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15 junho 2010

AFETIVIDADE COMO FUNDAMENTO NA PARENTALIDADE RESPONSÁVEL-2

Parte 2/4



Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat Cabral
Advogada; Doutoranda em Ciências Jurídicas; Especialista em Direito Privado, em Direito Público e em Educação; Professora.



3 Da Família Tradicional à Afetividade

A história da família apresenta uma série de fases evolutivas que provocaram profundas transformações na sociedade através dos tempos. Desde a Antiguidade até nossos dias, vem-se modificando, evoluindo, traçando novos contornos para o conceito de família. Leciona Venosa (2007, p. 2) que "entre os vários organismos sociais e jurídicos, o conceito, a compreensão e a extensão de família são os que mais se alteram no curso dos tempos".

Em época muito remota, sabe-se que as pessoas se ajuntavam em grupos para garantir a sobrevivência e a subsistência, em busca de fortalecimento contra o frio, facilitação da caça e, mais tarde, objetivando a perpetuação da espécie.

No Estado primitivo, as relações familiares não se baseavam em moldes individuais. Predominava a endogamia. Por esse motivo, conhecia-se apenas a mãe, o que levou alguns doutrinadores a afirmam que a família era matriarcal. (ENGELS apud VENOSA, p. 3).

Somente muito mais tarde, quando as relações tendem a se individualizar, organizando-se em núcleos menores com a finalidade de construir patrimônio, cada um procura formar sua própria família.

Nas leis gregas e romanas a família se constituía sob imperativa influência da religião, que ditava o regramento para todas as condutas civis e sociais. As famílias mantinham o fogo sagrado, prestavam culto em que ofereciam seus sacrifícios e adoravam aos deuses – seus antepassados – que eram considerados seres sagrados. (COULANGES, 2003, p. 24). A mulher não possuía aptidão para prática de nenhum negócio jurídico, nem podia decidir sobre seu destino. Ensina Coulanges (2003, p. 43) que essa religião "[...] não pertencia exclusivamente ao homem, pois a mulher também tomava parte no culto. Como filha, ela assistia aos atos religiosos do pai; casada, aos do marido".

Com o Cristianismo, censuram-se as uniões livres, institui-se o casamento como sacramento, cercando-o de várias solenidades perante autoridades religiosas. Na Idade Média, a Igreja desempenha importante papel, impondo vários dogmas.

No curso da História o homem caminha para as relações individuais, e a monogamia passa a desempenhar um papel de impulso social em benefício da prole, consolidando o poder paterno. (VENOSA, 2007, p. 3). Com a aquisição de bens, começa-se a formar patrimônio, e a preocupação com a transmissão deste impõe a necessidade de se ter certeza sobre a filiação. Há um fortalecimento da família patriarcal.

No Brasil-Colônia desenvolveu-se um conceito de família como "unidade produtiva, refletindo os valores daquela sociedade agrícola, patriarcal, hierarquizada e patrimonialista" (FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 9).

Sob a égide do diploma civil de 1916, somente a família constituída pelos laços do matrimônio gozava de proteção estatal. O casamento passou a ter a função de demarcar o direito sucessório, deferindo aos filhos dele advindos a qualidade de herdeiros, fato extremamente relevante para a sociedade cujos olhos estavam voltados, quase que exclusivamente, para o patrimônio.

Hoje, na sociedade pós-moderna, a família contemporânea ganha novos contornos: o casamento e a família dele decorrentes continuam sendo valorizados pelo ordenamento jurídico, porém, é possível se evidenciar que o formalismo vem cedendo espaço aos laços afetivos.

3.1 Erosão da Família Hierarquizada

Em tempos não tão remotos, a família se apresentava estruturada sob marcante hierarquia. O homem era o chefe da família. O filho obedecia ao pai; em segundo lugar, à mãe; e, em terceiro, ao irmão mais velho. O modelo hierarquizado e patriarcal impunha um conceito de respeito reverencial em que as pessoas deviam obediência ao pai e temiam descumprir suas ordens. Muitas injustiças foram cometidas por não se poder questionar uma ordem, às vezes, equivocada. Isso porque as relações eram baseadas no respeito-temor, e não no respeito-cuidado.

A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos – que no momento pós-guerra passa a enfatizar os direitos fundamentais, estabelecendo a liberdade, a igualdade, a fraternidade e o direito à dignidade – muitas transformações ocorreram em relação à pessoa e à família. Surgem, no mundo ocidental, os movimentos sociais das décadas de 60, 70 e 80, a busca pela efetivação dos direitos da mulher, a luta pela liberdade de manifestação do pensamento e outras relevantes transformações sociais.

No Brasil não foi diferente. Tais movimentos foram bastante marcantes, refletindo na juventude uma postura excessivamente liberal, cujas características eram a rebeldia e a irreverência, rompendo de forma radical com os padrões até então estabelecidos. Além disso, havia os ideais políticos caracterizados pelo enorme desejo de pôr fim à ditadura militar.

