitos países, a idéia do intervencionismo estatal de modo a proteger os hipossuficientes. A profunda alteração verificada a partir do intervencionismo promovido pelo Welfare State provocou praticamente a paralisia dos Parlamentos (12), devido ao acalorado debate ideológico que passou a se travar e à crescente necessidade, por força do princípio da legalidade, de leis que permitissem o desenvolvimento da atividade administrativa.

O Parlamento que, no modelo clássico, preponderava sobre os demais poderes se vê forçado a abdicar de sua posição. Desse modo, o Poder Executivo passa prevalecer na relação entre os poderes constituídos devido às múltiplas tarefas que passa a desempenhar e ao caráter democrático que vem a assumir (13). Esta modificação na relação entre os poderes, a seu turno, provocou significativas alterações no processo legislativo no sentido de acelerá-lo. Assim, concebeu-se a possibilidade do Executivo legislar através de delegações legislativas e atribuições constitucionais. Verificou-se, desse modo, um demasiado aumento na edição de leis, uma verdadeira inflação legislativa.

O Poder Judiciário não ficou inerte ante esse crescimento do Executivo e o acentuado aumento do número de leis e atos com força de lei. Passou a ser encarado como o escudo da sociedade, o protetor dos direitos individuais contra os avanços do Estado em “domínios alheios”, assumindo, em certas ocasiões, papéis políticos estranhos à concepção doutrinária clássica. Visto desse enfoque, o Poder Judiciário passou por mudanças de duas ordens: internas ou funcionais e externas ou institucionais. Tais mudanças, de certo modo, permitiram uma maior ingerência dos órgãos jurisdicionais, dando causa ao que se poderia chamar de “judicialização da política”.

1. Das mudanças internas ou funcionais do Poder Judiciário

A primeira fase do Welfare State denota ainda a preeminência, mesmo que decadente, do Poder Legislativo. Numa segunda etapa é que o Poder Executivo passa a preponderar, estabelecendo o chamado estado administrativo (14). Nesta primeira fase, desenvolveu-se a possibilidade de controlar os atos praticados pela administração. Nos países de origem anglo-saxônica, o controle da administração foi atribuído substancialmente aos tribunais ordinários, enquanto, nos países da Europa continental, criaram-se organismos especiais para decidir tais questões - as chamadas Jurisdições Administrativas (15). Os tribunais que integram as Jurisdições Administrativas, é importante que se ressalte, se mantêm tão independentes como os tribunais da jurisdição ordinária, com o acréscimo oriundo da especialização de seus membros em administração pública e direito administrativo (16). A partir da possibilidade de controlar a legalidade da atividade exercida pela administração, houve países, como a França, em que os tribunais estenderam o campo de ingerência a eles conferidos, e desenvolveram várias outras técnicas de controle da administração como a figura do desvio de poder, em que se pretende coibir o abuso do poder discricionário da administração (17).

Paralelamente à possibilidade de controlar os atos administrativos, desenvolveu-se a questão do controle da constitucionalidade das leis. É certo que ela foi oficialmente criada a partir do célebre caso Marbury vs Madison, porém o controle da constitucionalidade das leis passou a ter maior relevância na medida em que se editou um número maior de leis, invadindo domínios antes considerados “privados”. O Judiciário passou a ter poder sobre o Legislativo e o Executivo, pois o direito lhe permite anular os seus atos sob o irrefutável argumento de defender a Constituição. É nítido o engrandecimento e a profunda alteração do Poder Judiciário frente ao poder de controlar a atividade dos demais poderes, superando amplamente o campo da atividade dos tribunais, que não deveria ser nada mais que a execução da decisão política tomada. O controle da constitucionalidade é, essencialmente, controle político e, quando se impõe frente aos outros detentores do poder, é, na realidade, uma decisão política. Quando os tribunais proclamam e exercem seu direito de controle, deixam de ser meros órgãos encarregados de executar a decisão política e se convertem por direito próprio num detentor de poder semelhante, quando não superior, aos outros detentores do poder instituídos (18). O controle da constitucionalidade, notadamente, não pode ser qualificado como um mecanismo comum constante do sistema de freios e contrapesos do Estado. Normalmente ele confere uma preeminência ao órgão que dá a última palavra em matéria de Constituição. Ao se atribuir a órgãos jurisdicionais a função de ser intérprete último da Constituição, modifica-se substancialmente a coordenação entre os poderes.

