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11 junho 2010

A HERMENÊUTICA E AS QUESTÕES DE FAMÍLIA FRENTE A UM DIREITO CONSTITUCIONALIZADO-2

Parte 2-Final




Laura Affonso da Costa Levy
Advogada. Especialista na área de Direito de Família e Sucessões, pela PUC/RS.


3. Das Questões de Família

Não é de nossos dias que as questões de família estão se modificando. Já desde o transcorrer do século XX que as alterações na sociedade, bem como no seio das famílias, passaram a influenciar as mudanças na seara familiar.

Assim, a saída da mulher do entrono do lar para o mercado de trabalho, o avanço tecnológico na ciência e nas pesquisas quanto à fertilidade, a superação da afetividade sobre a consangüinidade, a equiparação e consolidação dos direitos entre casamento e união estável, a busca pelos direitos das uniões homoafetivas, entre outros, contribuíram para que o Direito de Família (e Sucessões, conseqüentemente) sofresse brusco avanço.

O Direito, como um dos legados da modernidade – visto como instrumento de transformação social e não como obstáculos às mudanças sociais – formalmente encontrou guarida na Constituição de 1988. A forma desse veículo, por assim dizer, de acesso à igualdade prometida pela modernidade foi a instituição do Estado Democrático de Direito.

A Constituição, por sua vez, oferece um amparo à família, criança, adolescentes e idosos, consubstanciados entre os artigos 226 e 230. Garante direitos inerentes ao ser humano e ligado com os direitos fundamentais também consagrados na nossa Carta Magna.

Nossas legislações infraconstitucionais também garantem a proteção dos enlaces que envolvem o direito das famílias. Assim, alterações que vieram em nosso Código Civil, apesar de existirem inúmeras lacunas e deixar de ter observado questões de suma importância, acabaram por contribuir para ampliar o escopo de direitos e garantia. Assim, como a Lei da Criança e do Adolescente, do Idoso, do Divórcio, da Investigação de Paternidade, enfim, textos legislativos que inovaram e que possibilitaram um novo olhar sobre as relações de afeto e de família.

4. Da hermenêutica nas questões de família frente a um Direito Constitucionalizado.

Iniciemos esse ponto a partir de Bourdieu[7] quando faz uma “divisão” do trabalho jurídico, assim: os hermeneutas – que possuem a fala autorizada no campo da dogmática jurídica dominante – fazem o que se poderia chamar de trabalho intelectual, restando para os operadores/aplicadores do Direito uma espécie de trabalho “manual” de reprodução do sentido instituído e instituinte.

Por tudo isso, o processo hermenêutico deve ser um dever. Interpretar é dar sentido, que por sua vez é tornar possíveis gestos de interpretação.[8] Para tanto, nenhum intérprete pode pretender estar frente ao texto normativo livre de pré-compreensões, pois isto equivaleria a estar de fora da história e a fazer emudecer a norma.

Torna-se indispensável denunciar que os sentidos das normas não estão organizados por regras expressas, mas sim, delegados por uma regra de formação destinada a distribuir o poder mediante a distribuição da palavra.

Assim, um dispositivo jurídico terá ou não eficácia a partir do processo de produção de sentido que nasce do processo hermenêutico. A partir disso, é possível dizer que deixam de existir julgamentos “de-acordo-com-a-lei” ou “em-desacordo-com-a-lei”, vez que o texto normativo não contém a norma, esta é construída pelo intérprete no decorrer do processo de concretização do direito.

A lei, assim, nunca é “em si mesma”, nunca é “ela mesma”, porque somente se apresenta para nós mediante sua simbolização (pela linguagem). Isto sem esquecer a advertência de que “nunca se sabe o que pode acontecer com uma realidade até o momento em que se a reduziu definitivamente a inscrever-se numa linguagem”.[9]

Conseqüentemente, a Constituição, em toda a sua substancialidade, é o topo do trabalho hermenêutico que conformará a interpretação jurídica do restante do sistema. A partir disso, há que se ter claro que princípios valem, regras vigem; os princípios, enquanto valores fundamentais governam a Constituição. Não apenas a lei, mas o Direito em toda a sua extensão. Desse modo, a violação de um princípio passa a ser mais grave que a transgressão de uma regra jurídica.

Quanto à hermenêutica, o texto constitucional é e será aquilo que o processo de produção de sentido estabelecer como arbitrário juridicamente prevalecente.

Assim, quando adentramos na seara do ambiente do Direito de Família temos que ter a clareza de que os princípios constitucionais, esses de caráter fundamentais, têm de prevalecer no momento da interpretação jurídica. O sentido dado às normas não podem se desvencilhar da intenção do legislador.

Dessa maneira, as transformações da/na sociedade, que exigem que os operadores do direito revejam suas análises interpretativas, exigem, por sua vez, uma transformação na forma de ver/ler a lei.

Assim, uma vez que a Constituição Federal garante, nos princípios fundamentais, a não discriminação, a igualdade, a liberdade, a identidade, entre outros, isso é que deve ser levado em consideração quando se está diante de um enquadramento fático em uma norma jurídica. Preservando, dessa forma, o melhor tratamento e a garantia de uma aplicabilidade coerente da norma ao fato em sim.

É a partir dessa forma de hermenêutica jurídica da linguagem e a constitucionalização do Direito que se garantirá preservação do afeto nas relações de família, tratamento familiar às uniões homoafetivas, prevalência da proteção aos menores, defesa da igualdade entre os pais nas questões da parentalidade, etc. Temas em destaque que merecem o nosso olhar atento.

E a máxima jamais deve ser esquecida, O Direito é uma ciência prática a fim de resolver os problemas sociais. Assim, a tarefa de interpretar consiste em concretar a lei em cada caso, não se afastando da história de da vida factual.

Notas da Autora:

[7] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: DIFEL, 1989, p. 235.
[8] ORLANDI, Eni P. O discurso fundador. Campinas: Editora Pontes, 1993.
[9] LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar, 1995, p. 34.

Texto publicado originalmente no EVOCATI Revista nº 47 (17/11/2009), de onde foi extraído.

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