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13 outubro 2011

DIREITO DE FAMÍLIA E RESPONSABILIDADE CIVIL





Ênio Santarelli Zuliani
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo; Professor de Direito Civil nas Faculdades COC, de Ribeirão Preto, do Programa de Educação Continuada e Especialização em Direito GVlaw e do Curso Preparatório Marcato.



1 Dano em Direito de Família

As pessoas se comportam das formas mais variadas, e essa diversificação de condutas cria os rótulos que classificam os seres humanos. Alguns são maus, egoístas e extremamente agressivos, enquanto outros, inclusive parentes próximos, são adeptos da paz e do respeito aos semelhantes. A sociedade não perdoa aos desagregadores e separa os seres imperfeitos dos que são considerados superiores, esses últimos os portadores de um senso ético exemplar, cuja vida é guiada por predicamentos morais insuspeitos. O ser superior que iniciar a leitura deste texto vai se perguntar como é possível cogitar de indenizar dano nas relações familiares, por ser inconcebível que isso ocorra dentro do lar, ponto físico do amor e do ambiente mais próximo da valorização da dignidade humana prevista no art. 1º, III, da Constituição Federal.
Lastimavelmente cabe responder que as ocorrências familiares desastrosas são frequentes, denunciando a depreciação do afeto e da convivência saudável que produz a felicidade, a mais prazerosa vantagem da existência. Os conflitos familiares são agudos e quase sempre inconciliáveis, mostrando que as rupturas modificam, para pior, a vida dos envolvidos. Exatamente em virtude desse efeito devastador é que cabe advertir não serem os juízes capazes de restaurar por completo as fissuras decorrentes do desamor, das hostilidades, das violências, embora possam, pelas sentenças emitidas graças ao instituto da responsabilidade civil, restaurar as avarias, aplicando os antídotos judiciais que prometem cicatrizar as feridas, devolvendo a estima própria que fortalece.
Não há responsabilidade civil quando não existe dano a ser reparado ou compensado. O prejuízo da vítima é a consequência concreta da nocividade da conduta alheia e representa o pressuposto objetivo do dever de indenizar, tanto que o art. 186, do CC, estabelece que "aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que efetivamente moral, comete ato ilícito". A regra é completada pelo dispositivo que obriga o causador do dano a repará-lo (art. 927, caput, do CC) e, para fins de compreensão do nosso tema, estará quase sempre associada ao abuso de direito previsto no art. 187, do CC: "Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".
Partindo da premissa de ter ocorrido, no casamento, ato ilícito que causou dano ao cônjuge inocente, a ordem jurídica dispõe de meios para compor os efeitos da ilicitude, realizando pela indenização pecuniária do dano emergente (déficit financeiro mensurável por simples cálculo devido à redução do patrimônio) a restauração econômica ou, quando houver dano moral, a compensação em dinheiro que visa contrabalançar os traumas da lesão. A ideia vitoriosa e extremamente benéfica é a de que, sendo impossível recuperar a desonra com dinheiro, ao menos se obrigue o infrator a pagar um valor que permita à vítima empregá-lo no consumo terapêutico das agruras da ilegalidade. É justamente o dano moral o ponto polêmico ou verdadeiro desafio jurídico da responsabilidade civil no direito de família, comportando, por isso, uma abordagem separada.
O dano moral, inicialmente previsto no art. 5º, V e X, da CF/88, se expandiu devido ao bom uso que dele se fez e hoje está capitulado no art. 186, do CC, bem como no art. 6º, VI, da Lei nº 8.078/90 (que, inclusive, introduziu os danos morais coletivos e difusos). Houve uma corrida desenfreada em busca de indenizações, o que é facilmente explicável pela incompreensão jurídica de uma temática reprimida pelo sistema jurídico e pela falsa ilusão do enriquecimento (pedidos milionários), movimentação que não cabe censurar pela utilidade resultante dos cortes das demandas frívolas que alimentam a indústria do dano moral. O filtro judiciário permitiu decotar a matéria e cunhar o princípio de que mero dissabor não se indeniza, base jurídica da certeza de que justifica compensar com dinheiro somente a lesão que provoca séria e grave perturbação (mesmo que anímica) do indivíduo e da pessoa jurídica (Súmula nº 227, do STJ).
Atingiu-se o clímax desse correto pensamento e, salvo raríssimas exceções, não se testemunham absurdos ou heresias na aplicação do instituto. O dano moral, quando concedido, chega apresentado em sentenças fundamentadas com lógica e razão jurídica, como é exigido pelo art. 93, IX, da CF, o que ocorre também nos arbitramentos, sempre lembrado como ponto vulnerável da providência. A indenização não possui o dom de enriquecer a vítima, servindo para contemporizar os malefícios do lesado e, por outro lado, não pode ser de tão alto valor que empobreça o infrator. Busca-se e quase sempre é obtida a medida equilibrada para fazer com que o bolso do infrator pese, fator de conscientização dos riscos econômicos de se tripudiar a lei.
O dano moral é apropriado para justas reivindicações das vítimas inocentes dos ilícitos e dos abusos perpetrados nas relações familiares, atendendo ao propósito de compensar lesões a direitos de personalidade, danos estéticos e perda de uma chance, o que não se confunde com a proibição de indenizar dano futuro ou remoto. Pode ocorrer que os pais, pelos maus tratos impingidos ao filho menor ou adolescente, excedam na violência e provoquem nele mutilação ou algum outro tipo de incapacidade permanente para determinadas atividades físicas e profissionais, fato que interrompe uma carreira promissora que se iniciava e que tinha tudo para deslanchar (atleta profissional, atriz e modelo, musicista, etc.). Em se confirmando que a ilicitude familiar destruiu a chance real de um projeto de vida sustentável e plenamente realizável, é permitido que se indenizem os danos íntimos da frustração de um futuro perdido. Não se cuida de indenizar sonhos impossíveis, mas, sim, de compensar os danos dessa alteração da rota prevista e alcançável sem esforço extraordinário. Evidente que se ficar provado que a pessoa mutilada ou incapacitada conseguiu mudar a sorte, eliminando o previsível insucesso, não terá cabimento a indenização pela perda de uma chance, que é admitida apenas quando o ilícito esvazia a probabilidade verossímil da meta planejada, lançando a vítima em um caminho adverso e pontilhado de desacertos, mágoas, doenças psicossomáticas e um terrível isolamento social.

2 Rompimento de Noivado
O noivado é quase coisa do passado e poucos são os casais que vivem, de fato, essa fase antecedente ao matrimônio, marcada por forte aproximação deles. Os costumes foram se alterando, e a etapa do comprometimento oficioso dos futuros cônjuges perdeu a importância e o glamour, até porque os interessados, com maior senso prático, preferem a experiência da coabitação provisória, antes da solenidade nupcial, como teste mais confiável de uma adaptação. Apesar de ser pouco festiva a inserção da aliança na mão direita, o fato é que o noivado continua tendo significado no direito civil, caracterizando um compromisso que vincula determinados interesses (tutela da confiança). Não é incomum que homens e mulheres recorram ao Judiciário com queixas sobre a ruptura abrupta e imotivada do noivado, reabrindo a controvérsia sobre cabimento de indenizações.
Evidente que a discussão cabe exclusivamente em hipóteses particulares, não servindo para as passionais e pueris brigas de namorados instáveis, como Nora Grey, que, em momento de fúria, desabafou não mais querer ouvir falar em namorados pelo restante da vida: "A única serventia que um namorado tinha era partir coração" (Crescendo, de Becca Fitzpatrick). O direito não possui remédio para curar as dores de um caso mal resolvido, ainda que a razão do desenlace surja como leviana aos olhos de terceiros. O que interessa para a ordem jurídica tem a ver com o desfazimento inexplicado do acordo celebrado para concluir a boda matrimonial, por arrependimento serôdio do noivo ou da noiva. Essa situação desestrutura um ato de vontade que saiu da esfera subjetiva e caminhou para a concretização pela habilitação do casamento iniciada ou concluída, com serviços contratados de buffet, vestido de noiva, salão da festa e da igreja. A reviravolta obriga, inclusive, a recolher os convites expedidos e espalhados, o que, sem dúvida alguma, constitui constrangimento extraordinário.
Ninguém pode ser compelido a contrair casamento compulsório. O art. 1538, do CC, admite que possa ser suspensa a solenidade do casamento pela recusa de consentimento, o que autoriza afirmar que cabe arrependimento até o instante decisivo de afirmar o famoso "sim, eu aceito". Nesse caso ou pela ausência do arrependido, haverá de ser justificada a negativa de subscrição do ato, sob pena de constituir abuso de direito (art. 187, do CC), tipificada clara situação de constrangimento social a justificar a indenização pecuniária para abrandar o drama daquele que é abandonado no altar. Isso porque o arrependimento, que se permite, não foi exercido de maneira razoável (com maior antecedência) ou de forma menos traumática para a outra parte interessada, residindo aí a figura do abuso do direito de recusar o consentimento para o ato.
A Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça negou dano moral para a moça de Barretos, que pagou, com exclusividade, todos os gastos para a cerimônia, sendo surpreendida, menos de quinze dias da data do casamento, por um telefonema evasivo eliminando tudo. Houve um debate intenso na sessão de conferência de votos e, ao final, prevaleceu, contra a posição deste que escreve essas linhas, que cabia ao ex-noivo pagar somente metade das despesas adiantadas pela mulher. Entendi que não é lícito o arrependimento na antevéspera, por telefone e sem uma causa (sequer desamor o arrependido foi capaz de mencionar), quando ele, ao assinar a habilitação de casamento e consentir com todos os preparativos, conduziu a mulher a crer na oficialização. Também considerei equivocado, respeitado o entendimento dos meus ilustres colegas, repartir as despesas realizadas pela noiva, devido a constituir inadimplemento culposo do varão, que, com isso, responde pelos danos que a mulher suportou, inclusive porque não são aproveitáveis os produtos dos serviços contratados, sendo impensável cogitar de utilização do vestido de noiva para outro e incerto consórcio. Os presentes que os convivas ofertaram para os noivos serão devolvidos, nos termos do art. 546, do CC.
As posições divergentes revelam que se está longe de uma unanimidade e, evidentemente, somente as circunstâncias do caso concreto definem a existência de dano moral indenizável em prol daquele que suporta todo o peso do arrependimento tardio, sendo importantíssimo que o juiz conheça os detalhes da vida contemporânea da pessoa rejeitada, porque a repercussão é de maior ou de menor intensidade diante da publicidade e da importância social que se concede ao cerimonial frustrado. Uma festa de poucos convidados a ser realizada em um grande capital terá o resultado adverso pouco comentado, o que repercute no aspecto da honra objetiva, enquanto, em uma cidade do interior, que cultiva a cerimônia como um acontecimento festivo socialmente valorizado, provoca humilhação maior a quem sobra o difícil mister de explicar o inexplicável para os amigos, parentes e conhecidos. Não é razoável considerar que uma confusão desse gênero cause mero dissabor e que obrigue a aceitar a ruptura como evento natural e previsível (risco da relação). Aceitar esse frágil argumento significa ignorar o estado de ânimo afetado da vítima (honra subjetiva), patrimônio moral tutelável.

3 Divórcio e União Estável: Obrigação de Indenizar em Caso de Dissolução dos Vínculos
A partir da EC nº 66/2010, alterando a redação do art. 226, § 6º, da CF (o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio), surgiram manifestações no sentido de ter sido banida a culpa como razão ou fundamento para dissolver casamentos. Esses comentários buscam sensibilizar os operadores jurídicos de ser o debate sobre a culpa um mal inútil, devido a ser possível alcançar, sem identificar culpados e estigmatizá-los, os mesmos resultados a que se chega sacrificando os infratores. Esse discurso charmoso não impressiona os destinatários (cônjuges inocentes), sendo que eles, nem sempre movidos por revanchismo ou outro sentimento vil, procuram, nas entranhas dos ordenamentos, os textos que definem as garantias de seus direitos, diante da falência matrimonial derivada de conduta desonrosa.
O divórcio desburocratizado é uma realidade que chegou em bom momento, preenchendo um vazio produtor de instabilidades sociais. Todos perseguem um relacionamento duradouro e completo em termos de satisfações conjuntas e nem sempre conseguem, o que é bem compreensível diante das dificuldades com os desafios da rotina, a qual enfraquece o mais nobre e vigoroso dos sentimentos. Os divórcios são celebrados quase na mesma proporção em que os casamentos se realizam, o que prova que a dissolução do vínculo não é encarada como problema, mas, sim, solução por abrir, pelo desatar dos laços, oportunidades para novos relacionamentos. Porém, facilitar o divórcio não significa dizer que os abusos e as ilicitudes dos cônjuges estão liberados, como se o mais importante para a família passasse, doravante, a ser o instituto do divórcio vazio ou cheio de vilipêndios.
Todo o cônjuge que se sentir traído ou ofendido por condutas consideradas desonrosas (art. 5º, caput, da Lei nº 6.515/77 e art. 1573, do CC) poderá exigir que o juiz decrete o divórcio com reconhecimento e declaração da culpa, e não há motivo plausível para que se decomponha esse processo, como está sendo advogado pelos doutrinadores que, adeptos da solução dinâmica para o divórcio, consideram que o cônjuge deverá ajuizar duas ações distintas, sendo uma para obter o divórcio e outra para discutir a culpa como objeto de regulamentação dos alimentos e de direitos que versem o nome. O ideal é concentrar, unificar e economizar procedimentos para celeridade, o que se obtém eliminando ações paralelas que só dificultam a marcha em frente do processo civil e, por isso, considero que o juiz deve admitir que se promova a ação de divórcio, com denúncia de violação dos deveres do casamento, em um só libelo, lembrando que, para o caso de urgência da dissolução, nada obsta que se antecipe a sentença (art. 273, do CPC), de modo a resguardar as faculdades civis dos litigantes. Não é razoável obrigar o cônjuge a protocolizar duas petições, sendo uma para obter o divórcio e outra para alimentos por ser inocente e dependente econômico (art. 1694, do CC).
A obrigação de indenizar decorre da violação dos deveres do casamento e dos efeitos do ato lesivo. O casamento não exonera ninguém do dever fundamental de não lesar outrem, e não é possível entender que a ofensa física praticada fora do lar produz o dever de indenizar, enquanto a mesma atitude ofensiva cometida no recesso do lar não o faz. Isso é absurdo e convém apenas admitir que talvez exista uma certa dificuldade em provar a ilicitude, como reclama o art. 333, I, do CPC, sabido que a responsabilidade por ofensas físicas ou verbais é de ordem subjetiva. Portanto e que não paire dúvida: a responsabilidade civil estendeu o seu manto protetor para as relações de família e deve atuar prontamente para reparar o dano injusto.
O cônjuge prejudicado deverá ajuizar ação de indenização concomitante com o divórcio ou separação, e adianto minha discordância sobre a afirmação de não existir mais o instituto da separação judicial ou consensual. Essa é outra interpretação que precisa ser analisada com cautela, visto que os cônjuges poderão optar pela separação e não o divórcio, e não cabe ao juiz intervir para determinar o que é melhor para eles, sabido que o art. 1513, do CC, estabelece que ser "defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família". Tenho ouvido de colegas que a separação não produz resultado útil, o que explicaria indeferimento e extinção de tal processo se os postulantes não optassem pelo divórcio, e fico imaginando como é possível decidir contra a vontade dos cônjuges que estão pedindo que se homologue a separação do casamento e não que se dissolva o casamento pelo divórcio. Imagino que, se a moda pega, logo devemos aceitar que o juiz designado para resolver incidentes da habilitação de casamentos aja, de ofício, indeferindo as propostas matrimoniais para mandar todos viverem em união estável, apenas por entender que a informalidade da vida em comum é mais vantajosa.
Retornando ao ponto anterior (necessidade de ser ajuizada ação de reparação civil em ação autônoma e concomitante ao pedido de separação ou divórcio), é essa exigência uma questão de interesse moral do pedido (art. 267, VI, do CPC). Não é possível que o cônjuge que reclama indenização do outro pela violação dos deveres matrimoniais continue casado ou coabitando com o infrator, por ser incoerente esse estado de coisas. O direito de indenização decorre da ofensa que motiva o divórcio e a separação litigiosa, sendo uma consequência que se postula em ação autônoma pela diversidade do enfoque jurídico do pedido principal. A competência é do juízo da vara de família, por ser ação decorrente da relação matrimonial, existindo conexidade que justifica o apensamento para, eventualmente, proporcionar decisões conjuntas (art. 106, do CPC).
A experiência judiciária permite afirmar que existem decisões favoráveis sobre indenização de dano moral para mulheres agredidas por maridos violentos, sabido que a ofensa à integridade física, a par de tipificar o crime definido no art. 129, do CP, constitui lesão ao direito de personalidade (ofensa à saúde), acrescentando que, se da ofensa resultar aleijão ou incapacidade, caberá indenização por dano estético e indenização pela incapacidade profissional (arts. 949 e 950, do CC). Ofensas verbais que não se imunizam pela retorsão imediata e racional são, igualmente, humilhantes e vexam os ofendidos, notadamente se forem expelidas em público e acompanhadas de afirmações injuriosas de conotação sexual que afrontem os sentidos da intimidade (art. 5º, V e X, da CF).
Os anais de jurisprudência informam que o segredo da gravidez adulterina revelado após longos anos de fraude da paternidade biológica conspurca o juramento de fidelidade e desonra o traído que, por anos, é mantido no erro, justificando deferir a ele a indenização por dano moral a ser paga pela mulher, sem prejuízo de revogação do reconhecimento de paternidade, caso não seja possível mantê-lo diante da paternidade socioafetiva. Relatei um caso horrível em que se admitiu a indenização por dano moral pelo fato de o marido já de idade avançada, ter abusado sexualmente do próprio neto, quando a Turma Julgadora considerou que a descoberta de uma perversão dessa índole, do homem que dividia a sua cama, causa uma indignação para a mulher capaz de perturbá-la para sempre. Também em outra ocasião subscrevi voto condutor de acórdão que estabeleceu o dever de pagar dano moral para a esposa que foi contaminada por doença sexualmente transmissível (sífilis e clamídia), tendo o varão admitido ter contraído a doença em coito praticado, sem preservativos, com prostituta de rua.
O emblemático nesse terreno diz respeito ao adultério. A fidelidade é dever do casamento e da união estável, sendo que a inobservância do compromisso gera a crise própria do que seria, para muitos, erro fatal e imperdoável. O adultério, que consiste em manter vida sexual com outro, enquanto coabita pelo casamento, nunca será abonado juridicamente, salvo quando se provar que o adúltero foi encaminhado para o deslize pelo cônjuge que se diz vítima da traição, o que é raro (e não impossível) de se verificar. Contudo e ainda que sobrem razões íntimas que o infrator suscite para justificar seu comportamento, o fato é que, enquanto persistir a vida em comum, não lhe é facultado transgredir o voto de confiança que estrutura a coabitação regular e socialmente produtiva. Assim e embora o adultério constitua a causa eficiente para decretar o fim anormal do casamento, não há uniformidade quanto a constituir tal infração uma fonte objetiva do dever de indenizar.
O adultério possui graduações pelas maneiras como se concretiza, embora o resultado destrutivo para a relação seja sempre agudo. Porém, e isso obriga refletir, nem sempre o adultério é tornado público ou de conhecimento de terceiros e, por vezes, tanto homem e mulher agem com discrição e poupam os cônjuges das adversidades e maledicências. Ainda que constitua quebra do dever de fidelidade, não há ofensa à honra, reputação, imagem do outro e, por isso, não cabe indenização por dano moral (art. 5º, V e X, da CF). Também não é permitido ignorar ser o adultério o fim da linha de um programa continuado de ofensas recíprocas, constituindo o ato derradeiro de uma batalha de vida infeliz, cujo grau de desinteligência e hostilidade foi animado pela mútua intransigência e revanchismo dos cônjuges. Nesse clima de irracionalidade em que a razão permanece obscura na névoa da beligerância recíproca, não soa razoável condenar o adúltero pela sexualidade alternativa que, nesse contexto de tudo errado, constitui, no aspecto dano moral, pecado venial.
