Translate

06 abril 2010

ADULTÉRIO VIRTUAL, INFIDELIDADE VIRTUAL

Parte 1/4


Marilene Silveira Guimarães
Advogada em Porto Alegre/RS – Pres. do Inst. Interdisciplinar de Direito de Família – IDEF/RS – Profª. da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS

"O que se gostaria de conservar da família, no
terceiro milênio, são seus aspectos positivos: a solidariedade, a
fraternidade, a ajuda mútua, os laços de afeto e o amor. Belo sonho."

Michele Perrot1

Sumário
1. Denominação. 2. Motivação. 3. Comunicação virtual, contexto sociocultural. 4. Contexto socioafetivo. 5. Infidelidade virtual e adultério, conseqüências jurídicas (ruptura - culpa - dano moral). 6. Prova lícita, privacidade, sigilo. 7. Conclusão.


1. DENOMINAÇÃO

O indivíduo casado ou unido estavelmente e que, ao mesmo tempo, mantenha um relacionamento erótico-afetivo virtual2 está praticando infidelidade virtual. Esta somente se transformará em adultério se houver a materialização do relacionamento. Portanto, tecnicamente, a expressão correta é infidelidade virtual.

2. MOTIVAÇÃO

Este estudo decorre da prática profissional determinada pelo atendimento de diversos casos de relacionamentos iniciados pela Internet. A partir desta mostragem foram entrevistadas outras pessoas cujas experiências enriqueceram este trabalho.

O caso mais representativo é o de uma professora de 45 anos de idade, extremamente discreta e de educação refinada, casada há 25 anos com um profissional liberal de 5O anos, com dois filhos adolescentes. Comunicava-se pela Internet com pessoas de diversos países e apaixonou-se por um homem também casado e residente no exterior. Meses depois de iniciado o relacionamento virtual, encontraram-se e concretizou-se o adultério. Apesar do uso de senha, o marido ingressou no correio eletrônico e descobriu o relacionamento.
O casal separou-se e hoje ela vive no exterior com uma terceira pessoa, que também conheceu através da Internet.

3. COMUNICAÇÃO VIRTUAL, CONTEXTO SOCIOCULTURAL

Antes de analisar os relacionamentos virtuais sob o enfoque jurídico, cabe proceder a uma análise do contexto sociocultural em que tais relacionamentos acontecem.

No descortinar do novo século, vive-se um momento de profunda mutação antropológica e sociológica decorrente dos constantes avanços da tecnologia, em especial da revolução operada na comunicação. Assim como no passado aconteceram descobertas marítimas, ao navegar pelo espaço cibernético, o homem está descortinando um mundo novo, sem fronteiras. A mundialização do planeta aproximou povos distantes, miscigenou raças e culturas, os interesses econômicos superaram nações e sistemas jurídicos, provocando uma verdadeira revolução de paradigmas.

Analisando a história da humanidade, observa-se que no início da civilização, na era paleolítica, todos viviam em uma única sociedade. A primeira ruptura deste modelo aconteceu quando a humanidade separou-se e passou a habitar todos os continentes.3

A segunda ruptura aconteceu com a revolução neolítica (na Mesopotâmia, Egito, China e nas civilizações inca e maia), período de grandes mutações técnicas, sociais, culturais e políticas que, em decorrência da fixação do homem no espaço, resultou na criação das cidades e na invenção do Estado, no desenvolvimento da agricultura e na invenção da escrita.

A terceira ruptura da história da humanidade aconteceu no século XV, no final da Idade Média, quando as descobertas marítimas levaram o homem a navegar por mares impensados, aportando em novos mundos.

Neste final de milênio presencia-se outra fase de ruptura com o modelo social vigente, provocada pela comunicação que criou outra vez uma sociedade sem fronteiras. A era tecnológica apequenou o mundo e o homem está outra vez navegando, não mais pelo mar, mas sim pelo espaço cibernético ou espaço virtual, que está disponível para todos. Neste espaço não se estabelecem hierarquias, a estratificação social a partir de agora acontecerá entre os que estão na rede e os que optarem por estar fora dela, num redimensionamento também do uso do poder.