Dado que a Constituição obriga a todos os poderes, aquele que tem como função precípua a guarda da Constituição é necessariamente superior aos demais. Não é sem propósito que a Suprema Corte dos Estados Unidos, de acordo com os ensinamentos de Pedro Lessa (19), é concebida entre os norte-americanos, exatamente pelo fato de ser o intérprete último da Constituição, como sendo um poder superior aos Poderes Legislativo e Executivo. Paulatinamente, o Poder Judiciário vem assumindo um papel de árbitro do processo político, decidindo conflitos constitucionais de ordem federativa e, sobretudo, de ordem interorgânica, fundamentando tal função na competência de interpretar a Constituição (20). Ao que parece, a Constituição brasileira de 1988 não destoa de tal tendência, conferindo ao Supremo Tribunal Federal o controle e a mediação política no embate entre os poderes (21).

Sempre tendo por base a guarda da Constituição, desenvolveram-se novas técnicas de controle dos poderes. Desse modo, passou a ser possível o controle da omissão constitucional, permitindo-se, em determinados países como o Brasil (22) e a Alemanha (23), inclusive a imposição de prazo ao legislador para que edite normas, substituindo a discricionariedade legislativa em relação ao momento oportuno para se legislar sobre determinada matéria. Outra técnica desenvolvida foi a chamada interpretação conforme a Constituição, em que o órgão designado como intérprete último da Lei Maior declara constitucional certo ato normativo desde que interpretado de uma determinada forma, ou seja, se a interpretação dada for incompatível com aquela consagrada pelo “guarda da Constituição” a lei se torna inconstitucional. É flagrante, nessa hipótese, que o tribunal atua como legislador positivo (24), edita, em termos práticos, uma genuína lei interpretativa. Vários países vem adotando este tipo de decisão, inclusive o Brasil (25).

Há, ademais, tribunais, como o Tribunal Constitucional Federal (26) alemão, que vão além. Ilustrativo dessa visão “progressista” da corte constitucional alemã é o caso relatado por Schlaich, (27) em que o tribunal, no exercício de suas funções de guarda da Constituição que lhe permite adotar medidas provisionais exigidas por razões de urgência e motivo relevante para o bem público (semelhante a uma medida cautelar), impediu, em sede de controle prévio de constitucionalidade, a entrada em vigor de uma lei que reformava o direito penal alemão e paralelamente elaborou uma lei penal transitória até a decisão definitiva.

O controle dos atos administrativos e o controle da constitucionalidade das leis e atos normativos juntamente ao processo de ampliação do “campo” constitucional (28) conferiram uma enorme esfera de poder aos órgãos jurisdicionais, ocasionando uma inevitável supremacia do Poder Judiciário que, inclusive, o torna mediador político no embate entre os poderes. É necessário que se observe que quanto mais um poder prepondera, mais vulnerável ele se torna a uma eventual politização. Ensina Lourival Vilanova que o poder politiza-se justamente porque se faz preeminente, globalizador, com o fim de implantar uma ordem concreta, através de normas que recebe (costume) ou que ele mesmo elabora, e de aplicar essas normas munido de sua excludente capacidade de impor-se (29). As técnicas desenvolvidas a partir da possibilidade de se controlar os demais poderes, tais como o desvio de poder e a interpretação conforme a Constituição, são sinais evidentes de uma politização da justiça proveniente da judicialização da política. Ora, tendo assumido o papel de resolver os conflitos existentes entre os poderes, agindo como árbitro do jogo político, os tribunais vêem-se na iminência da politização, ou seja, no dizer de Loewenstein, os detentores do poder, politicamente responsáveis - governo e parlamento - estão expostos à tentação de levar ante o tribunal um conflito político. Os juízes, por sua vez, estão obrigados a substituir as decisões dos responsáveis detentores do poder por seus juízos políticos, camuflados em forma de sentença judicial (30).

