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25 maio 2011

A DEFESA JUDICIAL DO CONSUMIDOR BANCÁRIO


Parte 1/2

Andressa Jarletti Gonçalves de Oliveira 
Advogada. Professora Colaboradora na Escola Superior de Advocacia da OAB/PR. Membro das Comissões de Direito do Consumidor e Direito da Saúde da OAB-PR.

RESUMO: A revisão de contratos bancários é tema recorrente de demandas judiciais, fundamentadas principalmente nas proteções ditadas pelo Código de Defesa do Consumidor. Os questionamentos centrais dos consumidores recaem sobre a capitalização de juros e os altos encargos, remuneratórios e moratórios, praticados pelas instituições financeiras. Ao longo de duas décadas de aplicação do CDC, os Tribunais firmaram e reformularam vários entendimentos, aplicáveis aos contratos de consumo bancário. A análise crítica da evolução da jurisprudência revela a necessidade de revisão de entendimentos hoje consolidados, bem como da reconstrução da defesa judicial do consumidor bancário.

PALAVRAS-CHAVE: Defesa do Consumidor. Contratos Bancários. Revisão. Encargos Remuneratórios e Moratórios. Capitalização. Jurisprudência.

 I – Introdução

Hoje é praticamente impossível viver sem utilizar algum produto ou crédito bancário. Nesta utilização, muitas vezes o consumidor opta por caminhos mais onerosos para obter recursos, sem ter compreensão exata dos encargos praticados e seus respectivos efeitos na evolução dos contratos.

A grande maioria dos encargos são instituídos unilateralmente pelas instituições financeiras. Em razão das taxas altas e forma como são aplicados (capitalizados), podem promover o crescimento da dívida em progressão geométrica. Não raro, o consumidor se depara com um endividamento em valores excessivos e que não tem condições de pagar.
A partir da década de 90, o Poder Judiciário passou a receber um volume crescente de pedidos revisionais de contratos bancários. Tanto em defesa nos processos ajuizados pelas instituições financeiras, para cobrança de dívidas e retomada de bens, quanto em demandas promovidas por seus clientes.
As discussões judiciais, invocadas pelos consumidores, têm como temas centrais a vedação à capitalização de juros e a limitação das taxas e encargos praticados pelos bancos, tanto na normalidade quanto na inadimplência.
A preocupação com limitação das taxas de juros e vedação da capitalização não é recente, tendo sido tratada pela Lei de Usura (Decreto-Lei nº 22.626/1933) e, também, na Súmula nº 121/STF (1), aprovada na sessão plenária de 13.12.63.
Contudo, a grande abertura para discutir tais questões nos contratos bancários surgiu com a edição do Código de Defesa do Consumidor.
 II - As Alterações do Código de Defesa do Consumidor

O Código de Defesa do Consumidor materializou os novos princípios estabelecidos na Constituição Federal de 1988.
Quando a Carta Cidadã instituiu - ao menos em seu texto - o advento do Estado Social, introduziu uma nova ordem jurídica, visando ao bem-estar social dos indivíduos e à funcionalização da propriedade privada. É o fenômeno que Roberto Senise Lisboa define como a "socialização do Direito, onde o homem é considerado como indivíduo em meio a sociedade que efetivamente integra, e não mais de forma isolada, como propugnado pela vertente anterior" (2).
Com a Constituição Federal de 1988, houve uma profunda mudança ideológica. Abandonou-se aquela visão individualista que norteava o ordenamento jurídico e o direito dos contratos, para se utilizar o Direito como instrumento de satisfação das necessidades coletivas.
Sob essa ótica, consagraram-se os princípios: (i) da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III); (ii) da justiça e solidariedade, do desenvolvimento nacional e da justa distribuição de riquezas (art. 3º, I, II e III); (iii) da função social da propriedade (art. 5º, XXIII); (iv) da valorização da justiça social e da dignidade do homem, disciplinando diretamente a atividade econômica (art. 170, caput, III, VII e IX).
A defesa do consumidor foi instituída na Carta Magna tanto como princípio básico do Estado Social Democrático de Direito, no art. 5º, XXXII, quanto como valor obrigatório que deve ser observado no desenvolvimento da ordem econômica (art. 170, V).
Para atender à previsão constitucional de proteção do consumidor, foi editado o Código de Defesa do Consumidor. O CDC alterou sobremaneira os princípios vigentes na concepção clássica do direito contratual, constituindo "a maior transformação nas relações contratuais desde a Revolução Industrial, embora essa evolução ainda prossiga" (3).
A partir do Código de Defesa do Consumidor, norma de ordem pública e natureza cogente, a autonomia da vontade passou a ser limitada e vigiada, para obstar abuso pela parte economicamente mais forte do contrato (o fornecedor) (4). Reconheceu-se expressamente a vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I), equiparando-se a este as demais pessoas submetidas a práticas abusivas (art. 29, CDC).
A livre manifestação de vontade deixou de ser absoluta, devendo atender os novos princípios ditados, da boa-fé objetiva e da equidade contratual (art. 4º, III). A força vinculante deve se sujeitar à validade da condição contratual (5), elencando a lei rol, não taxativo, de situações em que a cláusula contratual se apresenta abusiva (art. 51) e é nula de pleno direito.
O Código de Defesa do Consumidor firmou dois novos pilares do direito contratual, que são o supedâneo para 99% das discussões judiciais dos contratos de consumo bancário: a boa-fé objetiva e a equidade contratual.
A boa-fé foi instituída no CDC como princípio próprio, basilar e informador das relações de consumo (6), limitador da autonomia privada, principalmente com relação ao conteúdo do contrato. Passou-se a conceber o contrato em análise menos direcionada à vontade declarada, voltando-se às expectativas e aos efeitos que produz na sociedade, valorizando-se a função social do contrato de consumo (7).
Em decorrência do princípio da boa-fé e em prol do interesse social na segurança das relações jurídicas, as partes deverão atuar com lealdade e confiança recíprocas, auxiliando-se nos momentos de formação e execução do contrato(8). Obtém-se pela aplicação deste princípio um contrato limpo, sem artimanhas ou cláusulas abusivas e com redação clara (9). A transparência na contratação implica uma relação mais justa e sincera (10).
Deste princípio, deriva o direito essencial do consumidor de ser informado sobre custos e condições de aquisição ou utilização de determinado serviço e/ou produto (art. 6º, III). Nos contratos de consumo bancários, a boa-fé objetiva somente estará evidenciada quando a instituição financeira atender ao comando do art. 52 do CDC, informando prévia e discriminadamente todos os encargos e custos da utilização de determinado serviço, ou produto (crédito ou dinheiro).
