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01 dezembro 2008

REFLEXÕES SOBRE A HERMENÊUTICA JURÍDICA

O blog traz uma questão bastante instigante e que está inquietando o mundo jurídico brasileiro que é a aplicação da hermenêutica na interpretação das normas legais e conseqüências daí extraídas para sustentação dos julgamentos. Sendo este um país que tem um sistema legal com grande profusão de leis e, sobretudo, tendo o legislador optado por restringir ao mínimo os conceitos, editando leis com cláusulas abertas, abrem-se, com isso, espaços cada vez mais elásticos para o campo da exegese.

Daí, muito oportuno o artigo publicado no blog
Promotor de Justiça, e de autoria de seu editor, que aqui se reproduz, como interessante reflexão para todos que cultuam o direito.

A indagação final de como interpretar o direito hoje é algo que desafia a quantos atuam na área jurídica, especialmente aqueles que têm a responsabilidade de proferir julgamentos.

Deveras preocupante o posicionamento jurisprudencial em matéria penal, como destacado no artigo. Parece haver uma dissociação entre o sentimento geral e a leniência judicial que só faz progredir a onda de criminalidade que a todos assusta.

A restrição do uso de algemas, a rejeição de videoconferência, a superação da súmula 691 para apreciação de liminares, a proibição de utilização de nomes de operações policiais e a possível vedação ao poder investigatório do MP, dentre outras medidas de igual jaez, evidentemente, máxima vênia, podem ser consideradas como exemplos de decisões que se postam na contramão do combate à criminalidade. Nesse andar, em breve, será preciso pedir licença para processar alguém criminalmente e a condenação será tarefa extremamente árdua.

Talvez não haja no mundo outro país em que pessoas com larga ficha criminal, investigadas por crimes gravíssimos, estejam “legalmente” soltas.

A sensação de impunidade torna-se, assim, cada vez maior e mais clara.

Uma lástima.

Segue o artigo:


HERMENÊUTICA JURÍDICA : O PONTO CRÍTICO É O PONTO DE VISTA


Foto extraída do blog



Por César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça no Mato Grosso.



Como escreveu Luiz Bispo(1), se verdadeiramente, o primeiro homem foi Adão, a primeira mulher Eva e os seus primeiros filhos Caim e Abel, muito teríamos de fazer para uma vida ordeira e pacífica. A primeira mulher, induzindo o homem inicialmente ao pecado, à mentira, ao descumprimento da ordem instituída, e o primeiro filho assassinando o irmão, cheio de inveja, foram prenúncios de uma vida associativa carente de regramentos rígidos e bem definidos. Se a verdade é outra, como nos tenta ensinar teoria da evolução, ainda maior seria o esforço do homem na criação de regras implantadoras de uma ordem social, dominadora da anterior ferocidade do animal.Daí a necessidade do Direito, conceituado como o conjunto de princípios, valores e regras imperativas com o escopo de garantir a convivência social, limitando-se a ação de cada um de seus membros. O Direito, portanto, é concebido como a realização de convivência ordenada.

Todavia, sabe-se que o Direito depende de interpretação para ser vivificado, segundo processos lógicos adequados. Incumbe, pois, ao lidador jurídico extrair o sentido pleno dos textos legais, sob a ótica da sistemática jurídica, dando-lhe significados.

Pois bem.

Na atualidade, o Supremo Tribunal Federal figura como grande expoente na imprensa falada e escrita em nosso país, por força de várias questões polêmicas submetidas a seu crivo, exempli gratia, recebimento da denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República (MPF) sobre o “caso mensalão”, liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias, interceptações telefônicas, regulamentação do emprego de algemas, vedação ao nepotismo, demarcação da reserva indígena Raposa do Sol, em Roraima, aborto de feto anencéfalo etc.


Não é por outra razão que, nos dias que correm, tanto se fala ou se escreve sobre hermenêutica na seara jurídica (e até não-jurídica), tendo como principal vertente os princípios da proporcionalidade (razoabilidade) e da dignidade da pessoa humana(2).

Mas em que consiste a cantada e decantada hermenêutica jurídica?

O vocábulo hermenêutica deriva do teônimo grego Hermes, que era uma divindade detentora de inúmeros segredos, considerada capaz de revelá-los.

Diz a mitologia grega que Hermes era inventor de práticas mágicas, que conduzia as almas na luz e nas trevas, que sabia tudo, que esclarecia tudo.

Numa visão teológica, hermenêutica significa a arte de interpretar o verdadeiro sentido dos textos sagrados.

Já no âmbito jurídico, pragmaticamente falando, hermenêutica exprime a idéia de interpretação e compreensão da norma. É o descortínio do sentido e do alcance da norma, procurando a significação dos conceitos jurídicos. É preciso fazer escavações na lei para encontrar o Direito, disse Victor Hugo(3).

São vários os métodos de interpretação do Direito, desde os clássicos – gramatical, lógica, histórica e teleológica – até os contemporâneos – .jurídico, científico-espiritual, tópico-problemático, hermenêutico-concretizador e normativo-estruturante.

A verdade é que o processo de interpretação do Direito é infinito, funcionando o exegeta apenas e tão-somente como um mediador. É o que Sheakespeare, na sua tragédia Hamlet, disse pela boca de Horácio: há mais coisas entre o céu e a Terra do que possa supor nossa vã filosofia.(4).

Não menos verdade é o fato de o Direito ser uma Ciência eminentemente dialética, que, salvo raras exceções, não admite verdade absoluta. É dizer, a polissemia é regra nas normas jurídicas.

Leguleio jurídico à parte, uma coisa é certa: pouca importância tem o método empregado, quando razoável. Fato é que tudo é questão de escolha, já que a liberdade do Judiciário é quase que completa, só estando limitada pela obrigatória fundamentação (art. 93, IX, da CF).

Em outras palavras, o mesmo texto permite inúmeras exegeses: não há nenhuma Exegese correta(5).


Trocando tudo isso em miúdos, sem circunlóquios nem eufemismos, pode-se afirmar que o ponto crítico da hermenêutica é o ponto de vista do exegeta.

Por isso que o ganhador do Prêmio Nobel da Paz (1964), pastor e ativista Martin Luther King(6), ao visitar um país estrangeiro e ser informado da excelência do Direito ali legislado, respondeu: não quero saber de suas leis; quero saber dos seus intérpretes.

Daí que, convenhamos, em um país como o nosso, carcomido pela corrupção, criminalidade e impunidade, mostram-se inconcebíveis exegeses jurídicas que ao invés de extirparem/amenizarem tais problemas só fazem fomentá-los.

A propósito, faz certo notar que a hermenêutica penal e processual penal, ultimamente, professada por alguns setores do Judiciário, dá azo à conclusão de que a violência, neste país, está naturalizada, banalizada e até mesmo autorizada.

Nesse cenário, apresenta-se como obrigação urgente uma mudança de paradigma. Os membros do Poder Judiciário, intérpretes necessários e permanentes do Direito e servos da população que são,
não podem desprezar a hermenêutica sociológica. Por essa rota, o intérprete coloca-se diante da realidade social, nunca perdendo de vista os reflexos de sua decisão no seio da sociedade – fazendo com que o Direito cumpra sua função ordenadora da convivência social. Vale dizer, no fogo cruzado doutrinário e jurisprudencial, deve o magistrado preferir a posição que melhor atenda aos anseios sociais.

Mais incisivamente: dentro das escolhas do exegeta frente à Ciência polissêmica que é a Jurídica, o único método interpretativo razoável é o que decorre da lógica humana, do justo, que tenha ressonância congruente no inconsciente social. É a decisão que convence o Homem da Rua - o homem simples, ingênuo e destituído de conhecimentos jurídicos, mas capaz de distinguir entre o bem e o mal, o sensato do insensato, o justo do injusto, segundo a imagem criada
por Piero Calamandrei (l’uomo della strada) (7).

Em desfecho, a palavra de ordem é: deve-se interpretar o Direito com um olho na lei e o outro na realidade(8),
ou restará ao povo brasileiro uma só esperança, qual seja, confiar que algum dia a Justiça brasileira faça injustiça com as próprias mãos.(9).

Referências

(1) BISPO, Luiz. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 1.

(2) Aliás, oportunas as palavras do Ministro Carlos Ayres de Brito: "A pretexto de defender a dignidade da pessoa humana comete-se muita indignidade contra a sociedade humana”.

(3) HUGO, Victor (texto em português: TÁTI, Miécio). Os Miseráveis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

(4) SHAKESPEARE, William, Hamlet, Ato I. Século XVII.

(5) NIETZSCHE, Friedrich: Fragmentos Finais. Brasilia: Editora da UnB, 2002, p. (155)

(6) 1929-1968.

(7) DINAMARCO, Candido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. São Paulo, janeiro/dezembro, 2001, vol.55/56, p. 67.

(8) É a lição de Marcel Planiol: “Desapareceu nas trevas do passado o método lógico, rígido, mobilizador do Direito: tratava todas as questões como se fora problemas de Geometria. O julgador hodierno preocupa-se com o bem e o mal resultantes do seu veredictum. Se é certo que o juiz deve buscar o verdadeiro sentido e alcance do texto; todavia, este alcance e aquele sentido não podem estar em desacordo com o fim colimado pela legislação - o bem social”. (Traité Élementaire de Droit Civil, 7º ed., 1.915/1.918, vol. I, n.º 224).


(9) VIEIRA, Roberto. Painel do Leitor - Jornal “A Folha de S. Paulo”. São Paulo: 18/07/2008.

Um comentário:

Anônimo disse...

E o princípio da presunção de inocência interpretado cada vez mais às últimas conseqüências... Só no Brasil este princípio é aplicado tão amplamente, até mesmo após uma sentença de conhecimento exuriente...
Ninguém merece o Brasil... ainda bem que agora eu o vejo de longe... hi hi hi!
Bjos,
Palpiteira.