Fui voto vencido em acórdão muito comentado e continuo convicto de que, naquela hipótese, o adultério que o marido praticou com a mulher que se imiscuiu na vida do casal como sendo a melhor amiga da esposa traída, justificava a incidência do art. 5º, V e X, da CF. Isso porque não foram somente as sessões de adultério na própria residência do casal que agravaram o quadro, mas, sim, a maneira como os amantes assumiram o caso, pois, de abrupto e sem qualquer comunicação, empreenderam fuga, permanecendo a esposa sem qualquer fonte de subsistência, com o encargo de criar dois filhos, o que foi desastroso, pelo menos em relação a um deles (viciou-se em drogas ilícitas). Sempre que o adultério for praticado de maneira a causar um mal maior do que perturbação do amor e confiança traídos, cabe conceder o dano moral que compense o trauma externo que resulta dessa violação.
O que se escreveu para o divórcio incide para a união estável, que é, como diz o art. 226, § 3º, da CF, entidade familiar. Quem vive em união estável não se matrimonia por pura opção, embora carregue, no espírito, os mesmos ideais da vida em comum, especialmente a obrigação de lealdade que prolonga e dá estabilidade ao convívio, sem o que não resiste aos sólidos fundamentos de projeto familiar (art. 1.723, do CC). Existe um diferencial nos dois organismos (casamento e união estável) digno de meditação quando em pauta a responsabilidade civil e estou me referindo ao modo de dissolução. É possível especular que os interessados possam ser tomados da falsa impressão gerada pela ausência de papéis assinados para regularizar a junção de corpos, de ser permitido dispensar o companheiro, quando constatada a insuportabilidade da vida em comum, sem os cuidados com os direitos fundamentais do ser humano, o que constitui ilícito civil. Há, pois, evidente abuso de direito em desalojar o parceiro em condições adversas e por meio de ações que provocam vexame, humilhações e constrangimentos, lembrando sempre que o dano moral existe para compor lesões ao direito da personalidade e ofensas contra as graves desumanidades que não se admitem sequer quando o descontrole explode pelas contendas sentimentais.

4 Responsabilidade pelas Violações dos Deveres de Guarda e Visitas
Os adultos resolvem suas pendências, e os filhos menores, quase sempre, são os que sofrem as piores consequências da quebra da affectio maritalis. Isso invariavelmente ocorre ainda que concorram justas razões para o divórcio, sabido que as crianças sempre desejam que os pais continuem unidos, como se a presença deles fortalecesse o próprio abrigo e sua vida, o que é bem compreensível. O fato é que uma vez decidido pelo término da relação, é necessário dar atenção aos filhos menores, na tentativa de amenizar os impactos do vazio que se abre com a divisão de moradias dos pais.
Infelizmente os casais separados não fazem bom uso da guarda compartilhada (art. 1584, do CC). Existe uma predileção pela unilateralidade da guarda, que, por vocação instintiva, é deferida para a mãe da criança, e logo surgem as desavenças derivadas das infantis intransigências no exercício do direito de visita (art. 1589, do CC), mormente quando alguém assume o novo amor. As acusações se proliferam, e o juiz tenta, sem sucesso, a conciliação, revelando os processos que chegam ao Tribunal que o clima entre os divorciados e companheiros separados atinge uma escala de irracionalidade e de violência física e verbal, totalmente prejudicial ao desenvolvimento psíquico da pobre criaturinha entrincheirada nas proposições radicalizadas dos pais. E fica pior quando é verificado que os avós entram na disputa para agravar a discórdia familiar.
A guarda compartilhada evitaria todo esse imbróglio e constituiria uma passagem inofensiva da transição a ser superada na adaptação dos filhos menores às vidas separadas dos pais, desde que a eles fossem oferecidas condições propícias. Os cônjuges e companheiros ainda não tomaram consciência de que o sistema jurídico foi alterado nesse segmento exatamente para proteger os menores dos desmandos cometidos por mágoas e ressentimentos amorosos, sendo necessário advertir que não se valorizaram os aspectos propedêuticos das sanções impostas pelo descumprimento (§§ 4º e 5º, do art. 1584, do CC). O juiz deve agir com firmeza para impedir que a alienação parental se transforme na síndrome que inferniza a vida das crianças, não só estabelecendo diretrizes e metas para que as visitas se façam sem martírios, como reduzindo prerrogativas tanto do guardador como do visitador. Não se descarta inverter a titularidade da guarda quando se verifica a inaptidão do escolhido, sendo de bom alvitre que se nomeie parente próximo para o mister quando os pais forem ineptos para o bom termo. A criança tem o direito preponderante, e todas as incursões necessárias para que seus interesses fiquem garantidos serão realizadas, ainda que para isso seja preciso afastá-las da convivência dos pais irresponsáveis e levianos.