Todas as mudanças legislativas e sociológicas não alteraram a necessidade que tem a espécie humana de pertencer a um núcleo afetivo que lhe sirva de família. É o que se abstrai da dicção de Oliveira; Hironaka (2007, p. 7):

"Os seres humanos mudam e mudam os seus anseios, suas necessidades e seus ideais, em que pese a constância valorativa da imprescindibilidade da família enquanto ninho. A maneira de organizá-lo e de fazê-lo prosperar, contudo, se altera significativamente em eras e culturas não muito distantes uma da outra."

Com a ordem constitucional inaugurada em 1988, a família passa por importantes e sensíveis evoluções. A primeira delas é o princípio da igualdade entre os cônjuges que por via de consequência direta extingue o pátrio poder e institui o poder familiar, agora exercido pelo casal, em igualdade de condições; além de determinar que a administração do lar passa a caber a ambos. A segunda grande diferença é que a Constituição Federal determina a isonomia entre os descendentes, o que faz cessar qualquer tipo de desigualdade entre irmãos, independente da origem da filiação. Outro divisor de águas é a afetividade, a trazer como consequência o fato de que a família pós-moderna, no dizer de Farias (2007, p. 14), "tem o propósito de impulsão para a afirmação da dignidade das pessoas de seus componentes, tratando-se de locus privilegiado, o ambiente propício, para o desenvolvimento da personalidade humana em busca da felicidade pessoal e não mais como instituição merecedora de tutela autônoma, justificada por si só, em detrimento, não raro, da proteção humana".

A atual realidade sobre as diferentes manifestações de família impõem a observância de certos princípios constitucionais, mormente no que se refere ao modelo de família afetiva e mosaica, em que há filhos de um cônjuge, filhos do outro e filhos comuns. Nesse caso, que atualmente parece ser a regra, é necessário que haja muito equilíbrio para que se alcance um ambiente favorável ao desenvolvimento de pessoas tão diferentes entre si, mas que por forças circunstanciais vivem juntas.

3.2 Aprendendo a Valorizar Laços Afetivos com O Pequeno Príncipe

No clássico O Pequeno Príncipe, Saint-Exupèry narra as aventuras de um principezinho, cuja saga consiste em visitar diferentes planetas a fim de conhecê-los e desvendar-lhes os mistérios. Nessas viagens, vivencia muitas descobertas ao se deparar com diversos personagens que o conduzem a despertar profundas reflexões, muitas vezes altamente filosóficas, sobre os valores essenciais da vida.

O protagonista possui dois vulcões e uma rosa. Encontra-se durante essa encantadora aventura com o rei, o vaidoso, o bêbado, o homem de negócios, o acendedor de lampiões, o velho escritor, as rosas, a raposa e, entre outros, o geógrafo.

Importante destacar que, com cada um deles, o principezinho reúne aprendizados que se tornam importantes mandamentos para a formação de seu caráter, de seus princípios e de uma salutar construção de regras de convivência. Aprende, principalmente, a "criar laços" e a compreender a importância destes para a realização pessoal rumo à felicidade.

Dentre as mais variadas situações existenciais, merece destaque um profundo diálogo entre o principezinho e a raposa. Nesse episódio, o autor salienta a importância da afetividade e da arte de "criar laços". Observe-se:

"– Sou uma raposa, disse a raposa.

– Vem brincar comigo, propôs o principezinho. Estou tão triste...

– Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. Não me cativaram ainda.

– Ah! Desculpa, disse o principezinho.

Após uma reflexão acrescentou:

– Que quer dizer ‘cativar’?

– Tu não és daqui, disse a raposa. Que procuras?

– Procuro os homens, disse o principezinho. Que quer dizer ‘cativar’?

– Os homens, disse a raposa, têm fuzis e caçam. É bem incômodo! Criam galinhas também. É única coisa interessante que eles fazem. Tu procuras galinhas?

– Não, disse o principezinho. Eu procuro amigos. Que quer dizer ‘cativar’?

– É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa ‘criar laços...’

– Criar laços?

– Exatamente, disse a raposa. Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...

– Começo a compreender, disse o principezinho. Existe uma flor... eu creio que ela me cativou..." (SAINT-EXUPÈRY, 1981, p. 68-69)

O rico diálogo apresentado evidencia, entre muitas outras lições de vida, a importância de cativar, que, explica a raposa, significa "criar laços". Semelhante relação Farias; Rosenvald (2008, p. 25) estabelecem sobre o conceito de família fundada na afetividade.3 Tão importantes os laços afetivos que não aceitou o convite do principezinho para brincarem juntos, pois não podia, sem que antes fosse por ele cativada. Depreende-se que só é possível um envolvimento verdadeiro entre pessoas que se tenham cativado: criado, desenvolvido e estreitado laços afetivos. É possível perceber claramente nas entrelinhas que se trata da construção da confiança que deve ser estabelecida, e que esta é indispensável ao aprazível relacionamento.

