Translate

03 dezembro 2009

CONTEÚDO JURÍDICO DO MEIO DE PROVA MORALMENTE LEGÍTIMO-4/5


Parte 4/5


CONTEÚDO JURÍDICO DO MEIO DE PROVA MORALMENTE LEGÍTIMO PREVISTO NO ARTIGO 332 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL:  O USO DO SÊMEN COLETADO NA REPRODUÇÃO ASSISTIDA

Andrea Carla Veras Lins
Advogada da União. Pós-graduanda em processo civil pela Faculdade de Negócios de Sergipe, integrante da comissão de advocacia pública da Ordem dos Advogados do Brasil/SE.

3 A UTILIZAÇÃO DO SÊMEN COLHIDO NA REPRODUÇÃO ASSISTIDA E O DIREITO AO ANONIMATO DO DOADOR. COLISÃO DE DIREITOS E CRITÉRIOS DE SOLUÇÃO PARA O CONFLITO

De forma breve, até por não ser o ponto específico do trabalho, é interessante salientar as formas de inseminação artificial, a fim de se ter em mente a dificuldade, na prática, de decisão em casos de recolhimento do material genético existente como a seguir mencionadas.

Existem duas formas de inseminação artificial: a homóloga e a heteróloga. Na inseminação homóloga, o material genético pertence ao casal interessado, quando, por exemplo, um ou ambos parceiros têm problemas de fecundação natural. Na inseminação heteróloga, o sêmen ou óvulo é doado por terceira pessoa.

A fim de facilitar e especificar o estudo limitar-se-á à análise acerca da inseminação heteróloga e no caso de doador de sêmen, eis que as discussões de caráter jurídico e ético são maiores, pois há maior possibilidade de questionamentos, verbi gratia, quanto à paternidade ou mesmo na necessária identificação da ascendência genética nos casos de preservação do direito à vida.

Esse tipo de inseminação possui, dentre suas características principais, o anonimato de doadores e receptores, bem como de todo o processo.

Não se irá discutir a investigação de paternidade, mas sim demonstrar, que mesmo nas relações entre pais e filhos, afetivamente desenvolvidas, pode haver necessidade de se definir o patrimônio genético/ascendência genética, principalmente, quando pensamos no desenvolvimento da medicina e as reflexões  diretas ou indiretas no direito à vida ao se prever, por exemplo, a predisposição a doenças de acordo com a ascendência genética ou quando há compatibilidade entre doador e receptor de órgãos e tecidos.

Como exemplo do surgimento das primeiras questões levadas ao Judiciário, transcrevemos in verbis, decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. NULIDADE DO REGISTRO DE NASCIMENTO. ALEGAÇÃO DE INDUÇÃO EM ERRO. INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HETERÓLOGA. LEGITIMIDADE ATIVA DOS HERDEIROS COLATERAIS. Legitimidade ad causam de quem tenha legítimo interesse moral ou material na declaração da nulidade do registro de nascimento. Ação que tem por base erro em que o pai foi induzido ao registrar o filho que pensava ser fruto de inseminação artificial heteróloga. Necessidade de se permitir o prosseguimento do feito, para eventual produção de prova do vínculo afetivo. Inexistência de prescrição. Sentença cassada. APELO PROVIDO PARA DETERMINAR PROSSEGUIMENTO DO FEITO. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70011878899, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 14/09/2005)

Em geral, nas clínicas de fertilização, os bancos de sêmen são desenvolvidos a partir de doações espontâneas e gratuitas e o doador deve assinar um documento reconhecendo que jamais poderá saber se o seu esperma foi utilizado ou não. A mulher, por sua vez, deve abrir mão do desejo de conhecer a identidade do doador.

Daí porque a argumentação quanto à possibilidade ou não de utilização do material coletado, como meio de prova moralmente legítimo, quando o que se está em jogo é o próprio direito à vida ou identificação do patrimônio genético.

Não se pode falar em exclusão de direitos, mas na preservação do bem da vida. Mas é preciso levar em conta, também, a autonomia da clínica e do médico responsável, que se veria obrigado a entregar o material coletado. São questionamentos que impõem a análise da utilização da adequação, necessidade e proporcionalidade (stricto sensu), já mencionados. Guilherme Guimarães Feliciano ao tratar da proporcionalidade estrita ensina(12):

[...] O subprincípio da proporcionalidade estrita é, a um tempo, um princípio valorativo (rastreiam-se e identificam-se valores) e um princípio comparativo (sopesam-se fatos e valores). Ao operá-lo, o exegeta abstrai-se do mundo das coisas e projeta-se no mundo dos valores, para aí ponderar sobre as teses axiológicas que melhor comporão a Fallnorm; mas não o fará em livre exercício filosófico, pois deverá estribar-se no conjunto dos fatos que, concretamente, precipitaram o conflito entre direitos, bens e/ou valores juridicamente relevantes.[...].

