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06 julho 2010

OS JUIZADOS ESPECIAIS DA FAZENDA PÚBLICA - 1

Parte 1/3



Humberto Theodoro Júnior

Advogado; Professor Titular Aposentado da Faculdade de Direito da UFMG; Desembargador Aposentado do TJMG; Membro da Academia de Direito de Minas Gerais, do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, do Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro, do Instituto Brasileiro de Direito Processual, do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual e da International Association of Procedural Law.


RESUMO: A Lei nº 12.153/09 determinou a criação dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, como órgãos da Justiça Comum e integrantes do sistema já existente dos Juizados Especiais e, subsidiariamente, são regidos pelas disposições do CPC, da Lei nº 9.099/95 e da Lei nº 10.259/01. Como critério geral a observar na definição da competência do Juizado Especial da Fazenda Pública está basicamente o pequeno valor da causa, mas se trata não só de um juízo de pequenas causas, mas também de causas de menor complexidade, devendo as duas condicionantes serem observadas cumulativamente. O Juizado Especial da Fazenda Pública será presidido por um juiz togado, auxiliado por conciliadores e juízes leigos. A presença destes decorre de uma programação constitucional traçada com o nítido propósito de realizar uma justiça coexistencial, onde a tônica se dê sobre a conciliação, a economia processual e a informalidade. Contudo, a sentença do juiz leigo é sempre ad referendum do juiz togado, a quem a lei reserva a última palavra no julgamento da causa. Sendo que, salvo no caso de medidas cautelares e antecipatórias, não cabe recurso contra decisões interlocutórias. Quando recorrível, a decisão interlocutória desafiará agravo de instrumento, observado o procedimento previsto no CPC para essa modalidade recursal. Há regras especiais na Lei nº 12.153, que disciplinam o cumprimento da sentença ou do acordo, nos processos dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, fazendo a necessária diferenciação entre a efetivação das obrigações de fazer, não fazer, entregar coisa certa e de prestar quantia certa (arts. 12 e 13).

PALAVRAS-CHAVE: Juiz Leigo. Advogado. Competência. Obrigação de Fazer. Súmula Vinculante.

1 Introdução

Ao traçar as regras de organização do Poder Judiciário, a Constituição de 1988 determinou que a União e os Estados deveriam criar Juizados Especiais providos de juízes togados e leigos, com competência para "a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade" (art. 98, I). No próprio dispositivo constitucional, ficou determinado que o procedimento a observar nesses Juizados Especiais teria de ser oral, sumaríssimo e desvinculado da hierarquia recursal dos tribunais comuns de segundo grau, cabendo à lei disciplinar as hipóteses de transação e recursos cujo julgamento se daria por turmas de juízes de primeiro grau.

A instituição dos Juizados Especiais, portanto, haveria de se efetivar por meio da legislação infraconstitucional de organização judiciária, de iniciativa da União, no caso da Justiça Federal e Territórios, e de lei estadual, no caso da Justiça dos Estados. Quanto ao processo, porém, somente a lei federal poderia discipliná-lo, em virtude da reserva de competência legislativa prevista no art. 22, I, da CF.

A implantação desses novos órgãos judiciais tem sido feita paulatinamente, a partir da Lei nº 9.099/95, a que se seguiram as Leis ns. 10.259/01 e 12.153/09, tendo todas elas cumprido a missão de regular o processo de prestação jurisdicional dos Juizados Especiais, seja no âmbito das Justiças Estaduais, seja da Justiça Federal. Esta última lei federal completou o ciclo normativo necessário à instalação de mecanismos judiciários idealizados constitucionalmente para facilitar e simplificar o tratamento, na Justiça, das causas menos complexas e de menor valor.

A justificativa para o estabelecimento de uma justiça especial para as causas de pequeno valor e de menor complexidade foi a de que os custos e as dificuldades técnicas do processamento perante a justiça comum provocavam o afastamento de numerosos litígios do acesso à tutela jurisdicional, gerando uma litigiosidade contida não compatível com a garantia de tutela ampla e irrestrita assegurada pela CF (art. 5º, XXXV). Daí a necessidade de criar órgãos e procedimentos desburocratizados e orientados por princípios de singeleza e economia, para que nenhum titular de direitos e interesses legítimos continuasse à margem da garantia fundamental de acesso à justiça.

A primeira lei processual a disciplinar a atuação dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/95), guardando fidelidade ao norteamento constitucional, cumpriu a tarefa de proclamar os princípios informativos do processo específico sob cuja regência operariam os novos órgãos jurisdicionais. De acordo com seu art. 2º, o processo em questão "orientar-se-á pelos critérios da (I) oralidade, (II) simplicidade, (III) informalidade, (IV) economia processual e (V) celeridade, buscando, sempre que possível, (VI) a conciliação ou a transação".