Os filhos que não recebem as visitas dos pais, apesar de ter sido regulamentado esse direito, são titulares do direito indenizatório? Em se verificando que a ausência do visitador é repetida de forma inconsequente (sem as razões para a falta), essa conduta poderá ganhar status de ilicitude, em se verificando que o menor a ser visitado sofre demasiadamente com o descaso paterno ou materno, como, por exemplo, seguidas decepções angustiadas pela espera inútil, após ansiosa preparação para o encontro. Independente de caracterizar abandono afetivo, o visitador que não avisa dos desencontros ou da impossibilidade de comparecimento, gerando uma expectativa que se transforma em sentimento ruim pela frustração, deverá ser compelido a pagar uma multa (astreinte) para eliminar o mau vezo que depõe contra valores morais do filho repudiado. A aplicação da pena prevista no art. 461, § 5º, do CPC, poderá ser imposta de ofício pelo juiz que se preocupa com o exato cumprimento dos acordos que envolvem filhos menores. Caso não se altere o proceder, poderá o filho exigir uma indenização pela humilhação do descumprimento.
É boa a discussão sobre a utilidade da indenização que se manda pagar em caso de recusa ao cumprimento do direito de visita, porque não irá auxiliar o propósito de aproximar pai e filho distanciados. Concorda-se que a solução indenizatória não contribui em nada para abrandar corações duros ou frios e nunca foi estímulo para o desabrochar de sentimentos ocultos ou adormecidos, o que não significa que tenha de ser descartada, pois se as multas não persuadiram o infrator e não existe a menor perspectiva de mudança saudável dos hábitos egocêntricos, a indenização aparece como benefício a uma vítima que não conta com outra opção para remediar o mal sofrido. A compensação financeira, no contexto, representaria um antídoto para a rejeição que atormenta, servindo para que a criança obtenha, com os privilégios financeiros, satisfações materiais que poderão contemporizar a dor experimentada. Não se está, com tal veredicto, condenando o pai pelo desamor, mas, sim, pelos efeitos do procedimento omisso que causa constrangimento, sofrimento, dor e vergonha (dano moral subjetivo).
Certa vez e durante conferência jurídica organizada pela AASP, fui indagado sobre eventual responsabilidade civil do sujeito que exerce a guarda e que coloca obstáculos e dificuldades ao direito de visita. Esclareci que tudo dependeria das provas sobre os episódios e dos resultados adversos dessa política insana. Não se permite que o visitador fique acomodado diante dessas ocorrências, sob pena de perder a legitimidade quanto ao direito de reivindicar direitos pela frustração do convívio, pois quem não reclama e exige respeito está sinalizando que se contentou com a situação, fato que elimina o dano indenizável. Portanto, provado que o visitador não consegue conectar-se com o filho por uma inadimplência incontrolada do titular da guarda, poderá, sim, ser exigida uma indenização pelo sofrimento e angústia que daí derivam. O filho que descobre ter perdido o amor filial pelo comportamento imprudente de quem detinha a guarda, é, igualmente, titular do direito indenizatório, patente o nexo de causalidade (art. 403, do CC) dessa ilicitude com o dano íntimo do tempo perdido ou do sentimento que não mais se resgatará.