2. Das mudanças externas ou institucionais do Poder Judiciário

De outro lado, o Welfare State, ao exigir uma vasta legislação de modo a dar vazão ao intervencionismo estatal que o caracteriza, condiciona o legislador, devido ao acúmulo de tarefas que tem de desempenhar e ao embate ideológico travado por seus membros auxiliados pelos partidos políticos e grupos de pressão, a estabelecer nos textos de lei apenas princípios e diretrizes gerais de modo a orientar a atividade administrativa (31). É certo que em alguma medida, como se viu anteriormente, a atividade de intérprete conferida ao juiz comporta, de algum modo, elementos de criatividade. Contudo, uma legislação que se limita a estabelecer diretrizes e princípios amplia sensivelmente a discricionariedade judicial. Obviamente, como preceitua Cappelletti (32), nessas novas áreas abertas à atividade dos juízes haverá, em regra, espaço para mais elevado grau de discricionariedade e, assim, de criatividade pela simples razão de que quanto mais vaga a lei e mais imprecisos os elementos do direito, mais amplo se torna também o espaço deixado à discricionariedade nas decisões judiciárias. Esta é, portanto, poderosa causa da acentuação que, em nossa época, teve o ativismo, o dinamismo e, enfim, a criatividade dos juízes.

A ambigüidade das normas legais e constitucionais, aliada a um sentimento de co-responsabilidade do juiz, na medida em que é chamado a corrigir os desvios na execução das finalidades inscritas nos textos legais e constitucionais (33), têm o condão de afastar o juiz da clássica neutralidade. O juiz passa a ser encarado como elemento participante do sucesso ou do fracasso político do Estado (34). Contudo tal ideologização do juiz tem um efeito perverso, pois cada juiz tem para si o seu Estado ideal. Dificilmente, os juízes entrariam num acordo em relação a qual modelo político é o mais correto. Desse modo, imbuídos da responsabilidade política que o Welfare State lhes impôs, os juízes interpretam os conceitos indeterminados explicitados através de princípios e diretrizes gerais do modo que mais lhes agrada politicamente, ou, ao menos, se veêm tentados a tanto.

Notas do Autor:
(12) Cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Do Processo Legislativo. p.119-120.
(13) Cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Do Processo Legislativo. p.121-122.
(14) Cf. Mauro Cappelletti, Juízes Legisladores ?. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1993,p.39.
(15) Cf. Mauro Cappelletti, op.cit., p.52.
(16) Cf. Karl Loewenstein, Teoria de la Constitución. Barcelona, Ariel, 1970, 2ªed., p.306-307.
(17) Cf. Karl Loewenstein, op.cit., p.308; também Odete Medauar, Controle da Administração Pública. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1993, p.178.
(18) Cf. Karl Loewenstein, op.cit., p.309.
(19) Cf. Do Poder Judiciário. São Paulo, Francisco Alves, 1915, p.3-4.
(20) Tal fenômeno é denominado por Loewenstein de “a judicialização” da política” (op.cit., p.321 e segs.).
(21) Cf. Ada Pellegrini Grinover, “A crise do Poder Judiciário”, O Processo em Evolução. Rio de Janeiro, Forense Universitária,1996, p.24.
(22) Cf. Mandado de Injunção nº447-1 / DF, D.J.U. de 1º de julho de 1994.
(23) Cf. Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição Constitucional. São Paulo, Saraiva, 1996, p.229.
(24) Cf. Ignacio de Otto, op.cit., p.286.
(25) Cf. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 581 / DF, in RTJ nº144, p.146; também Representação nº1417 / DF, in RTJ nº126.
(26) Há de se advertir que o Tribunal Constitucional Federal alemão, a exemplo de outros tribunais constitucionais, não é orgão integrante do Poder Judiciário (Cf. Louis Favoreu, op. cit., p.34). Trata-se de um poder autônomo cuja a função precípua consiste no exercício da jurisdição constitucional. É, em princípio, órgão jurisdicional independente do Poder Judiciário.
(27) Cf. “El Tribunal Constitucional Federal Alemán”, Tribunales Constitucionales Europeos y Derechos Fundamentales. Madrid, Centro de estudios constitucionales, 1984, p.205.
(28) ver a propósito Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Estado de Direito e Constituição. São Paulo, Saraiva, 1988, p.84-85.
(29) Cf. “A Dimensão Política nas Funções do Supremo Tribunal Federal”, Arquivos do Ministério da Justiça nº 154, p.66.
(30) Cf. op.cit., p.325.
(31) Cf. Karl Loewenstein, op.cit., p.307.
(32) Cf. op.cit., p.42.
(33) Cf. Tércio Sampaio Ferraz Júnior, “O Judiciário frente à divisão dos poderes: um princípio em decadência? ”, Revista Trimestral de Direito Público nº 9, p.45.
(34) Cf. Tércio Sampaio Ferraz Júnior, op.cit., p.45.

Extraído do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRGS

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