O ideal, nos Juizados Especiais, é que a palavra falada seja mais usada que a escrita; que a controvérsia seja, sempre que possível, solucionada numa única audiência; que o formalismo seja completamente abandonado, sem prejuízo, é claro, do direito ao contraditório e defesa; que o sistema seja sempre operado de forma a produzir "o máximo de vantagem com o mínimo de dispêndio e energias"; que o processo demore "o mínimo possível", sem prejuízo do equilíbrio entre "os valores da justiça e da celeridade"; que haja uma constante busca da "autocomposição", realizando, sempre que possível, a "justiça coexistencial" tão valorizada por Cappelletti, a qual, na ótica de Alexandre Freitas Câmara, "é essencial para que se obtenha, através da jurisdição, a pacificação social, escopo magno do Estado Democrático" (1).

2 A Instituição dos Juizados Especiais da Fazenda Pública

Com base no art. 98, I, da CF, a Lei nº 12.153/09 determinou a criação dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, como órgãos da Justiça Comum e integrantes do sistema já existente dos Juizados Especiais (art. 1º, caput). Com isso, o sistema dos Juizados Especiais dos Estados e do Distrito Federal passou a ser formado por (a) Juizados Especiais Cíveis; (b) Juizados Especiais Criminais e (c) Juizados Especiais da Fazenda Pública (art. 1º, parágrafo único).

Antes da Lei nº 12.153 já existia, no âmbito da União, o Juizado Especial Federal, instituído e regulado pela Lei nº 10.259/01, como órgão da Justiça Federal, com competência para processar, conciliar e julgar causas atribuídas àquela Justiça de valor até sessenta salários mínimos (art. 3º, caput).

A Fazenda Pública estadual e municipal, que estava fora do sistema de Juizados Especiais, passou a nele figurar a partir da Lei nº 12.153/09 (DOU de 23.12.09), com vigência programada para 6 meses após sua publicação.

Diversamente do que ocorre com os Juizados Especiais Federais, onde não se cogita da atuação dos juízes leigos, os Juizados Especiais da Fazenda Pública instituídos pela Lei nº 12.153/09 funcionam com o concurso de juízes togados, juízes leigos e conciliadores, tal como os demais órgãos judicantes que integram o sistema local de Juizados Especiais no âmbito da Justiça dos Estados (art. 15) (2).

3 Disciplina Legal

Regem-se os Juizados Especiais da Fazenda Pública especificamente pela Lei nº 12.153/09. Subsidiariamente, aplicam-se também as disposições do CPC, da Lei nº 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais e Criminais) e da Lei nº 10.259/01 (Lei dos Juizados Especiais Federais), naquilo que, naturalmente, não conflitar com a disciplina traçada pela lei específica.

Pela comunhão de princípios informativos, pela adoção de procedimento sumaríssimo basicamente igual, e pela própria remissão legal feita entre os três diplomas normativos, deve-se reconhecer que todos eles formam uma unidade institucional, isto é, um só estatuto, qual seja, o estatuto legal dos Juizados Especiais brasileiros. Não havendo, portanto, conflito entre regras explícitas, os dispositivos de quaisquer das três leis podem ser aplicados nos procedimentos de qualquer um dos diferentes Juizados.

Além disso, prevê a Lei nº 12.153 que os TJ, o STJ e o STF, no âmbito de suas competências, expedirão normas regulamentando os procedimentos a serem adotados para o processamento e o julgamento do pedido de uniformização de jurisprudência e do recurso extraordinário, em relação aos casos julgados pelos Juizados Especiais da Fazenda Pública (art. 20).

4 Competência Absoluta

Não vigora para os Juizados da Fazenda Pública a liberdade de opção das partes entre eles e a justiça ordinária. "No foro onde estiver instalado o Juizado Especial da Fazenda Pública, a sua competência é absoluta" (Lei nº 12.153, art. 2º, § 4º) (3), diversamente do regime de livre escolha adotado pela Lei nº 9.099, art. 3º, § 3º, para ingresso da parte na justiça comum ou nos juizados especiais cíveis dos Estados.

A competência absoluta in casu vigora, no entanto, apenas para as causas ajuizadas depois da instalação do juizado especial, de modo que são vedadas as transferências de demandas aforadas anteriormente perante as varas da justiça ordinária (art. 24). Não se aplica, portanto, a regra geral do art. 87 do CPC, que, nos casos de competência em razão da matéria, manda prevalecer sobre os processos em curso a inovação legal superveniente.

A Lei nº 12.153, por outro lado, permite aos Tribunais de Justiça a implantação dos Juizados Especiais com competência temporariamente menor do que a prevista em seu art. 2º. Essa limitação, porém, só deverá prevalecer até cinco anos a partir da entrada em vigor da Lei nº 12.153. A justificativa para a medida será a "necessidade da organização dos serviços judiciários e administrativos" (art. 23). Os Juizados Especiais da Fazenda Pública, porém, deverão ser instalados pelos Tribunais de Justiça no prazo de 2 anos a contar da vigência da Lei nº 12.153 (art. 22).

5 Composição do Órgão Judicante

O Juizado Especial da Fazenda Pública será presidido por um juiz togado, auxiliado por conciliadores e juízes leigos. As respectivas atribuições são as previstas nos arts. 22, 37 e 40 da Lei nº 9.099/95. A presença de conciliadores e juízes leigos não é uma criação do legislador infraconstitucional, decorre de uma programação constitucional (CF, art. 98, I) traçada com o nítido propósito de realizar, por meio dos Juizados Especiais, uma justiça coexistencial, onde a tônica se dê sobre a conciliação, a economia processual e a informalidade. A presença de juízes leigos tende a dinamizar o procedimento, visto que, por obra de gestão da Justiça, a figura clássica e solitária do juiz togado pode desdobrar-se em numerosos juízes não togados dentro do mesmo juízo, cuja quantidade poderá variar sempre em função do volume de causas existentes. Além disso, a presença e a circulação de juízes oriundos do povo permite a internalização no sistema dos Juizados Especiais, de critérios menos frios do que os rigidamente seguidos na Justiça ordinária, facilitando a aproximação dos litigantes para as soluções consensuais e permitindo que as sentenças, quando não obtido o acordo, sejam mais próximas da experiência da vida e dos sentimentos gerais da comunidade (4).

Pena é que, nesses anos iniciais de implantação dos Juizados Especiais, pouca ênfase tem sido dada à integração dos juízes leigos em seus quadros funcionais.

A designação dos conciliadores e juízes leigos far-se-á na forma da legislação dos Estados e do Distrito Federal (Lei nº 12.153, art. 15), observado o seguinte regime:

a) Os conciliadores e juízes leigos são qualificados legalmente como "auxiliares da justiça" (art. 15, § 1º);

b) Os conciliadores não precisam ser, necessariamente, advogados, mas deverão, de preferência, ser recrutados entre bacharéis em direito (§ 1º);

c) Os juízes leigos deverão ser advogados com mais de dois anos de experiência (§ 1º, in fine);

d) Os juízes leigos ficarão impedidos de exercer a advocacia, não em sua plenitude, mas apenas perante os Juizados Especiais da Fazenda Pública, em todo o território nacional, enquanto no desempenho de suas funções (§ 2º);

e) A condução da audiência de conciliação é feita pelo conciliador, sob supervisão do juiz (art. 16), que tanto poderá ser um juiz togado como leigo (Lei nº 9.099/95, arts. 21 e 22);

f) A função do juiz leigo é a prevista na Lei nº 9.099/95 (5).

Notas do Autor:
1 CÂMARA, Alexandre Freitas. Juizados Especiais Cíveis Estaduais e Federais. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 10-25.
2 Embora a Lei nº 10.259/01 não faça qualquer menção à figura do juiz leigo na composição do Juizado Especial Federal, Joel Dias Figueira Júnior é de opinião que não há óbice legal à sua adoção, bastando, para tanto, recorrer à aplicação subsidiária da Lei nº 9.099/95 (Manual dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais e Federais. São Paulo: RT, 2006. p. 106-107). Deve-se lembrar, ainda, que a presença de juízes leigos nos Juizados Especiais, qualquer que seja a justiça que venham a integrar, corresponde a um desígnio de origem constitucional (CF, art. 98, I), que não convém ao legislador ordinário desprezar ou ignorar. A verdade, porém, é que nos quase dez anos de operação dos Juizados Especiais Federais não se tem notícia de movimento algum no sentido de dotá-los de juízes leigos.
3 "A competência se diz absoluta quando não pode ser modificada pela vontade das partes, ao contrário da relativa que admite essa modificação" (ALVIM, J. E. Carreira. Juizados Especiais Federais. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 22). Assim, "nos termos do § 3º do art. 3º da Lei nº 10.259/01, no foro onde estiver instalada Vara do Juizado Especial, a sua competência é absoluta, o que significa que não tem o autor, como nos Juizados Especiais Estaduais, o direito de optar pela vara federal comum" (idem, p. 21). O mesmo ocorre em relação aos Juizados Especiais da Fazenda Pública no âmbito da Justiça Estadual, visto que a Lei nº 12.153/09, em seu art. 2º, § 4º, adota o mesmo critério de competência absoluta preconizado pela Lei nº 10.259/01 para a Justiça Federal.
4 Para o Deputado Gilberto Nascimento Flávio Dino, "tais atores [conciliadores e juízes leigos] simbolizam a participação popular na administração da justiça, uma das singularidades do Estado Democrático de Direito. A eficiência de sua atuação já restou comprovada pela experiência dos Juizados Especiais Cíveis" (Câmara aprova criação de juizados especiais da Fazenda Pública. Disponível em: . Acesso em: 11.01.10).
5 O juiz leigo pode presidir a audiência, tanto de conciliação como de instrução e julgamento (Lei nº 9.099, arts. 21 e 22). Tendo dirigido a instrução, caberá ao juiz leigo proferir a sentença, a qual será imediatamente submetida ao juiz togado, "que poderá homologá-la, proferir outra em substituição ou, antes de se manifestar, determinar a realização de atos probatórios indispensáveis" (Lei nº 9.099, art. 40). O ato decisório do juiz leigo, portanto, é apenas um esboço de sentença, já que sua eficácia dependerá de homologação do juiz togado.

Artigo publicado na Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil nº 34 - Jan/Fev de 2010 e reproduzido no CD Magister 32, abr/maio/2010, de onde foi extraído.

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