O abandono afetivo continua presente na pauta dos debates, apesar do precedente isolado do colendo STJ, negando indenização pleiteada por um filho que se disse repudiado pelo pai, quando foi explicado que o desamor não é indenizado. Ocorre que há um equívoco na inserção desse fundamento, pois o motivo da pretensão ressarcitória não está calcado na exclusão do afeto, mas, sim, pelo não cumprimento dos deveres paternais previstos no art. 227, da CF. Não basta pagar alimentos para ser pai presente, pois a ordem jurídica exige mais, embora não chegue ao extremo de obrigar que o pai ame o filho. O que se obriga é que se respeite o ser humano que cresce, dedicando a atenção e o cuidado básicos para que o desenvolvimento da personalidade ocorra naturalmente pelo avançar cronológico. Ninguém poderá forçar um pai ou mãe a permanecer em contato vinte e quatro horas ou todos os dias do ano, sabido que as particularidades individuais justificam formas variadas para cumprimento da solidariedade familiar. O que não se admite é o completo isolamento ou a total indiferença, como se o filho não existisse ou que representasse um estranho indigno da atenção moral que se deve dedicar a um desconhecido (ou até aos bichos), porque esse comportamento configura um desprezo a quem, por razões de família, não pode ser ignorado.
Os juízes criaram uma jurisprudência formidável para restaurar os efeitos do abalo de crédito, porque sensíveis ao drama do sujeito que sofre uma inscrição indevida nos órgãos que cadastram devedores inadimplentes. Para essas vítimas da retração da confiança dos lojistas e banqueiros, que não mais fiam crediário para quem figura em listas emitidas pelo SERASA, SPC e outros, os magistrados concedem indenizações de valores variados e não há o que controverter sobre o acerto de tais julgamentos, pois comete ilícito e dano indenizável quem, indevidamente, coloca o sujeito em situação constrangedora. Ocorre que essa mesma justiça que aplica bem os pressupostos da responsabilidade civil para os cadastros indevidos nega a indenização para os filhos rejeitados e que sofrem pela indiferença e abandono dos pais. Inusitado paradoxo.
É difícil sustentar que filhos merecem abandono. Normalmente são eles atingidos em tenra idade, com a inocência purificada, e não há como atribuir a eles algum erro ou culpa. Poderá, em casos de filhos adolescentes, existir alguma rota de colisão que possa justificar um distanciamento e, salvo essas graves e extraordinárias hipóteses, o abandonador não poderá jamais culpar o filho ou quem detém a guarda para justificar a sua falta. Enjeitar o filho contrasta com o dever do pai de subsidiar o crescimento sereno da criança ou do adolescente e, se ficar demonstrado que essa negligente conduta causou um distúrbio psíquico que representou um ponto no somatório de efeitos ruins de um estigma imerecido, cabe indenização que tem como referência os arts. 5º, V e X, 1º, III e 227, todos da CF, combinado com ao art. 186, do CC).
Não custa lembrar que a indenização por abandono afetivo depende da prova do dano a ser compensado, que tanto poderá consistir no lado subjetivo (sofrimento, angústia, baixa estima, introversão, depressão, etc.) ou no aspecto objetivo (repercussão dos deslizes e desmandos na órbita social do abandonado, como ausência nas festas, solenidades, dias especiais comemorativos, etc.), o que reclama cuidado na confirmação do nexo de causalidade entre o abandono e os prejuízos citados. A Quarta Câmara de Direito Privado negou indenização a uma moça que se dizia (e foi) abandonada pelo pai, porque as provas demonstraram que, apesar da ausência paterna, o desenvolvimento psíquico foi regular e normal, tendo ela se transformado em adulto bem resolvido, obtendo graduação em Direito, com imediata aprovação na OAB e perfeita socialização. A conclusão foi a de que não se provou o dano indenizável.
A indenização por abandono afetivo não é uma resposta tardia para o descaso e a desumanidade familiar, como se fosse uma arma que se detona para arrancar da alma a revolta de uma infância ou adolescência que poderia ser mais feliz. A indenização é eficaz para o caso de confirmação do prejuízo decorrente da ilicitude, pelo não cumprimento dos deveres fundamentais dos pais, servindo para consolar o infeliz, permitindo que o dinheiro proporcione o mínimo que lhe foi negado pelo infortúnio da paternidade irresponsável. O lesado é titular do mesmo direito que a jurisprudência assegura aos destinatários do dano moral, como o sujeito que tem seu nome inscrito nas listas de devedores inadimplentes.


Extraído de Editora Magister/doutrina

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