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17 maio 2011

O BIOPODER E O DIREITO À PRIVACIDADE: A TECNOLOGIA A SERVIÇO DA SOCIEDADE DE CONTROLE



Riany Alves de Freitas
Técnica do Ministério Público de Minas Gerais.Pós-Graduada em Gestão Estratégica da Informação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Graduada em Tecnologia em Processamento de dados pela Fundação Mineira de Educação e Cultura. Acadêmica em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais


Resumo
O problema  da  utilização  de  meios  tecnológicos  para  monitorar,  registrar  e reconhecer a população como instrumento de controle da sociedade: o biopoder e a utilização do Direito em defesa da sociedade contra a irrestrita coleta e utilização de dados pessoais.
Palavras-chaves:  Monitorar;  Registrar;  Reconhecer;  Direito  à  Privacidade; Biopoder.
Abstract
The problem of the technological ways to monitor, to register and recognize the population as instrument of control on the society: biopower and the use of the Law as society´s defense against the unrestricted collection and use of personal datas.
Keywords: to monitor; to register; to recognize, right to privacy; biopower.
 1. Introdução

Existe uma constante mudança nas formas de imposição de poder e suas relações nas sociedades. Em cada período da história, observam-se adaptações no sistema soberano, em que as características predominantes de um se convertem em outras características. Neste trabalho, é de  fundamental  importância  demonstrar as definições de Foucault sobre o poder excludente, disciplinar e o biopoder.

 Para Foucault, o poder excludente, predominante na Antiguidade e na Idade Média, compreende a “marginalização”, em que os indivíduos considerados anormais são rejeitados, excluídos do convívio social, em espaço separado fora dos limites da comunidade. A reação que se demonstra é negativa, pois as sanções são repressivas e punitivas. “É preciso punir de outro modo: eliminar essa confrontação física entre soberano e condenado; esse conflito frontal entre a vingança do príncipe e a cólera contida do povo, por intermédio do supliciado e do carrasco”. (FOUCAULT, 1987, p. 63).

O poder disciplinar, emergente no final do século XVII, é aquele que impõe  determinadas  formas  de  conduta  desejáveis e os indivíduos são docilizados. A reação é positiva, pois não mais são reprimidos os indivíduos, apenas são tornados submissos e destinados a se comportarem de determinada maneira pré-estabelecida.  Os indivíduos não são excluídos, mas treinados e capacitados ao exercício do trabalho. O objetivo é diminuir os custos do poder, tornar os indivíduos dóceis, úteis à produtividade, aumentar a produção de aptidões para trabalhar em escolas, hospitais, etc, e ao mesmo tempo, intensificar os efeitos do poder.

O conceito de disciplina de FOUCAULT, definido pelas técnicas de controle e sujeição do corpo com o objetivo de tornar o indivíduo dócil e útil, capaz de fazer o que queremos e de operar como queremos, representa uma teoria materialista da ideologia nas sociedades capitalistas, implementada com o objetivo de separar o poder do sujeito sobre a capacidade produtiva do corpo, necessário para a subordinação do trabalho assalariado ao capital. (SANTOS, 2005, p. 8).

Este trabalho tem por foco o controle populacional, emergente na segunda metade do século XVIII, no qual o Estado utiliza tecnologias e estatísticas para exercer o seu poder sobre a sociedade: o biopoder, e em conseqüência disso, acaba por ferir o direito de privacidade, igualdade e liberdade da população. Não procuramos restringir o trabalho somente à população brasileira, uma vez que o biopoder pode ser exercido em qualquer população que utiliza os meios tecnológicos para exercer o controle sobre os controlados.

2. Monitorar, registrar e reconhecer

A tríade de direitos indispensáveis ao direito à privacidade consiste em não ser monitorado, registrado ou reconhecido.

Vianna (2007) define que monitorar significa utilizar instrumentos eletrônicos para ampliar os sentidos humanos e focalizá-los sobre determinados ambientes, comunicações ou pessoas, com fins de controle e/ou registro de condutas. Esta técnica tem por antecedente o panoptismo.

Os primeiros estudos sociológicos e jurídicos sobre a monitoração eletrônica identificam seus antecedentes no panoptismo. O panóptico foi concebido por Jeremy Bentham, no século XVIII, como um instrumento arquitetônico de controle disciplinar que poderia ser aplicado tanto a prisões quanto a manufaturas, hospitais, hospícios, escolas ou qualquer outro estabelecimento no qual pessoas de qualquer tipo necessitem ser mantidas sob inspeção. (VIANNA, 2007, p. 71).

Para Vianna (2007), registrar, por sua vez, significa utilizar técnicas de ampliação da memória humana por meio da coleta e armazenamento de informações em banco de dados para eternizar o momento monitorado, permitindo que os sentidos humanos possam ser acessados no futuro. A técnica do registro já era utilizada desde a Antiguidade. “Os registros já eram utilizados como instrumento de controle social na Antiguidade. Desde o tempo dos antigos assírios, se não antes, os governos estiveram interessados em coletar e armazenar informações sobre os povos que controlavam”. (VIANNA, 2007, p. 86).

Por fim, reconhecer significa utilizar técnicas de comparação entre registros de monitoração atuais e registros passados com o objetivo de detectar e gerar um mapa seletivo que possibilita a filtragem estatística de populações inteiras. “O retrato pintado foi, por muito tempo, o registro mais eficaz para um reconhecimento futuro, mas seu alto custo limitava sua utilização em larga escala”. (VIANNA, 2007, p. 117).

É a partir desta tríade que se tem todas as ferramentas necessárias para filtrar e detectar os indivíduos que supostamente representam algum risco e possam ser indesejáveis na sociedade, por isso, é preciso utilizar com ponderação o avançado recurso informacional disponível hoje.

Para Vianna (2007), os mecanismos de se garantir a transparência pública e a opacidade privada são a utilização da internet para disponibilização de dados de interesse público a toda população e a criptografia(*), para que as informações sigilosas possam ser acessadas somente a quem de direito.

                                                                                    
(*) LUCCA, Newton De; Simão Filho, Adalberto (Coords.) e outros definem criptografia como a técnica utilizada para garantir o sigilo das comunicações em ambientes inseguros ou em situações conflituosas. Atualmente, sua aplicação se expandiu para além do mero sigilo, tornando-se um elemento essencial na formação de uma infra-estrutura para o comércio eletrônico e a troca de informações. [...]. O mecanismo funciona pela aplicação de um padrão secreto de substituição dos caracteres, de maneira que a mensagem se torne ininteligível para quem não conheça o padrão criptográfico utilizado.

 3. O Direito à Privacidade

O direito à privacidade, até o final do século XIX, estava vinculado ao direito de propriedade, como  garantia  da inviolabilidade de domicílio. Depois disso, Warren e Brandeis desvinculam o direito à privacidade do direito à propriedade, e enfatizaram em um artigo publicado na revista da Faculdade de Direito de Harward, em 1890, a tutela do direito à não publicação de registros pessoais.

Hoje, o direito de não ser monitorado, registrado e reconhecido é fundamento  do  direito  à privacidade, bem como do Estado Democrático  de Direito,  como  garantia  ao  direito à  liberdade  de  associação,  de  manifestação  de pensamento,  à liberdade e à igualdade e aos direitos políticos.

O direito à privacidade, concebido como uma tríade de direitos - direito de não ser monitorado, direito de não ser registrado e direito de não ser reconhecido (direito de não ter registros pessoais publicados) - transcende, pois, nas sociedades informacionais, os limites de mero direito de interesse privado para se tornar em um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. (VIANNA, 2007, p. 116).

Preservar a privacidade é uma forma de conter o poder arbitrário do Estado, garantindo às pessoas o direito de exercer a cidadania sem sofrer qualquer tipo de constrangimento. “Ao garantir a privacidade do eleitor, o Direito garante também sua liberdade de manifestação de pensamento e de exercício dos direitos políticos, evitando qualquer forma de constrangimento nas votações.” (VIANNA, 2007, p. 115).

O regime nazista demonstrou claramente que o registro das características da população pode ser utilizado como filtragem dos indivíduos indesejáveis. Ao registrar os judeus, os homossexuais, entre outros, instituíram-se os precedentes necessários ao totalitarismo seletivo e ao extermínio dos considerados indesejados ao Estado Alemão.

É simples notar que o desenvolvimento  tecnológico,  a informatização, principalmente a Internet e a popularização dos meios  de  comunicação  em massa  facilitam  e muito  a  quebra deste direito, porque tornam acessíveis em apenas alguns clicks as informações de interesse privado, tornando-as públicas sem devido consentimento. “Com efeito, o desenvolvimento da imprensa, e particularmente dos meios audiovisuais de comunicação de massa, por um lado, da informática, por outro, veio pôr em grave risco o direito de cada um não ver exposta a sua vida privada, e, mais, a sua vida íntima à indiscrição alheia. Inclusive a do Estado.” (FERREIRA FILHO, 2003, p. 293).

O direito à privacidade, hoje, por não estar apenas subordinado ao direito de propriedade, é de abrangência muito maior e necessita ampla defesa jurídica a fim de conter os abusos e desrespeitos à vida alheia, principalmente no que tange à utilização de meios informatizados de disseminação em massa.

4. O Biopoder

O biopoder se baseia, de acordo com Vianna (2007), no “monitorar, registrar e reconhecer”. Trata-se da coleta e armazenamento das informações e do seu tratamento estatístico que irá definir as normas em tempo real. “A vigilância nas sociedades biopolíticas tem como função fornecer dados para a criação da norma que irá definir quem é “normal” e quem é “anormal”.” (VIANNA, 2007, p. 147). A partir destas três ações é perfeitamente possível estabelecer regras de exclusão, caso seja conveniente para o Estado.

Na soberania absolutista, “fazer morrer” e “deixar viver” eram práticas comuns. No biopoder, ao contrário, o objetivo é “fazer viver”, mesmo que para isso se “deixe morrer” aqueles que supostamente possam ser uma ameaça aos teoricamente “normais”. Os doentes, os negros,  os pobres,  as minorias são exemplos  de  indivíduos  tratados,  na  sociedade  do  biopoder, como seres anormais, e diante da pouca aplicação ou ausência do direito, são “deixados morrer” sob o pretexto de garantir a vida dos “cidadãos de bem”. Na sociedade neoliberal, o Estado “faz viver” os mais ricos, e “deixa morrer” os mais pobres.

Aquém, portanto do grande poder absoluto, dramático, sombrio que era o poder da soberania, e que consistia em poder fazer morrer, eis que aparece  agora,  com  essa  tecnologia do biopoder, com essa tecnologia do poder sobre a “população” enquanto tal, sobre o homem enquanto ser vivo, um poder contínuo, científico, que é o poder de “fazer viver”. A soberania fazia morrer e deixava viver. E eis que agora aparece um poder que eu chamaria de regulamentação e que consiste ao contrário, em fazer viver e em deixar morrer. (FOUCAULT, 1999, p. 294).

No biopoder, não mais é necessário docilizar os indivíduos para se obter a máxima produtividade, pois há excesso de mão-de-obra. “O desafio da economia pós-industrial não é mais maximizar a produção, mas manter afastadas as massas de miseráveis que, por não participarem da produção, não participam tampouco do consumo.” (VIANNA, 2007, p. 151).

Aqui, a tecnologia é imprescindível. Através dela é possível manter uma base de dados com todas as informações que se julgar pertinentes sobre uma população  e  utilizá-las posteriormente sem a devida autorização ou o devido cuidado com o direito à privacidade. O “racismo de Estado” aparece declarando guerra a todos aqueles considerados inimigos, os terroristas, os traficantes, ao passo que os amigos são protegidos. “Monitorar, registrar, reconhecer” para  determinar  estatisticamente  quem é o amigo e quem é o inimigo ou, em uma palavra, para filtrar dentro da população os mais aptos da espécie que merecem a intervenção do Estado para fazer viver, restando aos demais o “deixar morrer.” (VIANNA, 2007, p. 155).

Assim, o Direito não é aplicado a uma parcela da sociedade, estatisticamente selecionada através da filtragem de informações conseguidas por mecanismos de monitoração, registro e reconhecimento. Estes mecanismos não são usados para vigiar a todos igualmente, mas buscam identificar os inimigos em prol da segurança dos indivíduos mais favorecidos.

O Direito, ao visar à igualdade e à não-exclusão de parcelas da sociedade, acaba por tornar-se um empecilho ao biopoder. “O Direito torna-se um empecilho para o exercício máximo de biopoder e, justamente por isso, necessário se faz que os setores excluídos se apoderem do discurso jurídico para torná-lo em um instrumento de resistência”. (VIANNA, 2007, p. 172). Faz-se necessária, portanto, a utilização do  direito  como  ferramenta de resistência da população contra a expansão da sociedade de biopoder para, assim, evitar-se o racismo estatal.

5. Conclusão

Nossa história sempre foi marcada por acontecimentos trágicos em que o poder soberano deixa de ser poder para ser excesso. Um grande exemplo disso é o Nazismo. Hoje, felizmente, muitas práticas que caracterizam o excesso de poder têm se tornado inconcebíveis em muitos países. Para outros, contudo, essa premissa não  é  verdadeira:  pode-se  perceber  ainda  um constante desrespeito diante da sociedade e do mundo.

Nas diferentes fases  da  história,  o  exercício  de  poder sempre existiu, ainda que sob representações diferentes. Hoje, o que existe é o biopoder, ou seja, aquele em que os dominantes utilizam informações monitoradas e registradas como munição para uma futura e provável seleção de indivíduos. Trata-se de recursos muito poderosos, uma vez que é muito simples reconhecer as características de toda a população, para, então, exercer o controle e o poder sobre as pessoas.

A liberdade, como alvo a ser atingido constantemente em qualquer sociedade democrática, não pode ser ameaçada pela utilização irracional dos meios tecnológicos e informatizados que existem na atualidade. Para tanto, é necessário proteger também o direito à privacidade, sendo que os indivíduos têm o direito de não ser monitorados, registrados ou reconhecidos sem que haja o devido consentimento.

Para que haja transparência pública, apenas informações significativas ao serviço do governo devem ser coletadas, não havendo qualquer registro  de  religião,  preferência  sexual  ou qualquer informação de cunho unicamente particular. A Internet deve ser utilizada como meio informativo e não difamatório ou como ferramenta de exclusão social.

Além disso, a utilização do Direito deve ser ampla, como ferramenta de controle e defesa da sociedade contra a irrestrita coleta e utilização de dados pessoais. Não bastam técnicas de segurança utilizadas na informatização para evitar acessos indevidos, necessário é também que as pessoas, inclusive o Estado, utilizem deste tão primoroso recurso, com o devido cuidado e respeito à privacidade alheia.

Referências bibliográficas
BRAGA, S. VLAC, V. Os usos políticos da tecnologia, o biopoder e a sociedade de controle: considerações preliminares.  Scripta Nova. Revista electrónica de

geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2004, vol. VIII, núm. 170(42). Disponível em: http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-170-42.htm [ISSN: 1138-9788].
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do direito constitucional contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2003. 301p.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France. Tradução: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. - (Coleção Tópicos). 382p.
FOUCALT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987. 288p.
LUCCA, Newton De e Simão Filho, Adalberto (coordenadores e outros). Direito & Internet . aspectos jurídicos relevantes. Bauru: São Paulo: Edipro, 1ª reimp., 2001. 512p.
POGREBINCHI, Thamy. Foucault, para além do poder disciplinar e do biopoder. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ln/n63/a08n63.pdf. Acesso em: 04 Jun. 2007.
SANTOS, Juarez Cirino. 30 anos de vigiar e punir (Foucault). Trabalho apresentado no 11º Seminário Internacional do IBCCRIM (4 a 7 de outubro de 2005),  São Paulo, SP. Disponível em http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/30anos_vigiar_punir.pdf. Acesso em 04 Jun. 2007.
VIANNA, Túlio Lima. Transparência Pública, opacidade privada: o direito como instrumento de limitação de poder na sociedade de controle. 1ª ed. Rio de janeiro: Revan, 2007. 232p.

Extraído de MPMG,Cesf, Ano III, no. 3, outubro/novembro/dezembro 20007

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