A observância da boa-fé na relação contratual consumerista é imprescindível e sua falta macula o vínculo. A aplicação deste princípio, no entanto, não visa à desconstituição do vínculo contratual, mas sim à moralização do contrato (11). O princípio da boa-fé objetiva caracteriza-se, portanto, como um autorizador da revisão contratual (12), operando-se a relativização da pacta sunt servanda.
O princípio da equidade busca um equilíbrio no conteúdo das condições contratuais, de modo a se alcançar uma justiça substancial, assegurada pela razoabilidade de proporção entre as prestações dos contratantes (13). A aplicação deste princípio encontra-se desdobrada em duas premissas: (i) a nulidade absoluta das chamadas cláusulas abusivas (art. 51, CDC) e (ii) a interpretação do contrato favorável ao consumidor, parte mais fraca da relação (art. 47 do CDC).
A interpretação favorável do contrato ao consumidor permite tratar as partes consoante à noção de igualdade do ilustre Rui Barbosa, ou seja, na medida de suas desigualdades. Reconhecendo o CDC, em seu art. 4º, I, que o consumidor é a parte mais fraca da relação de consumo, a interpretação favorável consiste em uma maneira de estabelecer um equilíbrio nos poderes contratuais (14).
Já a identificação das cláusulas abusivas, ocorre segundo dois critérios distintos: o formal e o concreto ou material (15).
O primeiro decorre dos arts. 46 e 54, §§ 3º e 4º, e vincula a obrigatoriedade de cumprimento da cláusula à oportunidade de tomar conhecimento prévio do contrato. Esta noção não se esgota na simples leitura do instrumento, fazendo-se necessária a clareza para possibilitar a compreensão pelo consumidor, quanto aos sentido e alcance da disposição contratual.
O segundo, consiste na nulidade absoluta das cláusulas abusivas, enumeradas no art. 51, rol não taxativo. Destaca-se a previsão do inciso IV, de proteção quanto às cláusulas "que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade".
Além disso, o art. 6º, V, da Lei Consumerista, instituiu como direito básico do consumidor "a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas".
As limitações e proteções impostas pelo Código de Defesa do Consumidor, às condições contratuais, passaram a ser adotadas como fundamento para revisão judicial dos contratos firmados entre consumidores e instituições financeiras. Especialmente quanto aos encargos praticados nos contratos de créditos bancários.
A submissão dos contratos bancários aos comandos do Código de Defesa do Consumidor foi expressamente tratada no art. 3º, § 2º do CDC, ao definir que "serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista".
Não obstante a clareza da previsão legal, houve grande resistência das instituições financeiras em aceitarem a aplicação da norma consumerista aos contratos bancários. Principalmente porque as revisões judiciais dos contratos implicam, em muitos casos, a limitação de encargos, expurgo de capitalização de juros e até a condenação da instituição financeira na repetição do indébito.
O reconhecimento de que o Código de Defesa do Consumidor é aplicável aos contratos firmados com instituições financeiras está consolidado. No Supremo Tribunal Federal, a questão foi revolvida no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.591/DF (16). E, no Superior Tribunal de Justiça, com a edição da Súmula nº 297/STJ (17).
Ao longo de quase vinte anos de aplicação do CDC, os tribunais pátrios firmaram diversos entendimentos sobre a revisão dos contratos bancários. A análise evolutiva, das constantes alterações jurisprudenciais sobre o tema, revela ser imprescindível uma releitura das orientações hoje dominantes.
 III - A Evolução da Jurisprudência sobre a Limitação dos Juros