Presencia-se o esgotamento do modelo social vigente, o que provoca também uma ruptura com o modelo jurídico. Não uma ruptura nefasta, catastrófica, e sim a ruptura de um modelo que não serve mais à sociedade que este direito regulamenta. Na mesma proporção em que a tecnologia avança de forma surpreendentemente rápida, em que a comunicação estreita distâncias e o homem vence o tempo e o espaço, o Direito não acompanha este ritmo e nem deve fazê-lo. Apesar da imperiosa necessidade de redefinição de conceitos e adaptação da ciência jurídica aos novos paradigmas, a normatização jurídica deve ser lenta e cautelosa, pois, como leciona Canaris, o Direito "coloca-se numa área -de estabilidade marcada", uma vez que "as mudanças verdadeiras são lentas; a sua detecção depende de uma certa distanciação histórica" 4

Não se pode, em nome do avanço social e tecnológico, negar o que a humanidade já construiu. Deve-se estabelecer uma ponte entre a experiência acumulada e as novas exigências sociais, com fundamento nos princípios norteadores do sistema jurídico posto, redimensionando conceitos. O importante é não perder o referencial ético de que o homem, a sua dignidade, a sua proteção, devem constituir a finalidade primeira e última de qualquer norma.

Neste final de milênio o homem também vive um momento de profundo individualismo, provocado pela ideologia liberal. Ele trabalha mais, a violência urbana o mantém preso em casa, sofre bombardeio diário de informações que não consegue assimilar e, paradoxalmente, apesar de ter mais opções de lazer, falta-lhe tempo para desfrutar a vida.

Neste contexto, uma forma de comunicação ágil, barata e relativamente segura, como é a comunicação virtual, torna-se um convite a uma nova forma de socialização. Basta um computador e uma linha telefônica para estabelecer a comunicação, não importa a nacionalidade, a idade, o sexo, a raça, a condição social do interlocutor. Para os que estão na rede abre-se um mundo relacional completamente inusitado. Segundo Pierre Lévy, os atuais fóruns  eletrônicos constituem "paisagem movediça das competências e das paixões que permitem atingir outras pessoas a partir de um mapa semântico ou subjetivo dos centros de interesse".5

Os dados colocados na Internet ficam disponíveis a qualquer um e passam a ser significantes apenas quando despertam o interesse dos indivíduos, estabelecendo uma interação entre eles. Nas relações comerciais esta interação propicia negócios e nas relações afetivas favorece o envolvimento com a subjetividade do outro, estabelecendo uma nova Forma de atração, na qual a aproximação física é substituída pela descoberta de afinidades e acontece a amizade ou o namoro virtual.

Notas da Autora:

1. PERROT, Michele. Nós e o ninho. In: Reflexões para o futuro, abril, 1993.
2. Virtual, segundo o Dicionário Aurélio, é o "que existe como faculdade, porém sem exercício ou efeito atual". É algo suscetível de se realizar, que tem todas as condições essenciais à realização, que está predeterminado à realização, mas que é apenas potencial.
3. LÉVY, Pierre. A revolução contemporânea em matéria de comunicação, In: Para navegar no século XXI. Porto Alegre, p. 195.
4. CANARIS, Claus Wilhelm. In: Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Porto Alegre, p. IX.
5. LÉVY, Pierre. A revolução contemporânea em matéria de comunicação. In: Para navegar no século XXI. Porto Alegre, p. 207.

Extraído do site Gontijo-familia.adv.br

Nota do blog:
Embora elaborado sob a égide do Código Civil de 1916, o trabalho ainda mantém relevância porquanto os direitos e deveres dos cônguges/companheiros permanecem os mesmos.

Nenhum comentário: