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02 dezembro 2010

DIVÓRCIO, O RECRUDESCIMENTO DO REPÚDIO-2

Parte 2/4


Eduardo Gesse
Juiz de Direito Titular da 2ª Vara da Família e das Sucessões de Presidente Prudente/SP; Especialista em Direito de Família e Docente do curso de Direito das Faculdades Integradas “Antonio Eufrásio de Toledo”, de Presidente Prudente/SP.

Matheus Pereira Franco
Advogado em Presidente Prudente/SP.


2 O Divórcio e a Emenda Constitucional n. 66 de 13 de Julho de 2010 e Suas Consequências
Como já observado, no que concerne ao divórcio, a Constituição cidadã inovou o ordenamento jurídico ao modificar o lapso temporal e não recepcionar algumas exigências contempladas na Lei 6.515/77 para a decretação do divórcio, como v.g., a necessidade de prévia ou simultânea partilha de bens.
Agora, depois da Emenda Constitucional n. 66, de 13 de julho de 2010, o único requisito necessário para que o divórcio seja levado a efeito é a existência do casamento válido. Não há mais nenhum outro.
Isso porque, com as modificações que foram introduzidas pela recente Emenda Constitucional n. 66, o art. 226, § 6º, da Constituição Federal passou a dispor que:
"Art. 226, § 6º O casamento pode ser dissolvido pelo divórcio."
Em suma: para se divorciar, basta estar casado, de sorte que o divórcio transformou-se num direito potestativo dos cônjuges, o qual pode ser exercido em conjunto ou unilateralmente, por cada um deles.
Vale dizer: é possível nos dias atuais, logo após a celebração do matrimônio, que um dos cônjuges (ou ambos) ajuíze ação de divórcio sem expor as razões por que pretende dar fim ao casamento e obter sentença de mérito que lhe seja favorável.
2. 1. Do Fim da Separação em Nosso Ordenamento Jurídico
Vimos que para a decretação do divórcio basta haver casamento válido e a manifestação de vontade de ambos os cônjuges ou de qualquer um deles de por fim aos vínculos do casamento. Nada mais se exige.
Cabe aqui, pois, a seguinte indagação: a dissolução da sociedade conjugal por intermédio da separação ainda existe em nosso ordenamento jurídico?
Poder-se-ia opinar pela resposta afirmativa, argumentando que a emenda constitucional não tratou da separação judicial ou da administrativa, nem diretamente e nem por via oblíqua, de maneira que houve a recepção dos dispositivos legais que tratam delas (as separações).
Aliada a recepção supramencionada, poder-se-ia acrescentar que os cônjuges têm o direito subjetivo de por fim apenas à sociedade conjugal, de modo que podem, em momento subsequente, revivificar o matrimônio em sua plenitude, utilizando-se da faculdade a eles concedida pelo artigo 1.577 do Código Civil 8.
Nada obstante a sedução desses argumentos, não nos parece que eles se harmonizem com o melhor direito.
Com efeito. O objetivo do legislador, sem dúvida, por intermédio da Emenda Constitucional nº. 66, foi o de acabar com o sistema escalonado, binário ou dualista que era imposto aos cônjuges para se divorciarem.
Seu escopo foi tornar menos sofrido, menos oneroso e mais célere o divórcio e o fez de uma maneira radical, pois o divórcio hoje, repise-se, é um direito potestativo, como o era na Roma antiga, nas hipóteses em que ambos os cônjuges manifestavam sua vontade nesse sentido.
No Brasil atual, então, o instituto do divórcio é ainda mais liberal, porquanto a vontade de um dos cônjuges se mostra de per si suficiente para que se ponha um fim definitivo ao casamento válido.
Pode-se, nesse contexto, dizer que houve o renascimento do repúdio, agora de modo ainda mais amplo porque, qualquer dos cônjuges, pode pleitear o divórcio com êxito sem a necessidade de ser comprovada a preexistência de quaisquer das infrações aos deveres do matrimônio.
Dando cores vivas à intenção legislativa, o Deputado Sérgio Barradas Carneiro 9, defendeu a PEC 37:
"Não mais se justifica a sobrevivência da separação judicial, em que se converteu o antigo desquite. Criou-se, desde 1977, com o advento da legislação do divórcio, uma duplicidade artificial entre dissolução da sociedade conjugal e dissolução do casamento, como solução de compromisso entre divorcistas e antidivorcistas, o que não mais se sustenta. Impõe-se a unificação no divórcio de todas as hipóteses da separação dos cônjuges, sejam litigiosos ou consensuais. A submissão a dois processos judiciais (separação judicial e divórcio por conversão) resulta em acréscimos de despesas para o casal, além de prolongar sofrimentos evitáveis. Por outro lado, essa providência salutar, de acordo com valores da sociedade brasileira atual, evitará que a intimidade e a vida privada dos cônjuges e de suas famílias sejam revelados e trazidos aos espaço público dos tribunais, como todo o caudal de constrangimentos que provocam, contribuindo para o agravamento de suas crises e dificultando o entendimento necessário para a melhor solução dos problemas decorrentes da separação. Levantamentos feitos das separações judiciais demonstram que a grande maioria dos processos são iniciados ou concluídos amigavelmente, sendo insignificantes os que resultaram em julgamentos de causas culposas imputáveis ao cônjuge vencido. Por outro lado, a preferência dos casais é nitidamente para o divórcio que apenas prevê a causa objetiva da separação de fato, sem imiscuir-se nos dramas íntimos. Afinal, qual o interesse público relevante em se investigar a causa do desaparecimento do afeto ou do desamor? O que importa é que a lei regule os efeitos jurídicos da separação, quando o casal não se entender amigavelmente, máxime em relação à guarda dos filhos, aos alimentos e ao patrimônio familiar. Para tal, não é necessário que haja dois processos judiciais, bastando o divórcio amigável ou judicial."
Como se vê, a "mens legislatoris" não deixa dúvidas de que o sistema escalonado, para dissolver os vínculos matrimoniais, chegou ao fim com a Emenda do Divórcio e, por corolário, não mais subsiste em nosso ordenamento jurídico a separação judicial ou extrajudicial.
Deveras. A aludida Emenda Constitucional, ao suprimir a necessidade da prévia separação jurídica ou de fato para os cônjuges se divorciarem, alterando também neste ponto o § 6º do artigo 226 da Lei Magna, deixa claro que inexiste espaço para as separações jurídicas em nosso Direito.
Ora, se o objetivo foi o de facilitar o fim dos vínculos matrimoniais possibilitando o divórcio injustificado, que doravante se funda tão só na vontade de um ou de ambos os cônjuges, qual seria a razão lógica, fática ou jurídica para a manutenção das separações alhures mencionadas? Nenhuma. É que não se pode olvidar que o divórcio encerra não só a sociedade conjugal, mas também os demais vínculos matrimoniais.
Nessa linha de raciocínio, José Fernando Simão 10 ensina:
"Com a mudança constitucional e o desaparecimento do instituto da separação de direito, o divórcio será, ao lado da morte e da invalidade, a forma de se chegar ao fim do casamento (o que inclui o vínculo e a sociedade conjugal) e ele se dará de duas possíveis formas: divórcio consensual ou litigioso."
Trilhando o mesmo rumo, Paulo Luiz Netto Lobo 11, com seu descortino ímpar, afirma:
"É possível argumentar-se que a separação judicial permaneceria enquanto não revogados os artigos que dela tratam no Código Civil, porque a nova redação do § 6º do art. 226 da Constituição não a teria excluído expressamente. Mas esse entendimento somente poderia prosperar se arrancasse apenas da interpretação literal, desprezando-se as exigências de interpretação histórica, sistemática e teleológica da norma.
Como se demonstrou, a inserção constitucional do divórcio evoluiu da consideração como requisito prévio ao divórcio até sua total desconsideração. Em outras palavras, a Constituição deixou de tutelar a separação judicial. A consequência da extinção da separação judicial é que concomitantemente desapareceu a dissolução da sociedade conjugal que era a única possível, sem dissolução do vínculo conjugal, até 1977. Com o advento do divórcio, a partir dessa data e até 2009, a dissolução da sociedade conjugal passou a conviver com a dissolução do vínculo conjugal, porque ambas recebiam tutela constitucional explícita. Portanto, não sobrevive qualquer norma infraconstitucional que trate da dissolução da sociedade conjugal isoladamente, por absoluta incompatibilidade com a Constituição, de acordo com a redação atribuída pela PEC do Divórcio. A nova redação do § 6º do artigo 226 da Constituição apenas admite a dissolução do vínculo conjugal.
No que respeita à interpretação sistemática, não se pode estender o que a norma restringiu. Nem se pode interpretar e aplicar a norma desligando-a de seu contexto normativo. Tampouco, podem prevalecer normas do Código Civil ou de outro diploma infraconstitucional, que regulamentavam o que previsto de modo expresso na Constituição e que esta excluiu posteriormente. Inverte-se a hierarquia normativa, quando se pretende que o Código Civil valha mais que a Constituição e que esta não tenha força revocatória suficiente.
No direito brasileiro, há grande consenso doutrinário e jurisprudencial acerca da força normativa própria da Constituição. Sejam as normas constitucionais regras ou princípios não dependem de normas infraconstitucionais para estas prescreverem o que aquelas já prescreveram. O § 6º do art. 226 da Constituição qualifica-se como norma-regra, pois seu suporte fático é precisamente determinado: o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio, sem qualquer requisito prévio, por exclusivo ato de vontade dos cônjuges."
Maria Berenice Dias 12 e Pablo Stolze Gagliano 13 afirmam:
"Ao ser dada nova redação ao art. 226, § 6º da Constituição Federal, desaparece a separação e eliminam-se prazos e a perquirição de culpa para dissolver a sociedade conjugal. Qualquer dos cônjuges pode, sem precisar declinar causas ou motivos, e a qualquer tempo, buscar o divórcio. A alteração, quando sancionada, entra imediatamente em vigor, não carecendo de regulamentação. Afinal, o divórcio está regrado no Código Civil, e a Lei do Divórcio manda aplicar ao divórcio consensual o procedimento da separação por mútuo consentimento (art. 40, § 2º). Assim, nada mais é preciso para implementar a nova sistemática.
Em síntese, a Emenda aprovada pretende facilitar a implementação do divórcio no Brasil e apresenta dois pontos fundamentais: a) extingue a separação judicial; b) extingue a exigência de prazo de separação de fato para a dissolução do vínculo matrimonial. (...) A extinção da separação judicial é medida das mais salutares.(...) É de clareza meridiana, estimado leitor, que o divórcio é infinitamente mais vantajoso do que a simples medida de separação. Sob o prisma jurídico, com o divórcio, não apenas a sociedade conjugal é desfeita, mas o próprio vínculo matrimonial, permitindo-se novo casamento; sob o viés psicológico, evita-se a duplicidade de processos – e o strepitus fori – porquanto pode o casal partir direta e imediatamente para o divórcio; e, finalmente, até sob a ótica econômica, o fim da separação é salutar, pois, com isso, evitam-se gastos judiciais desnecessários por conta da duplicidade de procedimentos. (...) Nessa linha, a partir da promulgação da Emenda, desapareceria de nosso sistema o instituto da separação judicial e toda a legislação, que o regulava, sucumbiria, por consequência, sem eficácia, por conta de uma inequívoca não-recepção ou inconstitucionalidade superveniente."
Questão que, sem dúvida, se encontra dentre as mais difíceis de serem solucionadas é a da possibilidade ou não de se discutir culpa em sede de divórcio.
É incontroverso que para se divorciar, como já afirmado inúmeras vezes, basta estar casado e a vontade manifesta de por fim ao matrimônio. Nada mais.
Ora, a consagração do Princípio da Autonomia da Vontade somado à desnecessidade de se invocar causas objetivas e, notadamente, as subjetivas para fundamentar o pedido de divórcio, implica dizer que o divórcio, de per si, pode ser decretado independentemente da indagação de culpa; não cabendo a discussão da culpa, portanto, quando a lide tiver por finalidade exclusiva o divórcio.
Todavia, não se deve concluir, de modo açodado, que a culpa deixará de ser debatida em qualquer circunstância. Isso conduziria a iniquidades inimagináveis.
Por exemplo: uma mulher jovem casada com abastado empresário — que com passar dos anos ou por não ter sido agraciado pela natureza e não tenha lá dotes físicos belos ou pelo menos apreciáveis aos olhos femininos — e ela venha a se apaixonar pelo seu "personal trainer", pobre e recém formado e que, após um caso amoroso com este, resolvesse fazer uso do divórcio injustificado e pleiteasse, cumulativamente, o pagamento de alimentos em seu favor.
Seria razoável impedir que o marido – fundado nos atos dela que caracterizam injúria grave – pudesse lutar para se livrar de eventual obrigação de pagar para a mulher adúltera alimentos civis? Como negar-lhe esse direito?
Nessa mesma esteira, seria possível se tolher os direitos da mulher cujo marido lhe transmitiu SIDA (síndrome da imunodeficiência adquirida), manejar ação de divórcio cumulada com indenização e discutir, no mesmo processo, a culpa do marido pelos prejuízos materiais e morais que a transmissão da moléstia infecciosa, ainda incurável, lhe proporcionou e lhe proporcionará? Evidente que a resposta negativa se impõe.
Não impressionam os argumentos de que se discutir culpa na ação de divórcio implicaria invasão de privacidade e grave ofensa ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
É que nenhum direito pode ser tido como absoluto e se no verso temos a privacidade de um cônjuge a ser protegida, no anverso temos que o consorte também merecerá proteção e, sobretudo, deverá ter garantido o seu direito a um processo justo.
A dignidade de ambos merece proteção, de sorte que outro entendimento poderá conduzir à irresponsabilidade total nas relações matrimoniais, premiando o torto, o desonesto, em detrimento do cônjuge correto e leal, o que seria, e efetivamente é, ilegal e imoral.
De igual forma, é inviável que se proíba a cumulação de pedidos (divórcio e alimentos ou divórcio e reparação de danos). É que a cumulação de pedidos é perfeitamente possível e, assim sendo, abrem-se ensanchas para a discussão da culpa.
Com efeito, de conformidade com o disposto no artigo 292 do Código de Processo Civil, "in verbis":
"Art. 292 É permitida a cumulação, num único processo, contra o mesmo réu, de vários pedidos, ainda que entre eles não haja conexão.
§ 1º São requisitos da admissibilidade da cumulação:
I – que os pedidos sejam compatíveis entre si;
II – que seja competente para conhecer deles o mesmo juízo;
III – que seja adequado para todos os pedidos o tipo de procedimento.
§ 2º Quando, para cada pedido, corresponder tipo diverso de procedimento, admitir-se-á a cumulação se o autor empregar o procedimento ordinário."
Nesse contexto, deverá ser admitida, também, a reconvenção, não para pleitear o divórcio, mas para impedir, v.g., o cônjuge reconvindo de manter o sobrenome do reconvinte, deste ter de pagar àquele alimentos civis ou obter indenização e enfim, para se discutir questões periféricas e se estas tiverem como pressuposto a culpa em sentido lato (dolo e culpa em sentido estrito) o debate e a perquirição dela será, em nosso juízo, inevitável.
Notas dos Autores:
8 - Art. 1577. “Seja qual for a causa da separação judicial e o modo como esta se faça, é lícito aos cônjuges restabelecer, a todo tempo, a sociedade conjugal, por ato regular em juízo”.
9 - Justificativa ao Projeto de Emenda Constitucional 33/2007, que se transformou na EC 66/2010, apresentada pelo Deputado Sérgio Barradas Carneiro, disponível em http://www.ibdfam.org.br/_img/artigos/PEC%2033_2007%20Div%C3%B3rcio.pdf.
10 - SIMÃO, José Fernando. A PEC do Divórcio. A Revolução do Século em Matéria de Direito de Família. 20 de outubro de 2010. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=652. Acesso em 08.08.2010, às 16h22min.
11 - LOBO, Paulo Luiz Netto. Divórcio Alteração Constitucional e suas Consequências. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=622. Acesso. 22.07.2010, às 14h47min.
12 - DIAS, Maria Berenice. Divórcio já. Conteúdo Jurídico. 10 de julho de 2010. Disponível em: http://www.conteudojuridiuco.com.br/?colunas&colunista=152_Maria_Dias&ver=674>. Acesso em 22.07.2010, às 14h30min.
13GAGLIANO, - Pablo Stolze. A nova emenda do divórcio. Disponível em http://jus.uol.com.br/revista/texto/16969/a-nova-emenda-do-divorcio Acesso em 22.07.2010, às 15h30min.

Extraído de Editora Magister/doutrina

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