Quando já se cativou, a pessoa passa a ser especial, diferenciada, única: "única no mundo". Eis a grande diferença existente, o verdadeiro distanciamento entre o fato de se estabelecer um contato superficial e o de se conhecer alguém.

As pessoas somente conhecem de verdade aquelas a quem cativaram e por quem foram cativadas, porque é nessa interação que se desenvolve a interdependência, passando as pessoas a terem necessidade umas das outras. Saliente-se, uma necessidade salutar, capaz de libertar e não de criar amarras, porque onde há o verdadeiro amor há liberdade.

Agora, a raposa explica a importância da paciência, da arte de conquistar, da linguagem do olhar, por fim, da confiança, novamente...

"A raposa calou-se e considerou por muito tempo o príncipe:

– Por favor... cativa-me! disse ela.

– Bem quisera, disse o principezinho, mas eu não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.

– A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me!

– Que é preciso fazer? perguntou o principezinho.

– É preciso ser paciente, respondeu a raposa. Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, cada dia te sentarás mais perto..." (Ibidem, p. 70)

A confiança que não aparece de maneira textual, mas nas entrelinhas, é um elemento importantíssimo na convivência em família. É a expressão da boa-fé objetiva nas relações de parentesco, que deságua na vedação do comportamento contraditório. Não pode haver frustração da expectativa entre as pessoas que se amam, pois umas esperam das outras condutas positivas como carinho, atenção, zelo, enfim, todas as manifestações de promoção do bem-estar. O contrário não se pode esperar das pessoas que convivem em família. Seria um comportamento obviamente contraditório amar e praticar condutas nocivas àqueles a quem se ama como o desrespeito, a falta de cuidado e todas as outras espécies de atitudes capazes de provocar um mal-estar.

Concluindo com Farias; Rosenvald (2008, p. 65), a efetivação da solidariedade social "se cristaliza através da tutela jurídica da confiança, impondo um dever jurídico de não serem adotados comportamentos contrários aos interesses e expectativas despertadas em outrem"[12]. É, pois, indispensável que as pessoas que convivem em família se cativem a cada dia, através de pequenas ou grandes demonstrações de cuidado. Observe-se o principezinho conversando com as flores de um roseiral, comparando "sua" rosa com as várias que encontrou:

"Sois belas, mas vazias, não se pode morrer por vós. Minha rosa, sem dúvida, um transeunte qualquer pensaria que se parece convosco. Ela sozinha é, porém, mais importante que vós todas, pois foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus sob a redoma. Foi a ela que abriguei com o pára-vento. Foi dela que eu matei as larvas (exceto duas ou três por causa das borboletas). Foi a ela que eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa." (SAINT-EXUPÈRY, 1981, p. 72)

A importância do cuidado evidencia-se nas palavras do principezinho ao narrar as condutas de zelo que praticava rumo à promoção do bem-estar de sua rosa: regar para crescer; recolher na redoma para resguardar; abrigar para proteger do vento; matar as larvas objetivando preservar a saúde e o desenvolvimento; ouvi-la nos momentos de dificuldades e nos de alegria. Importante salientar que quando o principezinho diz que não se pode morrer por aquelas rosas, subentende-se que pela sua rosa ele seria capaz de dar a própria vida, o que denota um sentimento muito profundo de afeto e de amor.

O cuidado tem por finalidade precípua, além da proteção, o desenvolvimento das potencialidades de forma a assegurar uma convivência pacífica, altruística, sadia e responsável. Cada um dos membros da família é responsável pelo ambiente que ajuda a criar e pela contribuição para a salutar formação das pessoas do núcleo familiar, o que se coaduna perfeitamente com o que se encontra registrado, com muita propriedade, em outro comentário da raposa, ao se despedir do principezinho:

"– Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.

– O essencial é invisível para os olhos, repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.

– Foi o tempo que perdeste com tua rosa que fez tua rosa tão importante.

– Foi o tempo que eu perdi com minha rosa... repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.

– Os homens esqueceram essa verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas." (SAINT-EXUPÈRY, 1981, p. 72)

Infere-se do excerto outro elemento importantíssimo na arte de criar laços: o tempo. O tempo que se gasta, que se investe em alguém, em um relacionamento produz o verdadeiro envolvimento. O tempo que se dedica às pessoas torna-as importantes, porque na medida em que horas são empregadas em condutas de zelo, de satisfação de necessidades, de assistência ou mesmo de companhia, os laços afetivos se estreitam e se fortalecem. Para se "criar laços", no mais elevado sentido da expressão, é indispensável que haja um investimento de tempo, pois se trata de uma conquista que requer dedicação.

Notas da Autora:

3 - Comentam: "Nessa linha de intelecção, a entidade familiar deve ser entendida, hoje, como grupo social fundado, essencialmente, em laços de afetividade, pois a outra conclusão não se pode chegar à luz do texto constitucional".

Extraído de Editora Magister/doutrina, edição de 10/05/2010, Porto Alegre, RS.

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