Para melhor compreensão da questão, impende analisar as alterações da jurisprudência quanto aos três principais temas, que compõem os pedidos revisionais de contratos bancários: (i) limitação dos encargos de normalidade (juros remuneratórios); (ii) limitação aos encargos de inadimplência; e (iii) vedação à capitalização de juros.
Um dos primeiros fundamentos adotados para limitação dos juros remuneratórios foi a aplicação do teto constitucional de 12% ao ano, estabelecido no art. 192, § 3º, da CF/88, que determinava que "as taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano".
O limite constitucional da taxa de juros, embora de início tenha recebido certa acolhida pelas Cortes regionais, foi rejeitado pelo Tribunais Superiores, sob o argumento de que a norma não era autoaplicável e dependia de lei complementar - embora fosse óbvio que nenhuma norma inferior poderia alterar o limite já fixado na Constituição. O § 3º do art. 192, CF/88, foi revogado pela EC 40/03.
Uma outra discussão suscitada, para limitar as taxas de juros nos contratos bancários, reside na ausência de contratação expressa das taxas de juros.
Em algumas modalidades de crédito, como nos contratos de abertura de crédito em conta corrente e cartão de crédito, a utilização efetiva do crédito - e consequentemente a cobrança dos juros - é evento incerto. As cláusulas sobre a taxa de juros são redigidas em aberto, tendo como praxe a informação de que serão praticados os encargos vigentes para aquela instituição financeira, à época da utilização do crédito.
A cláusula contratual, que autoriza ao banco aplicar a taxa que entende vigente, é nula de pleno direito, tal como preceitua o art. 51, IV, X e XIII, do CDC, eis que permite ao fornecedor o arbitramento unilateral do preço do contrato - no caso o encargo -, colocando o consumidor em desvantagem exagerada. A falta de informação prévia sobre o preço do contrato viola também o princípio da boa-fé objetiva e o direito de informação, reconhecidos nos arts. 6º, III, e 52, CDC.
Nestes casos, o que surge então é uma lacuna no contrato, para a qual a solução que foi reiteradamente adotada pelo Poder Judiciário, como exercício do dirigismo contratual, foi a limitação da taxas de juros pelos parâmetros legais (18) - 6% (seis por cento) ao ano, pelo art. 1.063 do Código Civil de 1916 e 12% (doze por cento) ao ano, pelos arts. 406 e 591 do Código Civil de 2002.
Algumas decisões isoladas chegaram a limitar as taxas de juros com base também em preceitos do Novo Código Civil, ressaltando, além da boa-fé objetiva, a função social do contrato (19).
Apesar do ímpeto inicial do Judiciário em fazer valer a proteção e os princípios ditados pelo CDC, que revolucionaram o direito dos contratos, hoje se percebe o nítido enfraquecimento do exercício do dirigismo contratual. Grande parte das decisões e entendimentos jurisprudenciais firmados recentemente, especialmente pelo Superior Tribunal de Justiça, sinalizam para uma intervenção mínima - quando não inexistente - nos contratos bancários.
Com a Súmula nº 296/STJ (20), no ano de 2004, firmou-se a tendência de relegar a limitação dos encargos bancários às leis de mercado, adotando como limite para as taxas de juros as "taxas médias de mercado estipuladas pelo Banco Central do Brasil".
Contudo, tal entendimento ignora uma série de problemas de ordem prática, que não podem deixar de ser analisados.
A primeira questão é que a taxa média de mercado somente passou a ser divulgada pelo Banco Central do Brasil a partir de 1999. E, ainda, não é para todas as modalidades de operação de crédito que o Bacen divulga tal informação. Observando essa questão, já há julgados recentes que limitam as taxas de juros em 6% ao ano (art. 1.063, CC/16), em todo o período do contrato para o qual não há divulgação sobre a taxa média de mercado (21).
Outro fator que deve ser observado é que o Banco Central não estipula a taxa média de mercado, mas apenas divulga a média dos valores cobrados pelas instituições financeiras. Ou seja, não há por parte do Bacen uma atuação efetiva, no sentido de estabelecer qualquer forma de controle e limite efetivo ao spread das instituições financeiras, nas operações firmadas com seus clientes.
Além disso, a suposição de que a livre concorrência do mercado financeiro é suficiente para regular as taxas de juros praticadas pelos bancos - reportando à ideia da mão invisível de Adam Smith - é incompatível com o cenário brasileiro.
O Brasil tem pouco mais de 150 instituições financeiras distintas, enquanto Portugal, país com extensão territorial e populacional de proporções muito mais reduzidas, dispõe de mais de 1.000 instituições bancárias. Nos Estados Unidos, são mais de 10.000 instituições financeiras distintas. Evidente que a ideia de concorrência resta prejudicada, ante uma situação concreta de oligopólio.
Considerando também que as taxas de juros praticadas no Brasil estão entre as mais altas do mundo, resta clara a necessidade de intervenção nos casos concretos. Os contratos de crédito bancário devem alcançar um fim maior, legítimo ao interesse coletivo, do que apenas a acumulação de capital pelas instituições financeiras, divulgada em noticiários sobre lucros bilionários.
Ainda, os fatores comumente apontados pelos defensores das altas taxas de juros bancários, como custos operacionais, compulsório, encargos tributários e altos índices de inadimplência (22), também devem ser vistos com ressalvas.
Os custos operacionais da atividade bancária têm sido decrescentes, em razão das inovações tecnológicas, que autorizam redução de pessoal. Recentemente também os bancos foram liberados da obrigação do compulsório. A inadimplência implica elevação dos encargos na mora (comissão de permanência), tendo os bancos meios ágeis de recuperação de prejuízos (retomadas de bens, leilões extrajudiciais, execuções com penhora on-line, credores preferenciais em falências).
Isso sem contar no fator de multiplicação bancária, nos valores percebidos com capitalização, no lucro que os bancos tiveram com o rombo do FCVS (23) e o pouco número de consumidores que reclamam em juízo. Ou seja, os abusos geram lucro considerável às instituições financeiras.
Contudo, a realidade atual da atuação do Judiciário, omitindo-se em realizar um efetivo controle sobre as taxas de juros bancárias, mostra-se afetada pelo totalitarismo da taxa de mercado. Salvo raras exceções, a maioria das decisões judiciais aceita como legítima a aplicação da taxa média de mercado, porque é assim que ocorre na prática. Ou seja, não se estabelece um juízo de valor, que questione se há ou não abusos na composição da taxa de juros, que demandem a intervenção para limitação.
Não obstante o cenário pessimista para os defensores do CDC, no ano de 2006 o Supremo Tribunal Federal abriu novos caminhos para retomar a defesa do consumidor, no julgamento da ADIn 2.591/DF.
 IV - As Consequências da ADIn 2.591/DF

A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.591/DF foi ajuizada pela Consif - Confederação do Sistema Financeiro Nacional, apontando a inconstitucionalidade do art. 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor. O objetivo principal da ADIn era afastar a aplicação do CDC aos contratos bancários, especialmente quanto à limitação dos juros remuneratórios.
A ação foi julgada improcedente. Muito além de reafirmar a constitucionalidade da norma e sua aplicabilidade aos contratos de crédito bancário, o julgamento pelo Supremo analisou a polêmica da limitação de juros sob uma nova ótica.
No voto vencedor do Ministro Eros Grau, Relator para o acórdão, afirmou-se expressamente a necessidade de um controle efetivo, tanto pelo Banco Central do Brasil, quanto do Poder Judiciário, da abusividade e onerosidade excessiva nas altas taxas de juros praticadas pelos bancos, nos contratos de consumo firmados com os tomadores de crédito:
"Importa, no entanto, também considerarmos o descompasso existente entre a taxa de juros SELIC e as taxas efetivamente impostas pelos bancos a seus clientes. (...)
Deveras, a mera e simples comparação entre o montante da chamada taxa SELIC - que, sem nenhuma dúvida, é bastante elevada, se a considerarmos em relação à praticada em outros países - e a soma da efetivamente cobrada no plano de cada negócio individualmente considerado celebrado com os tomadores de crédito evidencia ser indispensável o efetivo controle da composição dessa soma. E não apenas nas hipóteses de relação entre banco, fornecedor de crédito, e cliente, pessoa física, senão também quando se trate de pequena ou média empresa. Pois aqui se instala - e de modo pronunciado - uma relação de dominação, em cujo polo ativo comparecem os bancos, no polo passivo, suportando-a, o devedor. Em certos casos, autênticas situações de dependência econômica."
Ou seja, o Ministro Eros Grau afirmou expressamente que a diferença entre o valor da taxa básica SELIC, fixada pelo Banco Central, e a taxa efetivamente aplicada pelos bancos em cada caso concreto, deve ser controlada. Justamente porque os contratos firmados entre particulares e banco o são em uma relação de dominação - o que, em outras palavras, nada mais é do que a vulnerabilidade do consumidor. A partir desta observação, o Ministro concluiu que:
"Daí porque tenho como indispensável a coibição de abusos praticados quando instituições financeiras acrescentam à taxa base de juros, a chamada SELIC, taxas adicionais de serviços e outros que tais. Vale dizer: tudo quanto exceda a taxa base de juros, os percentuais que a ela são adicionados e findam por compor o spread bancário, tudo isso pode e deve ser controlado pelo Banco Central e, se o caso, pelo Poder Judiciário. (...) O fato é que tudo quanto exceda o patamar da taxa SELIC é pura relação contratual. Por óbvio, a abusividade e a onerosidade excessiva na composição contratual dessa taxa, além de outras distorções, são passíveis de revisão nos termos dos preceitos aplicáveis do Código Civil - e, repito ainda, não somente em benefício do cliente pessoa física, mas também em especial das pequenas empresas, em relação às quais a dependência econômica pode estar francamente caracterizada."
Com o julgamento da ADIn 2.591/DF, a Corte Suprema reconheceu expressamente a possibilidade de controle judicial das taxas de juros bancários, sempre que a cobrança, imposta pelos bancos aos consumidores, exceder o percentual da taxa SELIC.
A fixação da SELIC pelo Banco Central não pode ser revista no caso concreto, pois é assunto de ordem macroeconômica e interesse governamental. Agora, a diferença entre a taxa de mercado imposta pelo banco, e a taxa SELIC, não só pode como deve ser analisada no caso concreto, posto que, ao contrário da fixação da SELIC, diz respeito à relação microeconômica das partes, que é puramente contratual.
E a análise da onerosidade desta diferença pode adotar como parâmetro as regras do Código Civil - ou seja, as taxas legais de 6% ao ano (art. 1.063, CC/16) e 12% ao ano (arts. 591 e 406, CC/02).
Assim, existe um claro descompasso entre a defesa do consumidor, preconizada pelo Supremo Tribunal Federal, e o posicionamento neoliberalista, adotado por Cortes infraconstitucionais, dentre as quais se destaca o Superior Tribunal de Justiça.
De um lado, o Supremo afirma expressamente a necessidade de intervenção judicial, para limitar as taxas de juros bancários, pelos preceitos aplicáveis do Código Civil. De outro, o STJ relega o controle dos juros ao mercado, justificando que as instituições financeiras não se submetem aos limites de juros fixados no Código Civil (24).
A divergência de entendimentos demonstra a necessidade de uma nova reflexão, sobre a legitimidade de alguns posicionamentos hoje vigentes no Superior Tribunal de Justiça. E não apenas quanto às taxas de juros remuneratórios, mas também quanto aos encargos de inadimplência e capitalização de juros.