A questão não é pacífica nem no Brasil, nem em outros países. A decisão a ser tomada é delicada, ainda mais por envolver direitos fundamentais de todos os sujeitos do processo: do doador, da clínica, do médico, dos pais e da criança gerada. De novo: é importante que o julgador tenha em mente os Princípios da Razoabilidade e Proporcionalidade, cuja solução será alcançada diante do caso concreto.

Já o legislador não poderá prever caso a caso, devendo achar uma medida que seja equilibrada, para não levar ao desencorajamento dos doadores que preferem, em geral, o anonimato. O anonimato não é para o gesto de doar, mas é para o que virá a partir dele, como ressaltou um doador em reportagem ao site do fantástico em 2005.(13)

No Brasil, a Resolução 1.358/92, do Conselho Federal de Medicina, regulamenta que os embriões excedentes não podem ser descartados e também cuida do sigilo do doador. Mas a Resolução não estabelece o tempo máximo de congelamento. O fato é que os embriões dos doadores, em permanecendo à disposição das clínicas de fertilização, podem ser obtidos, ainda que se dependa de determinação judicial.

Dentre os projetos de lei que disciplinam as questões relativas à reprodução assistida (e especificamente acerca da possibilidade de utilização do sêmen do doador pela criança gerada) destaca-se o projeto de lei n° 120/03, ao qual está apensado o PL n° 4686/2004. Ambos encontram-se arquivados e tratam, exclusivamente, da regulamentação do direito da criança gerada e da sucessão, não estabelecendo quais os limites e conseqüências relativas ao doador, aos pais, à clínica e ao médico responsável.

Igualmente não temos ainda um tratamento específico da matéria no âmbito dos ribunais, mas a jurisprudência aponta no sentido da análise do caso concreto, observando-se os valores envolvidos. Guilherme Guimarães Feliciano cita vários julgados, que, a nosso ver, guardariam relação com o tema ora tratado, dentre os quais mencionamos dois. O primeiro julgado abaixo menciona o meio moralmente legítimo de produção de prova(14). E no segundo, discute-se acerca do direito ao nome(15):

PROCESSO CIVIL. PROVA. GRAVAÇÃO DE CONVERSA TELEFONICA FEITA PELA AUTORA DA AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE COM TESTEMUNHA DO PROCESSO. REQUERIMENTO DE JUNTADA DA FITA, APÓS A AUDIENCIA DA TESTEMUNHA, QUE FOI DEFERIDO PELO JUIZ. TAL NÃO REPRESENTA PROCEDIMENTO EM OFENSA AO DISPOSTO NO ART. 332 DO CPC, POIS AQUI O MEIO DE PRODUÇÃO DA PROVA NÃO E ILEGAL, NEM MORALMENTE ILEGITIMO. ILEGAL E A INTERCEPTAÇÃO, OU A ESCUTA DE CONVERSA TELEFONICA ALHEIA. OBJETIVO DO PROCESSO, EM TERMOS DE APURAÇÃO DA VERDADE MATERIAL ("A VERDADE DOS FATOS EM QUE SE FUNDA A AÇÃO OU A DEFESA"). RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. VOTOS VENCIDOS.
(STJ, REsp 9012-RJ, Rel. Min. Cláudio Santos, 24.2.1997, DJ 14.4.1997)

[...] O direito ao nome insere-se no conceito de dignidade da pessoa humana e traduz sua identidade, a origem de sua ancestralidade, o reconhecimento da família, razão pela qual o estado de filiação é direito indisponível, em função do bem comum maior a proteger, derivado da própria força impositiva dos preceitos de ordem pública que regulam a matéria (Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 27)
(STF, RE n° 248869-SP, rel. Min. Maurício Correa, 7.8.2003, DJ 12.3.2004, pág 38)

Notas da Autora:

[12] FELICIANO, Guilherme Guimarães. Direito à prova e dignidade humana, cooperação e proporcionalidade em provas condicionadas à disposição física da pessoa humana (abordagem comparativa), São Paulo: LTr, 2007, p.91
[13] DOAÇAO DE SÊMEN. 2005. Disponível em . Acessado em 30.jun.2008
[14]FELICIANO, op. cit., pag. 96
[15] Ibidem, pag. 127

Extraído da Revista Virtual da AGU, Ano IX nº 90, julho de 2009

Nenhum comentário: