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26 maio 2011

A DEFESA JUDICIAL DO CONSUMIDOR BANCÁRIO

Parte 2/2


 Andressa Jarletti Gonçalves de Oliveira 
Advogada. Professora Colaboradora na Escola Superior de Advocacia da OAB/PR. Membro das Comissões de Direito do Consumidor e Direito da Saúde da OAB-PR.

V - A Revisão dos Encargos de Inadimplência
 Com relação aos encargos de inadimplência, inúmeras foram as decisões que determinavam a impossibilidade de aplicação da comissão de permanência. Seja porque sua aplicação à taxa variável é condição potestativa (25), seja porque é inadmissível sua cumulação com outros encargos de mora, afastando sua incidência posto que mais onerosa (26).
A Súmula nº 30/STJ (27) impede a previsão cumulada da comissão de permanência com outros encargos de mora. A solução que se adotava na hipótese de indevida cumulação, era excluir tal encargo, mantendo os demais consectários da mora (correção monetária, juros de mora e multa moratória) (28).
Tais entendimentos sofreram alteração, com a edição da Súmula nº 294/STJ (29).
Além das ressalvas já apontadas quanto à inadequação da taxa média de mercado, a Súmula nº 294/STJ esbarra ainda em outras dificuldades práticas, que revelam a necessidade de revisão de tal entendimento.
Em primeiro lugar, o Banco Central do Brasil, além de não divulgar a taxa média de mercado para a comissão de permanência, sequer tem conhecimento sobre os critérios que as instituições financeiras adotam para calcular a comissão de permanência. É o que se pode verificar do voto proferido pela Ministra Nancy Andrighi no Recurso Especial nº 1.061.530/RS:
"O Banco Central do Brasil, ao responder o convite para se manifestar neste incidente de processo repetitivo, afirmou, expressamente, desconhecer os encargos que compõem a comissão de permanência:
'Não é possível saber com antecedência os encargos que a instituição financeira deverá arcar para reequilibrar sua situação líquida após o atraso no pagamento, ante a existência de inúmeras variáveis (como a disponibilidade de crédito no mercado, os custos operacionais de cada instituição financeira, sua situação patrimonial, etc.), razão pela qual a permanência no inadimplemento gera diferentes encargos em cada contrato, a depender de suas especificidade e do momento em que o atraso no pagamento ocorre.' (grifo no original)
A Federação Brasileira de Bancos - Febraban, também em resposta ao ofício de fls. 224, afirmou que os encargos moratórios (juros de mora e multa contratual) devem ser cumulados com a comissão de permanência, pleiteando a modificação da jurisprudência neste ponto.
Em seguida, foi novamente oficiado à Febraban a respeito da definição deste encargo, seu modo de cálculo e componentes, bem como sobre as taxas cobradas por alguns dos maiores bancos brasileiros. Contudo, diante das respostas, como se verificará em tópico posterior, constatou-se que cada instituição financeira calcula a comissão de permanência de maneira particular e diferenciada das demais, o que dificulta sobremaneira qualquer categorização definitiva.
(...)
A resposta aos ofícios encaminhados à Febraban revelou dados novos que não podem passar despercebidos e que merecem ser considerados na elaboração deste voto.
Os bancos, ao responderem às indagações da Febraban acerca da composição da comissão de permanência, solicitaram, por questões comerciais e concorrenciais, que esta julgadora mantivesse sigilo de suas informações, o que será respeitado.
Isto não impede, porém, que alguns desses dados sejam utilizados, de forma impessoal e genérica, na elaboração deste voto.
As enormes variações constatadas das respostas ao ofício demonstram que cada banco trata da cláusula de comissão de permanência de maneira particular e diferenciada, o que impossibilita o conhecimento pelo consumidor daquilo que está pagando, além de inviabilizar a comparação dos custos da inadimplência face aos outros bancos.
(...)
Acrescente-se, por fim, a palavra da Febraban, entidade representativa dos bancos, que, textualmente, assevera:
'Em outras palavras, é impossível apontar critérios uniformes de cálculo da comissão de permanência para todas as instituições, dado que esse cálculo se baseia em diferentes peculiaridades.' (grifei)
Como se depreende de tais informações, a incidência da cláusula de comissão de permanência, tal como ocorre nos dias atuais, viola uma série de princípios e direitos previstos no CDC.
Numa listagem meramente exemplificativa, são afrontados o princípio da transparência (art. 4º, caput); o princípio da boa-fé e equilíbrio entre os contratantes (art. 4º, III); o direito à informação adequada e clara sobre os produtos e serviços (art. 6º, III); além das regras específicas para a outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, previstas nos incisos do art. 52 do CDC (informação prévia e adequada sobre o preço do produto, o montante dos juros e os acréscimos legais).
(...)
Assim, se está diante de uma situação de total indefinição sobre os encargos que integram a comissão de permanência e de suas taxas, situação que se agrava, inclusive, pelo inusitado pedido de sigilo formulado pelos bancos. Exsurge gritante a ausência de informação transparente e precisa ao consumidor, bem como a potestatividade da sua cobrança."
A partir de tais considerações, a Ministra propôs que deve ser definitivamente excluída a cláusula de comissão de permanência, mesmo quando expressamente pactuada.
O entendimento exposto no brilhante voto da ilustre Ministra Nancy Andrighi não chegou a ser julgado pelo colegiado, porque o recurso especial não foi admitido como repetitivo, quanto à comissão de permanência. Não obstante, a fundamentação apresentada em tal voto revela ser imprescindível o afastamento da comissão de permanência - e consequentemente a revisão da Súmula nº 294/STJ - eis que, a ausência de critérios claros, quanto à apuração de referido encargo, é incompatível com os princípios norteadores dos contratos de consumo.
Além disso, ainda que se admitisse a legalidade da comissão de permanência, também merece revisão o entendimento atual do STJ, no sentido de manter a aplicação da comissão de permanência, mesmo quando o contrato prevê outros encargos de mora (30).
A dicção da Súmula nº 294/STJ determina ser lícita a cláusula contratual que estipule a comissão de permanência pela taxa média de mercado. Ou seja, se o contrato previsse a incidência isolada de tal encargo, na inadimplência, a condição contratual seria válida.
Contudo, quando a cláusula contratual estipula a incidência da comissão de permanência cumulada com os demais encargos de mora, há inexorável ofensa à Súmula nº 30/STJ. Se a condição contratual prevê de forma cumulativa os encargos que não podem ser aplicados concomitantemente, é evidente que a estipulação deve ser revista.
Neste contexto, a adequação da cláusula permite duas interpretações distintas: manter apenas a comissão de permanência, ou preservar os outros encargos de mora. Pela aplicação da interpretação mais favorável ao consumidor, prevista no art. 47, CDC, a solução adequada é a que resultar menor onerosidade ao contrato. Considerando as altas taxas em que a comissão de permanência tem sido aplicada (5% a 25% ao mês), é evidente que tal encargo é que deve ser afastado.
Portanto, a aplicação da comissão de permanência nos contratos bancários apresenta-se incompatível com os ditames do CDC. Quer por violar a boa-fé objetiva, ante a incerteza quanto à forma de sua apuração, quer por desrespeitar o equilíbrio do contrato, promovendo o crescimento desmesurado da dívida na inadimplência.
 VI - A Vedação à Capitalização de Juros
 Esta mesma ofensa ao princípio da equidade também deve ser observada na análise sobre a capitalização de juros.
Pela aplicação da Súmula nº 121/STF, a vedação à capitalização de juros foi afirmada em inúmeros precedentes, mesmo quando contratada expressamente - excetuando-se as hipóteses em que há autorização legal (31).
Contudo, a Corte Superior, dentre outros tribunais, tem admitido como legítimo o anatocismo, quando pactuado nos contratos firmados após a edição da Medida Provisória nº 2.170-36/01 e sob a forma de cédula de crédito bancário, instituída pela Lei nº 10.931/04.
Isto mesmo a despeito dos nefastos efeitos e notório desequilíbrio que tal prática implica na evolução dos contratos, colocando o consumidor em desvantagem exagerada. O crescimento de dívidas em progressão geométrica é incompatível com a noção de equidade e proporcionalidade das obrigações contratuais, estabelecida no Código de Defesa do Consumidor.
Além disso, mesmo nas hipóteses em que a capitalização está expressamente pactuada, não há como se presumir que efetivamente reflete a vontade do consumidor. Primeiro, porque os contratos firmados com as instituições financeiras são instrumentos típicos de adesão, em que o consumidor, vulnerável, não participa da formação do pacto (art. 4º, I, CDC).
Segundo, porque os arts. 6º, III, e 52, do CDC estabelecem que é obrigação do fornecedor informar ao consumidor sobre todos os custos do crédito ofertado. E, o art. 46 do mesmo Código preconiza a proteção do consumidor, contra condições contratuais das quais não tenha compreensão total de seu sentido e alcance. Ora, somente se tivesse conhecimento específico sobre conceitos e cálculos de matemática financeira é que o consumidor poderia compreender, com clareza, o impacto que a expressão "capitalização" implica para a evolução do contrato e o preço total a ser pago.
Contudo, com exceção a alguns tribunais infraconstitucionais, que reconhecem a inconstitucionalidade da Medida Provisória nº 2.170-36/01 (32), a capitalização de juros tem sido admitida nos contratos bancários, em periodicidade inferior à anual. Mesmo diante da vedação expressa da Súmula nº 121/STF, não revogada, bem como do início do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.316, que já conta com quatro pronunciamentos favoráveis ao reconhecimento da inconstitucionalidade desta norma.
A aplicação pura e simples da Medida Provisória nº 2.170-36/01, bem como da Lei nº 10.931/04, como autorizadores para a capitalização de juros mensal e até diária, ignora a ingerência do verdadeiro poder político privado (33) que as instituições financeiras exercem em nosso país.
Neste contexto, revela-se imprescindível aos julgadores, antes de aplicarem a norma como exegetas, proceder a uma reflexão sobre a legitimidade formal e material de algumas normas, que surgem como remédios para burlar a aplicação de entendimentos sumulados - como a vedação à capitalização, mesmo que contratada (Súmula nº 121/STF), e a impossibilidade de adotar o contrato de abertura de crédito em conta corrente como título executivo extrajudicial (Súmula nº 233/STJ), o que foi autorizado no art. 28 da Lei nº 10.931/04.
Esta situação revela ser necessária a prevalência dos comandos do Código de Defesa do Consumidor sobre as legislações apontadas, como forma de evitar abusos concretos (34).
Entretanto, a aplicação do CDC tem sido cada vez mais mitigada - para não dizer sepultada - nas revisões de contratos bancários. Principalmente em razão do inegavelmente poderoso lobby das instituições financeiras, tanto na edição de normas que legitimem abusos, quanto na construção de entendimentos jurisprudenciais que dificultem a defesa do consumidor.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 381 (35), pela qual vedou-se ao juiz conhecer de ofício das cláusulas nulas em contratos bancários. O comando de tal súmula é nitidamente contraditório à redação do art. 51, do CDC, que estabelece de forma clara a nulidade absoluta das cláusulas que se enquadrem nas hipóteses ali previstas (dentre outras).
Este entendimento também não observa a realidade prática de que o consumidor raramente tem acesso à mesma estrutura de defesa dos bancos (grandes bancas de advocacia). A proteção contra as cláusulas abusivas tratadas no art. 51, CDC, nulas de pleno direito e por isso cognoscíveis de ofício, é um mecanismo pelo qual o juízo poderia, de certa forma, igualar este desequilíbrio de condições de defesa.
Curioso é que a súmula, além de ilícita - por contrariar expressamente o dispositivo legal - foi moldada exclusivamente para os contratos bancários, não sendo aplicável aos demais contratos de consumo.
 VII - Conclusões
 A partir destas considerações, a defesa judicial do consumidor bancário revela-se como um grande desafio que reclama a construção de novos paradigmas. Para tanto, não se pode olvidar que as discussões sobre a aplicação do CDC aos contratos bancários não podem se furtar dos princípios constitucionais que estabeleceram a previsão de defesa do consumidor.
Com o julgamento da ADIn 2.591/DF, o STF reafirmou não apenas a submissão dos contratos bancários aos comandos do CDC, mas também que a proteção do consumidor "traduz prerrogativa fundamental do cidadão - qualifica-se como valor constitucional inerente à própria conceptualização do Estado Democrático e Social de Direito, razão pela qual incumbe, a toda a coletividade - e ao Poder Judiciário, em particular - extrair, dos direitos assegurados ao consumidor, a sua máxima eficácia" (36).
A efetividade da defesa judicial do consumidor bancário, muito mais do que afirmar a prevalência do Código de Defesa do Consumidor e a proteção contra inúmeros abusos concretos, é necessária para garantir a própria existência do Estado de Bem-Estar Social, o respeito à Carta Magna e a possibilidade de construção de uma sociedade mais justa.
NOTAS DA AUTORA:
26 TJRS, 14ª. Câmara Cível, Ap. Cível no. 70.017.882.440, Rel. Des. Durval Braulio Marques.
27 Súmula no. 30/STJ: “A Comissão de permanência e a correção monetária são inacumuláveis”.
28 STJ, AGREG 920735/RS, Aldir Passarinho, 06.08.07; AGRER 849.442/RS, Hélio Quaglia Barbosa, 04.06.07.29 Súmula no. 294/STJ: “Não é potestativa a cláusula contratual que prevê a comissão de permanência, calculada pela taxa média de mercado apurada pelo Banco Central do Brasil, limitada à taxa do contrato”.
30 STJ, AgRg no REsp 1.020.737/RS, j. 24.06.08; REsp 821.357/RS, j. 23.08.07.
31 Nas cédulas de crédito rural, comercial e industrial, admite-se a capitalização na periodicidade semestral.
32 Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, incidente de inconstitucionalidade na AC no. 2001.71.00.004856-0; TJSP, 23ª. Câmara de Direito Privado, Rel. Rizzato Nunes, Apelação no. 7.281.994.600, j. 01.07.09; Corte Especial extinto TAPR, incidente de Arguição de Inconstitucionalidade no. 579.047-0/01, j. 05.02.10.
33 Expressão utilizada por Jan Ramon Capella, no livro Os cidadãos servos.
34 Neste sentido: TJDF, 2ª. T. Cível, Apelação Cível no. 20080110065212 APC, Rel. Des. Waldir Leôncio C. Lopes Júnior, j. 09.09.09.
35 Súmula no. 381: “Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”.
36 Trecho do voto do ministro Celso de Mello.
Referências Bibliográficas
CAPELLA, Juan Ramon. Os cidadãos servos. Porto Alegre: SAFE, 1998.
DONNINI, Rogério Ferraz. A revisão dos contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1999.
EFING, Antônio Carlos. Contratos e procedimentos bancários à luz do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 1999.
LISBOA, Roberto Senise. Contornos atuais da teoria dos contratos. Coordenador: Carlos Alberto Bittar. São Paulo: RT, 1993.
LUCCA, Newton De. A proteção contratual no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor 5:79. São Paulo: RT, jan./mar. 1993.
NERY Jr., Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992.
SANDENBERG, Rubens. Spread bancário: uma contribuição para o debate. Revista Contábil & Empresarial Fiscolegis, 27 maio 2009.
 Artigo publicado originalmente na Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor nº 34 - Ago/Set de 2010 e reproduzido no CD Magister 37, fev/mar/2001, de onde foi extraído.


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