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26 novembro 2008

DEBATE SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA CARTA MAGNA

A matéria abaixo, remetida por RMG e extraída do UOL-Tendências/Debates, mostra um pouco da discussão que se trava em torno da interpretação da Constituição Federal no Brasil e de quem seja seu abalizado intérprete.



Foto de Carl Schmitt
retirada do site sauerlaender-heimatbund.de



Leia e reflita:


A história, sempre ela, o melhor arbitro. Abaixo, um texto para nos localizarmos dentro da discussão da "interpretação aberta". Sua origem fala por sí mesma. A disputa histórica se deu entre dois dos mais notáveis juristas europeus do início do século XX, e a de hoje se dá entre membros do judiciário e traz a contradição própria da discussão motivada pela vaidade e pelo casuísmo. Os adeptos de SCHMITH se esquecem que ele "negava ao Judiciário o título de guardião da constituição". O que se pretende, hoje, é trocar o Presidente do Reich pelo "Juiz", como o único que tem legitimidade para desempenhar semelhante função.



Carl Schmitt - O filósofo entre Fausto De Sanctis e Gilmar Mendes
Por Daniel Roncaglia

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Schmitt negava ao Judiciário o título de guardião da constituição. Segundo sua concepção, somente o Presidente do Reich teria legitimidade para desempenhar semelhante função.
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O juiz Fausto Martin de Sanctis, da 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo, revelou que as divergências com o ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, ultrapassam o campo político e esbarram no filosófico. Em um evento que aconteceu na segunda-feira (10/11), no Rio de Janeiro, Sanctis levantou a platéia ao mostrar sua visão sobre o Direito Constitucional.

Segundo o juiz, "a Constituição não é mais importante que o povo, os sentimentos e as aspirações do Brasil. É um modelo, nada mais que isso, contém um resumo das nossas idéias. Não é possível inverter e transformar o povo em modelo e a Constituição em representado”.

"A Constituição tem o seu valor naquele documento, que não passa de um documento; nós somos os valores, e não pode ser interpretado de outra forma: nós somos a Constituição, como dizia Carl Schmitt", completou De Sanctis, segundo reportagem da Folha de S. Paulo, desta terça-feira (11/11).

Carl Schmitt é um filósofo alemão que viveu de 1888 a 1985. Tem na sua biografia uma obra jurídica notável e uma ficha de adesão ao nazismo a partir de 1933. Ele nunca se retratou de sua filiação ao partido de Adolf Hitler.

Uma de suas principais obras é o livro O Guardião da Constituição, publicado em 1929, que agitou o debate jurídico da Alemanha no começo dos anos 30. Em linhas gerais, ele questiona nessa obra o papel do Judiciário como guardião da Constituição. Para ele, somente o presidente do Reich poderia desempenhar essa função, pois o povo é quem o escolhe.

Para Schmitt, o presidente, alicerçado pelo artigo 48 da Constituição de Weimar, representa a unidade da autoridade política que traz consigo os anseios sociais do povo. Schimitt também entende que a revisão dos atos legislativos por um tribunal independente é uma afronta clara à soberania estatal.

Schmitt diz que a idéia de Constituição não se equipara a um simples conjunto de leis constitucionais. O filósofo afirma que a Constituição é a decisão consciente de uma unidade política concreta que define a forma e o modo de sua existência. O livro de Schmitt foi ampliado em 1931. No mesmo ano, o filósofo austro-americano Hans Kelsen publicou uma reposta com o título Quem deve ser o guardião da Constituição?. Nela, Kelsen destaca a importância de um Tribunal Constitucional para uma democracia moderna. Foi inspirado em Kelsen que a Áustria escreveu a sua Constituição de 1920, que criava uma Corte Constitucional com o poder de fazer o controle concentrado de constitucionalidade.

"Como poderia o monarca, detentor de grande parcela ou mesmo de todo o poder do Estado, ser instância neutra em relação ao exercício de tal poder, e a única com vocação para o controle de sua constitucionalidade?", questiona Kelsen.

A disputa intelectual dos dois chegou ao Tribunal do Estado no caso Prússia contra Reich. No dia 25 de outubro de 1932, a tese de Schmitt foi a vencedora e o tribunal negou-se o poder para definir os limites de atuação do presidente e do chanceler. Em janeiro de 1933, Adolf Hitler chegou ao cargo de chanceler sem cometer nenhuma ilegalidade ou inconstitucionalidade.

Estudioso do processo de controle concentrado de constitucionalidade e com doutorado na Alemanha, o ministro Gilmar Mendes já mostrou publicamente qual é a sua opinião nesse embate entre Kelson e Schmitt.

Em 2006, ele assinou a apresentação da edição em português da obra mestra de Schmitt O Guardião da Constituição, que foi publicada pela editora Del Rey. Para o ministro, a história deu razão a Kelsen. Depois da Segunda Guerra Mundial, a maioria dos países democráticos adotou um sistema como o que defende Kelsen.

"A controvérsia sobre a jurisdição constitucional, ápice de uma disputa entre dois dos mais notáveis juristas europeus do início do século XX, mostra-se relevante ainda hoje. O debate sobre o papel a ser desempenhado pelas Cortes Constitucionais, atores importantes e, às vezes, decisivos da vida institucional de inúmeros países na atualidade, obriga os estudiosos a contemplarem as considerações de Schmitt (e, inequivocamente, as reflexões de Kelsen) a propósito do tema”, afirma Gilmar Mendes, no texto.

Leia a apresentação do livro O Guardião da Constituição, por Gilmar Mendes:

APRESENTAÇÃO

Tenho a honra de apresentar mais uma importante obra da Coleção Del Rey Internacional, desta feita "O Guardião da Constituição" (Der Hüter der Verfassung) , da autoria do eminente pensador alemão, o Prof. Carl Schmitt.
Referido trabalho foi publicado, inicialmente, em 1929, sob o título "Das Reichgerichts als Hüter de Verfassung" . Em 1931, Carl Schmitt publicou versão ampliada daquelas reflexões, denominada “Der Hüter der Verfassung”.
Na referida obra, Schmitt questionava o papel do Judiciário como guardião da Constituição. Schmitt negava ao Judiciário o título de guardião da constituição. Segundo sua concepção, somente o Presidente do Reich teria legitimidade para desempenhar semelhante função.
Hans Kelsen, ainda em 1931, respondeu diretamente ao artigo de Schmitt, ao publicar um ensaio intitulado Quem deve ser o guardião da Constituição? (Wer soll der Hüter der Verfassung sein?)1. Na ocasião, reafirmou a importância de um Tribunal Constitucional para uma democracia moderna, em franca defesa de uma de suas criações, a Corte Constitucional austríaca, instituída em 1920, já destacada na célebre conferência sobre a jurisdição constitucional Wesen und Entwicklung der Staatsgerichtsbarkeit (Essência e Desenvolvimento da Jurisdição Constitucional) proferida em Viena, em 1928, perante a Associação dos Professores Alemães de Direito Público (Vereinigung der Deutschen Staats¬rechtslehrer). Assim se manifestou quanto à proposta de Carl Schmitt de emprestar ao Presidente do Reich a legitimidade para "guardar" a constituição, em detrimento da Corte Constitucional: "[...] para tornar possível a noção de que justamente o governo – e apenas ele – seria o natural guardião da Constituição, é preciso encobrir o caráter de sua função. Para tanto serve a conhecida doutrina: o monarca é – exclusivamente ou não – uma terceira instância, objetiva, situada acima do antagonismo (instaurado conscientemente pela Constituição) dos dois pólos de poder, e detentor de um poder neutro. Apenas sob esse pressuposto parece justificar-se a tese de que caberia a ele, e apenas a ele, cuidar que o exercício do poder não ultrapasse os limites estabelecidos na Constituição. Trata-se de uma ficção de notável audácia, se pensarmos que no arsenal do constitucionalismo desfila também outra doutrina segunda a qual o monarca seria de fato o único, porque supremo, órgão do exercício do poder estatal, sendo também, particularmente, detentor do poder legislativo: do monarca, não do parlamento, proviria a ordem para a lei, a representação popular apenas participaria da definição do conteúdo da lei. Como poderia o monarca, detentor de grande parcela ou mesmo de todo o poder do Estado, ser instância neutra em relação ao exercício de tal poder, e a única com vocação para o controle de sua constitucionalidade? 2
E prosseguiu em sua crítica.
"(...) quando na Constituição de Weimar se prevê, ao lado de outras garantias, o presidente do Reich como garante da Constituição, manifesta-se a verdade elementar de que essa garantia só pode representar uma parte das instituições de proteção da Constituição e que seria uma sumária superficialidade esquecer, em função do presidente do Reich atuando como garante da Constituição, os estreitíssimos limites desse tipo de garantia e as muitas outras espécies e métodos de garantia constitucional!3
Já a crítica de Schmitt ao positivismo alemão tradicional estava claramente ligada a uma rejeição muito mais ampla do autor em relação a toda uma estrutura estatal que ele fatalmente caracterizava como burguesa. Para um pensador que tinha convicção de que todo o conceito de direito é fundamentalmente político, a pretensa neutralidade do positivismo de Laband e da Teoria Pura de Kelsen não passava de um reflexo disfarçado dos ideais liberais na filosofia política e jurídica, visando garantir a segurança e liberdades burguesas perante o Estado. É principalmente a partir de sua visão antiliberal que Schmitt construirá seu "Der Hüter der Verfassung" (O Guardião da Constituição).
Segundo Schmitt, a criação ou o reconhecimento de um Tribunal Constitucional, por outro lado, transfere poderes de legislação para o Judiciário, politizando-o e desajustando o equilíbrio do sistema constitucional do Estado de Direito.
A recusa de Schmitt em aceitar um controle concentrado de constitucionalidade encontra sua origem na própria concepção que o autor alemão fazia de Constituição. Para Schmitt, a idéia de Constituição não se equipara a um simples conjunto de leis constitucionais. A Constituição seria, na verdade, a decisão consciente de uma unidade política concreta que define a forma e o modo de sua existência.
De acordo com o pensador alemão, o princípio político que guiava a Constituição de Weimar era o princípio da democracia. A democracia de Schmitt, contudo, não se assemelha em nada à democracia kelseniana, que via na maioria um instrumento útil para a realização da idéia básica da democracia: a liberdade. Para Schmitt, só há uma idéia verdadeiramente democrática: a igualdade, que é fundamento de todas as outras igualdades.
No que concerne à jurisdição constitucional, tanto Schmitt como Kelsen atingiam conclusões bem distantes de seus pontos de partida. Enquanto Kelsen, que se reconhecia como herdeiro da tradição labandiana, projetara e desenvolvera um sistema concentrado de controle de constitucionalidade que contrariava frontalmente os princípios do positivismo legal do século XIX, Schmitt, que sempre construía suas obras em contraposição a uma imagem da teoria positivista liberal, acabara por chegar justamente ao posicionamento defendido por Laband cinqüenta anos antes: a revisão dos atos legislativos por um tribunal independente é uma afronta clara à soberania estatal.
Miguel Herrera bem ilustrou essa dicotomia:
"Refiriéndose a los trabajos de Kelsen de esse período, Schmitt impugna la tesis normativista de la identidad entre orden jurídico y Estado, señalando que el método kelseniano desarrolla la vieja negación liberal del Estado por medio del derecho. Según el jurista alemán, Kelsen funda su teoría del Estado en una crítica del concepto de "sustancia", que es propio de las ciencias naturales, constituyendo una metafísica monista que expulsa la excepción y lo arbitrario. De acuerdo con Schmitt, por el contrario, la situación excepcional pertenece al derecho, siendo definido el Estado por el monopolio de la decisión. En el caso excepcional "la existencia del Estado conserva la superioridad sobre la validez de la norma jurídica", es allí donde la decisión se libera de toda obligación formativa y la norma "se reduce a nada" .4 Vencedor do embate judicial realizado no caso "Prússia contra Reich", Carl Schmitt também ganhara, aparentemente, a disputa intelectual sobre quem realmente deveria ser o guardiã da constitucional.
Em decisão de 25 de outubro, o Tribunal do Estado negara-se a definir os limites da atuação do Presidente e de seu Chanceler. Ambos ficaram livres, assim, para agirem contra as poucas instituições democráticas de Weimar que ainda desempenhavam algum papel relevante no cenário político alemão de 1992.
A história mostraria, contudo, que a vitória de Schmitt não era definitiva. Três meses após a decisão do caso "Prússia contra Reich", Hitler chegava ao poder sem romper com nenhum aspecto de legalidade existente à época.
Concretizava-se, em certo sentido, a previsão de Schmitt: o sistema político de Weimar permitiria que seu maior inimigo assumisse o poder e destruísse, de dentro do sistema, todo o regime constitucional de 1919.
A história parecia dar alguma razão a Kelsen!
Na famosa conferência proferida perante a Associação dos Professores Alemães de Direito Público Kelsen deixou claro que a jurisdição constitucional haveria de ter um papel central em um sistema democrático moderno:
"Contra as muitas censuras que se fazem ao sistema democrático ? muitas delas corretas e adequadas ?, não há melhor defesa senão a da instituição de garantias que assegurem a plena legitimidade do exercício das funções do Estado. Na medida em que amplia o processo de democratização, deve-se desenvolver também o sistema de controle. É dessa perspectiva que se deve avaliar aqui a jurisdição constitucional. Se a jurisdição constitucional assegura um processo escorreito de elaboração legislativa, inclusive no que se refere ao conteúdo da lei, então ela desempenha uma importante função na proteção da minoria contra os avanços da maioria, cuja predominância somente há de ser aceita e tolerada se exercida dentro do quadro de legalidade.
A exigência de um quorum qualificado para a mudança da Constituição traduz a idéia de que determinadas questões fundamentais devem ser decididas com a participação da minoria. A maioria simples não tem o direito de impor a sua vontade? pelo menos em algumas questões ? à minoria. Nesse ponto, apenas mediante a aprovação de uma lei inconstitucional poderia a maioria afetar os interesses da minoria constitucionalmente protegidos. Por isso, a minoria, qualquer que seja a sua natureza ? de classe, de nacionalidade ou de religião? tem um interesse eminente na constitucionalidade da lei.
Isto se aplica, sobretudo, em caso de mudança das relações entre maioria e minoria, se uma eventual maioria passa a ser minoria, mas ainda suficientemente forte para obstar uma decisão qualificada relativa à reforma constitucional. Se se considera que a essência da democracia reside não no império absoluto da minoria, mas exatamente no permanente compromisso entre maioria e minoria dos grupos populares representados no Parlamento, então representa a jurisdição constitucional um instrumento adequado para a concretização dessa idéia. A simples possibilidade de impugnação perante a Corte Constitucional parece configurar instrumento adequado para preservar os interesses da minoria contra lesões, evitando a configuração de uma ditadura da maioria, que, tanto quanto a ditadura da minoria, se revela perigosa para a paz social”.5
Tal como anota Pedro de Veja García, a tese de Kelsen se impôs à maioria dos estados democráticos a partir da Segunda Guerra Mundial:
"Bien es verdad que, a partir de la Segunda Guerra Mundial, las tesis de Kelsen se imponen en la praxis constitucional de la mayoría de los estados democráticos con resultados positivos y encomiables. Ahí está el ejemplo de la Corte Constitucional italiana, del Tribunal Constitucional alemán o del todavía reciente Tribunal Constitucional español. Sin embargo, no es menos cierto que las cuestiones sobre la legitimidad, funcionalidad y coherencia de la Justicia Constitucional distan mucho de haber sido definitivamente dilucidadas.” 6
A controvérsia sobre a jurisdição constitucional, ápice de uma disputa entre dois dos mais notáveis juristas europeus do início do século XX, mostra-se relevante ainda hoje. O debate sobre o papel a ser desempenhado pelas Cortes Constitucionais, atores importantes e, às vezes, decisivos da vida institucional de inúmeros países na atualidade, obriga os estudiosos a contemplarem as considerações de Schmitt (e, inequivocamente, as reflexões de Kelsen) a propósito do tema.
Como se sabe, tais controvérsias manifestam-se sob formas diversas, referindo-se aos limites da jurisdição constitucional, à jurisdição constitucional e democracia, à jurisdição constitucional e política, à jurisdição constitucional e divisão de poderes, para ficarmos em alguns exemplos que têm ocupado a moderna teoria constitucional. A atualidade dessa discussão vê-se, v.g., na multicitada obra de Habermas, Faticidade e Validade (Faktizität und Geltung), que dedica um capítulo ao estudo sobre a legitimidade da jurisprudência constitucional, tendo por leitmotiv as reflexões de Schmitt em o “Defensor da Constituição”.
Parecem evidentes, assim, a importância e atualidade da obra que a Editora Del Rey coloca ao alcance dos estudiosos de Direito Público no Brasil.
Professor Gilmar Mendes
Vice-Presidente do Supremo Tribunal Federal
Setembro de 2006


Notas

Em português, o texto dessa apresentação ganhou o nome de "A Jurisdição Constitucional". Publicada pela Editora Martins Fontes, em fevereiro de 2003, a edição combina oito títulos da autoria de Hans Kelsen, dispostos em ordem cronológica.
2 Kelsen, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.241-242.
3 Kelsen, Hans. Jurisdição Constitucional, cit. p.287-288.
4 Herrera, Miguel. La polémica Schmitt-Kelsen sobre el guardián de la Constitución, trabalho publicado na Revista de Estúdios Políticos, no. 86, 1994, p.195-227.
5 Kelsen, Hans. Wesen und Entwicklung der Staatsgerichtsbarkeit, VVDStRL 5, 1928, p. 80-81; Cf. também tradução italiana de Geraci, Carmelo. La Garanzia giurisdizionale della Constituzione, in: La giustizia costituzionale, Milão, 1980, p. 144 (201-203).
6 Veja García, Pablo. Prólogo à obra de Schmitt. In: Schmitt, Carl. La defensa de la Constitución.2.ed. Madrid:Tecnos, 1998, p. 22-23.

TENDÊNCIAS/DEBATES

Nós, os juízes: deuses ou cidadãos?
KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE



A concepção adotada revela a visão absolutamente distorcida da democracia e do verdadeiro papel do juiz em uma ordem democrática.

QUANDO INGRESSEI na magistratura, em janeiro de 1989, um magistrado que, na época, não aceitava bem a idéia de que mulheres pudessem fazer parte do Judiciário, disse em tom de chiste que não concebia mulher judicando porque, afinal, Deus era homem e, assim, os juízes só poderiam ser do sexo masculino. Acrescentou, com o gesto de uma lactante: imaginem uma mamada entre um despacho e outro! Não sei o que mais me chocou, se a discriminação contra as mulheres, que eram em número reduzidíssimo, ou se o fato de, ainda que em tom de brincadeira, algum juiz pudesse se considerar um ser divino -portanto, com poderes absolutos e ilimitados. Essas lembranças vieram à tona ao ler na edição da Folha de 11/11 uma frase que teria sido dita por um juiz: "A Constituição não é mais importante que o povo, os sentimentos e as aspirações do Brasil. É um modelo, nada mais que isso ( ...) não passa de um documento; nós somos os valores, e não pode ser interpretado de outra forma: nós somos a Constituição, como dizia Carl Schmitt". Teria ainda acrescentado que determinados delitos "obrigam à adoção de atitudes não-ortodoxas". A idéia de que cada juiz é a própria Constituição ou o verdadeiro soberano encarna o totalitarismo do qual a humanidade foi vítima recente. Valiosa a lição de Roberto Romano, que, referindo-se a Carl Schmitt, diz: "Escutemos nosso realista: "o führer defende o Direito contra os piores abusos quando, no instante do perigo e em virtude das atribuições de supremo juiz, as quais, enquanto führer, lhe competem, cria diretamente o Direito". O magistrado sublime decide: certos indivíduos, grupos, setores sociais, étnicos e religiosos são amigos ou inimigos. Dadas as premissas, conhecemos as conseqüências. É relativamente fácil recuar, horrorizados, diante do decisionismo jurídico. Suas mãos mostram excrementos de sangue" (prefácio de "Razão Jurídica e Dignidade Humana", de Marcio Sotelo Felippe). A concepção adotada revela a visão absolutamente distorcida da democracia e do verdadeiro papel do juiz em uma ordem democrática. Os juízes e o Judiciário estão subordinados ao povo, nos termos do ordenamento jurídico democraticamente construído, e não podem se sobrepor a isso supondo-se eles mesmos o espírito do povo. É a "polis" que determinou, na Constituição e nos tratados internacionais, qual é a sociedade que almeja, sob quais princípios, fundamentos e patamares éticos. O juiz não substitui essas diretrizes pelas suas. No que tange à matéria penal e processual penal, inaceitável supor conduta "não-ortodoxa", pois são temas em que é intensa a intervenção do Estado no plano da liberdade. Os limites são rígidos e não podem ser ultrapassados, muito menos por um juiz que tem como função evitar que órgãos públicos ou privados, sob qualquer pretexto, os violem. Mas o bom combate contra tais concepções não pode servir de pretexto para uma investida contra a liberdade de expressão. Vislumbra-se esse risco em debates recentes no próprio Judiciário. A liberdade de expressão é cláusula pétrea da Constituição. A Convenção Americana de Direitos Humanos estabelece que toda pessoa terá o direito à liberdade de expressão, que inclui a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteira. Reafirmando esse princípio, a corte interamericana sustentou (opinião consultiva número 5/85) que: "A liberdade de expressão é pedra angular da existência mesma de uma sociedade democrática. É indispensável para a formação da opinião pública. É também condição "sine qua non" para que os partidos políticos, os sindicatos, as sociedades científicas e culturais e quem em geral deseje influir sobre a coletividade possam se desenvolver plenamente. É, enfim, condição para que a comunidade, na hora de fazer escolhas, esteja suficientemente informada. Assim, é possível afirmar que uma sociedade que não está bem informada não é plenamente livre". Os juízes, evidentemente, gozam dos mesmos atributos dos demais seres humanos. No 7º Congresso das Nações Unidas, o tema mereceu especial destaque, estabelecendo a organização dos princípios básicos relativos à independência judicial, dentre eles a normativa de que de juízes, assim como dos demais cidadãos, não podem ter subtraídos os direitos de liberdade de expressão, associação, crença e reunião, preservando a dignidade de suas funções e a imparcialidade e independência da judicatura. Magistrados, de qualquer instância, não são deuses, não criam nem destroem, devem garantir o sistema democrático.

KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE é juíza de direito em São Paulo, co-fundadora e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.


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