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01 novembro 2011

O CANDIDATO



HENRY SLEZAR
Henry Slesar (12 de junho de 1927 - 2 de abril de 2002) nasceu no Brooklyn, Nova York e seu nome verdadeiro era Henry Schlosser. Escritor, dramaturgo e copywriter. Pais judeus, imigrantes da Ucrânia. (Wickipédia).



“A importância de um homem pode ser julgada pelo calibre dos seus inimigos.” Ao encontrar a frase numa biografia de um livro de bolso, comprada numa banca de jornal, Borton Grunzer colocou o livro no colo, e olhou, refletidamente, pela janela do trem de subúrbio. A escuridão estanhava o vidro e só devolvia-lhe a sua própria imagem, o que era adequado à linha de pensamento que seguia. Quantas pessoas eram inimigas daquele rosto, daqueles olhos estrábicos e míopes que ele por vaidade, havia furtado ao uso de óculos, do nariz que ele secretamente chamava de romano e da boca, macia quando tranqüila, e dura quando animada pelas discussões, sorrisos ou caretas? Quantos inimigos? Homens como Whitman Hayes, por exemplo, um adversário de grande peso para qualquer um. Grunzer sorriu, ao desfechar um olhar de soslaio ao seu companheiro de banco, não desejando ser surpreendido no enlevo de um pensamento secreto. Grunzer tinha trinta e quatro anos; Hayes era mais velho quase o dobro, com os seus cabelos brancos, sinônimo de experiência, um inimigo para se ter orgulho. Hayes conhecia o comércio de gêneros alimentícios bastante bem, conhecia-o em todos os ângulos: fora empregado no transporte de alimentos durante seis anos, corretor durante dez anos, antes do velho trazê-lo para dentro da organização e transformá-lo no seu braço direito. Passar a perna em Hayes não era nada fácil, o que fazia os pequenos porém crescentes triunfos de Grunzer tanto mais deliciosos. Congratulou-se consigo mesmo. Transformara a superioridade de Hayes em desvantagem. Reduzira todos os seus anos passados a um equivalente de senilidade, a uma competência superada. Nas reuniões, concentrara-se nas questões sobre os novos supermercados e nos problemas do subúrbio para convencer o velho de que os tempos mudaram, que o passado estava morto, que novas técnicas comerciais eram necessárias, e que só um homem mais jovem poderia executá-las...
De repente, sentiu-se deprimido. O prazer das vitórias rememoradas pareceu-lhe sem sabor. Sim, ele ganhara uma ou duas batalhas menores na sala de conferências da companhia: fizera a face risada de Hayes ficar rubra de raiva, e vira a pele de pergaminho do velho, enrugar-se num malicioso arreganho de dentes. Mas o que conseguira ele de fato? Hayes parecia mais seguro de si próprio do que nunca, e o velho cada vez mais dependente dos conselhos dele...
Quando chegou a casa, mais tarde do que de costume, sua mulher Jean não lhe fez perguntas. Depois de oito anos de casamento, sendo ela estéril, conhecia o marido até bem demais, e ofereceu-lhe sensatamente nada mais do que uma saudação tranqüila, uma refeição quente e o correio do dia. Grunzer começou a folheá-lo com gestos bruscos até encontrar uma carta não identificada que meteu no bolso da calça, reservando-a para uma leitura particular, e terminou a refeição em silencia.
Depois do jantar Jean sugeriu um cinema e ele concordou; tinha paixão por filmes com bastante violência. Mas primeiro, trancou-se ao banheiro e abriu a carta. O seu cabeçalho era misterioso: SOCIEDADE DE AÇÃO CONJUNTA. O endereço do remetente era uma caixa postal. Dizia o seguinte:
“Caro Mr. Grunzer
O seu nome nos foi sugerido por um amigo comum. A nossa organização possui uma missão original que não pode ser descrita por carta, masque lhe poderá ser de imensa utilidade. A nós conviria uma entrevista particular, o mais cedo que o senhor julgar conveniente. Se não obtiver uma resposta sua contrária, dentro dos próximos dias, tomarei a liberdade de procurá-lo em seu escritório.”
Estava assinado, Carl Tucker, Secretário. Uma linha fina ao pé da página, dizia: UMA ORGANIZAÇÃO QUE NÃO VISA AO LUCRO.
A sua primeira reação foi de defesa. Suspeitou de um ataque insidioso à sua carteira. A segunda foi de curiosidade: foi até o seu quarto de dormir e localizou a lista de telefones, mas não encontrou nenhuma organização classificada pelo nome do cabeçalho da carta. Muito bem, Mr. Tucker, pensou com ironia, EU VOU MORDER A ISCA.
Como nenhum chamado viesse nos próximos três dias, a sua curiosidade aumentou. Mas ao chegar sexta-feira, e com a confusão dos assuntos do escritório, esqueceu-se da promessa da carta. O velho organizou uma reunião com o pessoal da seção de produto das padarias. Grunzer sentou-se em frente de Whitman Hayes disposto a descobrir as falhas nas declarações dele. Quase conseguiu pegá-lo uma vez, porém Eckhardt, o diretor da seção de padarias, levantou-se para defender os argumentos de Hayes. Eckhardt só estava há um ano na companhia, mas já tinha evidentemente tomado partido. Gruzer lançou sobre ele um olhar feroz e reservou um lugar para Eckhardt na câmara de ódio de sua mente.
Às três horas, Carl Tucker telefonou:
_ Mr. Grunzer? _ A voz era amistosa, radiante até.
_ Não obtive resposta sua, portanto presumo que não estou lhe importunando telefonando hoje. Há alguma possibilidade de podermos nos encontrar logo mais?
_ Bem, se o senhor puder me dar alguma idéia, Mr. Tucker.
_ Uma risada ressoou.
_ Nós não somos uma organização de caridade, Mr. Grunzer, caso o senhor tenha esta impressão. Nem vendemos nada. Somos mais ou menos, um grupo de serviço voluntário: os nossos sócios somam a mais de mil pretendentes.
_ Para lhe dizer a verdade, nunca ouvi falar de vocês.
_ É claro que não, e esta é uma das vantagens. Penso que compreenderá assim que lhe explicar a nosso respeito. Eu posso chegar ao seu escritório em quinze minutos, a não ser que queira deixar para outro dia.
_ Está bem, Mr. Tucker. O melhor momento para mim é agora mesmo.
_ Ótimo! Estarei logo aí.
Tucker foi pontual. Quando entrou no escritório, Grunzer teve um olhar de desalento para a pasta oficiosa que ele carregava na sua mão direita. Mas sentiu-se melhor quando Tucker, um homem de aspecto espalhafatoso, com sessenta e poucos anos e de traços agradáveis, começou a falar.
_ Foi amável de sua parte ceder-me o seu tempo, Mr. Grunzer. E creia-me não estou aqui para vender-lhe apólices de seguro ou lâmina de barbear. Nem poderia se quisesse: sou um corretor aposentado. No entanto, o assunto que quero discutir é meio – íntimo, por isso tenho que pedir-lhe uma certa indulgência, que me conceda um favor. Posso fechar a porta?
_ Claro – Grunzer disse, intrigado.
Tucker fechou a porta, empurrou a sua cadeira para mais perto e disse:
_ O problema é o seguinte. O que devo dizer deve permanecer no mais absoluto sigilo. Se o senhor comentar sobre a nossa sociedade, de qualquer forma, as conseqüências poderiam ser bastante desagradáveis. De acordo?
Grunzer, franzindo as sobrancelhas, fez que sim com a cabeça.
_ Ótimo! _ O visitante abriu sua pasta e retirou um manuscrito grampeado.
_ Bem, a sociedade preparou este “falatório” sobre a nossa filosofia fundamental, mas eu não vou lhe aborrecer com isso. O senhor pode não estar absolutamente de acordo com a nossa primeira regra, e eu gostaria de sabê-lo já.
_ O que quer dizer, a primeira regra?
_ Bem... – Tucker corou ligeiramente. – Falando de uma maneira crua, Mr. Grunzer, a sociedade de Ação Conjunta acredita que – algumas pessoas devem ser mortas. – Levantou os olhos rapidamente como para avaliar a reação imediata. – Pronto, disse a coisa – sorriu, meio aliviado. – Alguns dos nossos membros não acreditam na minha “abordagem” direta; acham que o assunto tem de ser entabulado com mais discrição. Mas, francamente, eu tenho obtido resultados excelentes com essa maneira meio crua. Como se sente em relação ao que eu disse, Mr. Grunzer?
_ Não sei. Acho que nunca pensei muito sobre isso.
_ O senhor esteve na guerra, Mr. Grunzer?
_ Estive. Na Marinha. – Grunzer coçou o queixo. – Acho que eu pensava, naquele tempo, que os japoneses deviam morrer. Imagino que existiam outos casos. Quero dizer, peguemos, por exemplo, a pena de morte, eu acredito nela. Assassinos, artistas homossexuais, tarados, o diabo, eu realmente acho que eles devem morrer.
- Ah, - disse Tucker, - então o senhor está inteiramente de acordo com a nossa primeira regra. É uma questão de categoria, não é?
_ Acho que sim.
_ Perfeito. Então agora lhe farei uma outra pergunta brusca. O senhor – pessoalmente - alguma vez desejou que alguém morresse? Quero dizer, um desejo real, profundo e sem complicações por alguém que o senhor acha que não deve viver. Já teve?
_ Claro – disse Grunzer com franqueza. - Acho que sim.
_ Existem momentos, na sua opinião, quando julga que a retirada de alguém dessa terra possa ser uma coisa benéfica?
Grunzer sorriu.
_ Ei, que negócio é esse? Vocês são da Máfia ou de algo semelhante?
_ De jeito nenhum, Mr. Grunzer, de jeito nenhum. Não há absolutamente nenhum aspecto criminoso nos nossos objetivos nem nos nossos métodos. Admito sermos uma “sociedade secreta”, mas não somos a Mão Negra. O senhor ficaria impressionado com o gabarito dos nossos associados; há gente até da Justiça. Mas que tal contar-lhe como a sociedade foi formada?
_ Ela começou com dois homens; no momento não posso revelar s seus nomes. O ano foi o de 1949. Um dos homens era advogado e trabalhava no escritório do promotor público. O outro era um psiquiatra do Estado. Ambos estavam envolvidos num julgamento, que causou bastante sensação, de um homem acusado de um crime horroroso contra dois garotinhos. Na opinião deles, o homem era indubitavelmente culpado, porém um advogado de defesa, com um poder de persuasão fora do comum, e um júri muito sugestionável, absolveram-no. Quando o chocante veredicto foi anunciado, esses dois, que além de colegas, eram também amigos, sentiram-se duramente atingidos e furiosos. Eles perceberam que um grande erro fora cometido, e que eram impotentes para remediá-lo...
Mas eu devo explicar algo a respeito desse psiquiatra. Durante anos, ele havia realizado estudos num campo que chamarei de psiquiatria antropológica. Um desses estudos se relacionava com as práticas vudu de certos grupos, o haitiano em particular. Você provavelmente já ouviu falar bastante do vudu, ou Obeá, como chamam na Jamaica, mas não vou me aprofundar no assunto para evitar que pense que nós praticamos ritos tribalísticos e espetamos alfinetes em bonecos... mas a principal característica desse estudo foi o surpreendente sucesso de algumas práticas estranhas. Naturalmente, como cientista, ele rejeitou a explicação sobrenatural e procurou uma científica. E evidentemente, só havia uma resposta. Quando o feiticeiro vudu decretava a punição ou morte de um malfeitor, era a própria convicção do malfeitor a respeito da eficácia o desejo-de-morte, sua própria fé na força do vudu, a razão pela qual o desejo eventualmente se realizava. Algumas vezes, era um processo orgânico – seu corpo reagia psicossomaticamente à maldição vudu, e adoecia e morria. Outras vezes, morria por “acidente” – um acidente provocado pela crença secreta de que uma vez amaldiçoado, tinha de morrer. Estranho, não é?
_ Sem dúvida – disse Grunzer, com a boca seca.
_ Seja como for, nosso amigo, o psiquiatra, começou a se perguntar em voz alta se alguém dentre nós avançou na trilha da civilização a ponto de não estar sujeito a esse tipo de punição “sugerida”. Propôs uma experiência no homem de sua escolha, só para ver.
O que fizeram foi simples – disse. – Foram ver esse criminoso, e lhe anunciaram suas intenções. Disseram-lhe que iam desejar sua morte. Explicaram como e porquê o desejo se realizaria, e enquanto ele ria de tudo, viram a expressão de medo supersticioso atravessar o rosto dele. Prometeram a ele que constantemente, todo dia, estariam desejando a sua morte, até o momento quando ele não pudesse conter a onda mística que faria o desejo se tornar uma realidade.
Grunzer estremeceu de repente, e cerrou o punho.
_ Isso é bastante tolo – disse suavemente.
_ O homem morreu de ataque cardíaco dois meses depois.
_ Claro. Eu sabia que você ia dizer isso. Mas existe uma coisa chamada coincidência.
_ De novo?
_ É, de novo. Não vou contar quem foi a vítima, mas desta vez eles recrutaram o apoio de quatro associados. Esse pequeno grupo de pioneiros foi o núcleo da sociedade por mim representada.
Grunzer balançou a cabeça.
_ E você diz que existem mil, agora?
_É, mais de mil, no país inteiro. Uma sociedade cuja única função é desejar a morte de pessoas. De início, a participação era puramente voluntária, mas agora nós temos um sistema. Cada novo membro da Sociedade de Ação Unificada adere na base de propor uma vítima potencial. Naturalmente, a Sociedade investigam para saber se a vítima merece esse destino. Se for um bom caso, todos os membros começam a desejar a sua morte. Uma vez realizado o trabalho, naturalmente, cada novo membro é obrigado a tomar parte em toda futura ação conjunta. Isso e uma pequena taxa anual, é o preço de ser membro.
Carl Tucker sorriu.
_ E caso você pense que eu não estou falando a sério, Mr. Grunzer – abriu a pasta novamente, desta vez tirando um volume de capa azul e espessura de catálogo telefônico.
_ Eis aqui os fatos. Até hoje, duzentas e vinte e nove vítimas foram sindicadas pelo nosso comitê de seleção. Dentre elas, cento e quatro já morreram. Coincidência, Mr. Grunzer?
Quanto aos cento e vinte e cinto restantes – quem sabe, isso indica que nosso método não é infalível. Somos os primeiros a admiti-lo. Mas novas técnicas estão sendo criadas a cada instante. Eu lhe garanto, Mr. Gruzner, nós vamos pegar eles todos.
Folheou o livro de capa Azul.
_Nossos membos estão relacionados neste livro, Mr. Grunzer. Eu lhe permito chamar ao telefone um, dez, ou cem dentre eles. Faça a ligação e veja se não estou dizendo a verdade.
Jogou o manuscrito na mesa de Grunzer. Aterrissou no mata-borrão com um barulho surdo. Gruzer o levantou.
_Bem? Disse Tucker. – Quer chamá-los?
_Não. – Molhou os lábios. – Aceito sua palavra a respeito, Mr. Tcker. É incrível, mas posso imaginar como funciona. Só saber que mil pessoas estão desejando amorte da gente deve bastar para perturbar a pessoa de uma maneira terrível. – Seus olhos se contraíram. – Mas há uma pergunta. Você falou de uma “pequena” taxa.
_ É de cinqüenta dólares, Mr. Grunzer.
_ Cinquenta, hem? Cinquenta vezes mil, é uma boa quantia, não é?
_ Posso lhe garantir que a sociedade não é movida pelo lucro. Não esse tipo de lucro. As contas só cobrem as despesas, o trabalho do comitê, pesquisa, e coisas assim. Isso é compreensível, não é?
_ Acho que sim, murmurou.
_ Então, você acha que interessa?
Grunzer virou a cadeira na direção da janela.
Meu Deus!, pensou.
Mas como? Se o desejo pudesse matar, ele teria assassinado dezenas de pessoas durante a vida. Mesmo assim, aqui era diferente. Seus desejos eram sempre coisas secretas onde ninguém pudesse advinhar. Mas esse método era diferente, mais prático, mais aterrorizante. Sim, podia vera a coisa funcionando. Podia visualizar mil pensamentos queimando com o único desejo de matar, ver a vítima rindo da descrença no início, e depois lentamente, gradualmente, seguramente, sucumbindo à cadeia de medo que pudesse funcionar, que tantos pensamentos mortíferos pudessem emitir um raio místico, maldoso, capaz de destruir a vida.
Subitamente, como um fantasma, viu o rosto rude de Whitman Hayes na sua frente.
Voltou-se e disse:
_ Mas a vítima deve saber de tudo isso, não é? Tem de saber que a sociedade existe, e já foi bem sucedida, e está desejando a sua morte? Isso é essencial, não é?
_ Absolutamente essencial – Tucker disse, repondo os manuscritos na pasta. –Você tocou no ponto principal, Mr. Grunzer. A vítima deve ser informada, e foi exatamente isso que eu fiz. – Olhou o relógio. – O desejo de sua morte começou ao meio-dia de hoje. A sociedade começou a trabalhar. Sinto muito.
_ Na porta, voltou-se e tirou o chapéu num cumprimento de despedida.
_ Adeus, Mr. Grunzer -, disse.

Extraído de Livro de Cabeceira do Homem, ano 2, vol. 8, Ed. Civilização Brasileira, Rio: 1968.

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