NOTAS DA AUTORA:
1 Súmula no. 121/STF: “É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada”.
2 LISBOA, Roberto Senise. Contornos atuais da teoria dos contratos. Carlos Alberto Bittar (Coord.). São Paulo: RT, 1993, p.49.
3 DONNINI, Rogério Ferraz. A revisão dos contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 148-150.
4 Ibidem.
5 EFING, Antônio Carlos. Contratos e procedimentos bancários à luz do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT. 1999.
6 NERY Jr., Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1992. P. 273-274.
7 DONNINI, Rogério Ferraz. Op. cit., p. 149-150.
8 EFING, Antônio Carlos, Op. cit., p.95.
9 LUCCA, Newton De. A proteção contratual no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, 5:79, São Paulo, jan/mar.1993.
10 DONNINI, Rogério Ferraz, Op. cit., p. 150-151
11 DONNINI, Rogério Ferraz, Op. cit., p. 151.
12 EFING, Antônio Carlos. Op. cit. p. 95.
13 EFING, Antônio Carlos. Op. cit. p. 99.
14 DONNINI, Rogério Ferraz, Op. cit., p. 152.
15 EFING, Antônio Carlos. Op. cit. p. 101.
16 “ART. 3º, $ 2º, DO CDC. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ART.5º, XXXII, DA CB/88. ART. 170, V, DA CB\88. INSTITUIÇÕE FINACEIRAS. SUJEIÇÕES DELAS AO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA IMPROCEDENTE. “As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela incidência das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor.2. “Consumidor”, para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, é toda pessoa física ou jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito. Ação direta julgada improcedente.
17 Súmula no. 297/STJ: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”.
18 TAPR, 4ª. Câmara Cível, Ap. Cível no. 141.497-1, Rel. Fernando Wolff Bodziak, DJ 06.12.02; STJ, 4ª. T., AgRg  no REsp 619.346/RS, Rel. Min. Aldir Passarinho, DJ 06.09.04; TJPR, 16ª. Câmara Cível, Ap. Cível no. 386.253-5, Rel. Juiz Conv. Joatan Marcos de Carvalho, DJ 27.04.07.
19 TAPR, 2ª. Câmara Cível, Ap. Cível no. 204.267-5,Rel. Juiz Toshiharu Yokomizo, DJ 16.05.03.
20. Súmula no. 296/STJ: “Os juros remuneratórios, não cumuláveis com a comissão de permanência, são devidos no período de inadimplência, à taxa média de mercado estipulada pelo Banco Central do Brasil, limitada ao percentual contratado.”
21 TJSC, 1ª. Câmara de Direito Comercial, Apelação Cível no. 2004.014698-1, Rel. Des. Anselmo Cerello, j. 31.05.07; TJPR, 14ª. Câmara Cível, Embargos de Declaração Cível no. 613.018-9/02, Rel. Des. Edson Vidal Pinto, j. 12.05.10.
22 SARDENERG, Rubens. Spread bancário: uma contribuição para o debate. Revista Contável & Empresarial Fiscolegis, 27 maio 2009.
23 Conforme dados apurados pelo juízo da Vara Federal do Sistema Financeiro da Habitação de Curitiba, o rombo do FCVS é de 94 bilhões de reais (Sentença Proferida nos Autos no. 20077000015703-7).
24 Entendimento consolidado no REsp 1.061.530/RS, julgado em sede de recurso repetitivo.
25 TAPR, 5ª. Câmara Cível, Ap. Cível no. 200.887-1, Rel. Juiz Jurandyr Souza Junior, j. 30.04.03.
 
Artigo publicado originalmente na Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor nº 34 - Ago/Set de 2010 e reproduzido no CD Magister 37, fev/mar/2001, de onde foi extraído.

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