Translate

03 junho 2011

DIREITO DE VIZINHANÇA E PRINCÍPIO DE TOLERÂNCIA PARA VIVER EM PAZ


O blog publica às sextas-feiras decisões da Primeira Turma do Colegiado Recursal dos Juizados Especiais de Vitória, no biênio 2004/2006, período em que tive a honra de integrar aquele dinâmico sodalício. Não há compromisso de publicação da integralidade dos julgados, até mesmo por questão de espaço, e nem com a identificação das partes, vez que interessa apenas revelar alguns temas interessantes que são debatidos no cotidiano dos Juizados Especiais, os quais inegavelmente deram uma nova dinâmica ao judiciário brasileiro. E de tal sorte que cada vez mais são ampliadas suas competências. Pelo andar da carruagem, em breve o que era especial passará a ser comum, o que faz alguns preverem em futuro próximo o sepultamento das varas cíveis comuns, onde ou se consegue um provimento cautelar ou antecipatório ou não se vê resultado concreto em pelo menos longos anos de litígio.

Hoje cuida-se de aplicação do direito de vizinhaça, conforme segue:
RECURSO INOMINADO Nº 7.517/05
ACÓRDÃO

EMENTA: RECURSO INOMINADO. DIREITO DE PROPRIEDADE. DIREITO DE VIZINHANÇA. CONSTRUÇÃO DE ESCADA. CONSTRUÇÃO SEGURA. INCOMPROVAÇÃO DE DESASSOSSEGO E QUEBRA DE PRIVACIDADE. COSTUME DO LUGAR.TOLERÂNCIA. 
 
1.- É DADO DA REALIDADE BRASILEIRA, SENDO CORRETA A PERCEPÇÃO DO MAGISTRADO SENTENCIANTE, QUE EM CERTOS BAIRROS DE PERIFERIA DAS GRANDES CIDADES, MUITAS CONSTRUÇÕES SÃO FEITAS SEM OBSERVÂNCIA DO RIGORISMO LEGAL, CONSTITUINDO UM QUASE-CONDOMÍNIO, PREVALECENDO O BOM SENSO E A TOLERÂNCIA RECÍPROCA QUE PERMITEM UMA CONVIVÊNCIA PACÍFICA.
2.- ASSIM, A CONSTRUÇÃO DE ESCADA NOS LIMITES DA PROPRIEDADE NÃO ATENTA CONTRA O DIREITO DE PROPRIEDADE DO VIZINHO, MORMENTE SE NÃO AMEAÇA RUÍNA, SENDO INCABÍVEL SUA DEMOLIÇÃO, PENA DE IMPOSSILITAR O ACESSO À DEPENDÊNCIA DE NÍVEL SUPERIOR, POR INTERPRETAÇÃO DO DISPOSTO NO ART. 6º DA LJE E ARTIGO 1277 E SEGUINTES DO CÓDIGO CIVIL EM VIGOR.
3.- NESSE CASO, TEM O LINDEIRO A FACULDADE DE EDIFICAR NOS LIMITES DE SEU TERRENO PARA VEDAR EVENTUAL DEVASSA DE SUA RESIDÊNCIA.
4.- RECURSO IMPROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos, ACORDAM os Juízes da Primeira Turma Recursal do Colegiado Recursal dos Juizados Especiais, à unanimidade, conhecer do recurso para negar-lhe provimento, nos termos do voto do Relator que deste passa a fazer parte integrante.
Vitória, ES, de dezembro de 2005.

R E L A T Ó R I O

O autor compareceu pessoalmente perante o 2º Juizado Especial Cível de Vitória, alegando que é vizinho de C. DA SILVA e que este construiu uma escada junto ao muro divisório, a qual está tirando a privacidade e a segurança de sua família, razão pela qual requereu a retirada da escada, atribuindo à causa o valor de R$ 2.000,00.
A r. sentença de fls. 37, julgou improcedente o pedido, com fundamento no art. 6º da LJE, ante as circunstâncias objetivas e subjetivas sindicáveis de um fato consumado, devendo as partes encontrar meios diversos para que haja uma convivência pacífica entre as mesmas.
Inconformado, o autor interpôs recurso inominado a fls. 42/46, transcrevendo artigos do Código Civil sobre ato ilícito, obrigações e direito de propriedade e pleiteando provimento ao “apelo”, para seja determinada a demolição da escada construída junto ao muro divisório das partes, fato que está propiciando falta de segurança, privacidade e sossego ao apelante e sua família, seguindo o apelado os parâmetros legais para as construções que entender, bem como seja condenado à indenização, no valor da causa, por ser de direito e de justiça.
Contra-razões a fls. 53/57, aduzindo que a foto de fls. 31 demonstra que existem várias residências próximas umas das outras, salientando que o requisito privacidade não foi observado pelos moradores daquela região e se tivesse que demolir a escada não teria como ter acesso ao andar superior que construiu com tanta dificuldade, propugnando pela manutenção do julgado, com a condenação do apelante nas custas e honorários advocatícios.
É o relatório.

V O T O

Verificando que foram atendidos os pressupostos de admissibilidade, sobremaneira diante da certidão de fls. 50/verso, conheço do recurso.                                              

Versam os autos sobre direito de vizinhança, tendo em vista a construção de uma escada junto ao muro que divide as casas dos envolvidos, no bairro Bonfim, em Vitória.

Alega o recorrente que a construção é irregular e atenta contra a segurança, privacidade e sossego de sua família.

O Código Civil/2002, cuida da matéria em seu título III, do direito de propriedade, capítulo V, dos direitos de vizinhança, em seus artigos 1277 a 1281, prevendo-se a demolição apenas quando atente contra a segurança, ou nas sábias palavras da lei, ameace ruína.

No que respeita à segurança, o documento de ART – Anotação de Responsabilidade Técnica do CREA-ES, de fls. 06, elaborado por engenheiro civil, atesta que a obra encontra-se em boas condições técnicas, podendo depois de concluída ser habitada. Portanto, não foi constatado qualquer risco que sugerisse a demolição de tal escada.

No que pertine à privacidade e ao sossego, também não produziu qualquer prova o autor nesse sentido.

As fotos acostadas aos autos apenas confirmam que as construções, tanto a do recorrente e recorrido quanto as demais casas vizinhas, embora individuais, não guardam a distância regulamentar. As casas são contíguas, constituindo como que um condomínio.

A construção da escada foi feita dentro do terreno do recorrido, isto é, nos limites de sua propriedade, e se há quebra de privacidade, tal ocorre para ambos, assim para com os demais, como bem analisado e decidido na sentença recorrida, com base nas provas carreadas aos autos. Aliás, pelo princípio da livre apreciação da prova, vigente no ordenamento jurídico pátrio (art. 131 do CPC), outorga ao juiz o poder de examinar livremente os elementos probatórios que lhe são apresentados, concluindo conforme a interpretação que faz da lei e sua livre convicção.

Penso que aqui não se trata de aplicação pura e simples da lei, porquanto, ao que tudo indica, as construções são feitas, na maioria das vezes, de forma irregular mesmo, sabendo quem ali vive que é necessária uma certa tolerância recíproca para que a convivência comunitária seja pacífica e amistosa.

CLÓVIS BEVILÁQUA, Direito das Coisas, Rio, Forense, 1956, preleciona que para se determinar o uso normal da propriedade, imprescindível conhecer-se e aplicar-se o costume do lugar e constatar-se a extensão do prejuízo causado.

Diz textualmente que : "Se o incômodo excede ao que é razoavelmente tolerável, segundo as circunstâncias, haverá mau uso da propriedade. Não havendo medida precisa para o direito do vizinho queixoso, o juiz decidirá segundo o seu justo critério, quando o caso não se mostrar suficientemente claro". (Sublinhei).

De outro lado, CARVALHO SANTOS ministra que “O conceito de mau uso da propriedade se aufere pelo incômodo excessivo, capaz de causar prejuízo. É uma questão de fato entregue ao prudente arbítrio do Juiz.” (Cf. CARVALHO SANTOS, CPC, IV/252).(Sublinhei).

Ora, no caso, o douto magistrado sentenciante penetrou no âmago da questão, assentando a coexistência pacífica em certos bairros de periferia de construções que não seguem o rigor das normas legais.

Muito embora tenha arrimado seu “decisum” nas disposições do art. 6º da LJE, o que está correto, pode-se ainda acrescer, por interpretação "a contrario sensu" o disposto no artigo 1277 e seu parágrafo único, do Código Civil em vigor, “verbis”:

"Art. 1277. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de              fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à  saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade  vizinha.
Parágrafo único. Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza  da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que  distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança".

Ademais, sempre haverá possibilidade de resolução amigável para questões dessa natureza, não se olvidando que o eventual prejudicado poderá, usando seu direito de propriedade e no limite de seu terreno, nele edificar para preservar sua privacidade, conforme orienta a jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça, como se infere, por mera exemplificação, do didático aresto abaixo transcrito:

Processo REsp 34864 / SP ; RECURSO ESPECIAL 1993/0012712-8
Data da Publicação/Fonte: DJ 04.10.1993 p. 20557- LEXSTJ vol. 54 p. 302 RDC vol. 75 p. 158
Ementa
- DIREITOS DE VIZINHANÇA. ARTIGOS 573, PAR-2. E 576 DO CODIGO CIVIL.
- VENCIDO O PRAZO DE ANO E DIA ESTIPULADO NO ART. 576 DO CODIGO CIVIL, O CONFINANTE PREJUDICADO NÃO PODE EXIGIR QUE SE DESFAÇA A JANELA, SACADA, TERRAÇO OU GOTEIRA, MAS NÃO FICA IMPEDIDO DE CONSTRUIR NO SEU TERRENO COM DISTANCIA MENOR DO QUE METRO E MEIO, AINDA QUE A CONSTRUÇÃO PREJUDIQUE OU VEDE A CLARIDADE DO PREDIO VIZINHO.
- AUSENCIA DE SERVIDÃO.
Tudo ponderado, nego provimento ao recurso e, em conseqüência, condeno o recorrente no pagamento das custas processuais e honorários advocatícios em 15% sobre o valor da causa, observadas as disposições do artigo 12 da Lei 1.060/50.

Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente artigo!
Traz com propriedade informações úteis relativas ao Direito de Vizinhança, bem como levanta questão relativa a liberdade do juiz na apreciação das provas e da sua decisão dentro das regras da experiência.