Nelson Calandra
Presidente
da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)
Volta e meia, mandamos a bola na trave e não gritamos gol, porque ficamos na periferia dos problemas e, por essa razão, não acertamos o chute. Alterações legislativas, como a que pretende criminalizar parcialmente o enriquecimento ilícito em nome do combate à corrupção, nada resolvem.
Nós vivemos em um país democrático. A exigência é que para, punir alguém, haja previsão legal, e o encarregado de provar a culpa deve ser o Estado e não o réu.
Na medida
em que se cria uma ferramenta de exceção, com o mote de punir pessoas, em uma
situação em que elas tenham que demonstrar que são inocentes, abre-se uma
brecha no sistema processual penal e no sistema de garantia constitucional que
pode gerar uma fratura no Estado de Direito.
Não é
possível criar uma lei dizendo que "nós não temos a menor competência para
combater a corrupção; é permitido roubar o Estado, só que, dez ou 15 anos
depois, aquele que acumulou fortuna a custa do erário, se ainda estiver vivo,
tem de mostrar que não é culpado".
Assim, se
ele não provar que é inocente, depois de décadas, será punido como culpado.
Isso é uma declaração de falência do próprio sistema processual e penal
brasileiro.
A proposta
inverte, na verdade, o ônus da prova. Se a mudança for feita sem alterar a
Constituição e o elenco de garantias fundamentais, será inconstitucional. Se
for alterada por meio de emenda constitucional, também será inconstitucional,
porque se trata de uma cláusula que não pode derrogar as garantias do sistema.
Em vez de
seguir tendência mundial, a proposta nos põe na contramão da história ao punir
apenas o servidor, o político e o juiz, ao contrário do que assistimos hoje,
quando grupos privados comandam rede criminosa de desvio do dinheiro público.
Talvez a
grande modificação necessária não esteja dentro da legislação penal, mas na
órbita do Poder Legislativo.
Por
exemplo, é necessário repensar algumas regras ligadas às CPIs. Uma vez
instaladas, elas são conduzidas por pessoas que, embora ilustres, não têm
vivência no campo das ações penais ou da investigação processual.
O risco
que se corre é produzir uma densa documentação que, muitas vezes, não vem
calcada nas boas técnicas processuais penais, que nós, juízes e promotores,
somos obrigados a observar no dia a dia.
O que
reduz a corrupção é um sistema legal que funcione, penas cumpridas efetivamente
e um Ministério Público e uma Polícia Federal equipados para combater delitos
financeiros. Sem isso, não há a menor condição.
Fazer o
quê? Primeiro, é preciso se preocupar em evitar esse tipo de dano. Depois, tem
que haver um debate com toda a sociedade.
Frequentemente,
todos se perguntam por que ainda não foi feita a reforma política, a chamada
mãe de todas as reformas, para conter o descrédito e a desmoralização constante
e crescente.
Enquanto
ela não vem, o financiamento de campanhas eleitorais, por exemplo, chega a ser
público e também privado, mas nunca aberto. Permanece encoberto sob o manto da
vergonha. Aí, o mal ganha o nome de corrupção, caixa dois, e contamina ora o
setor público, outra vez, o privado, muitas vezes os dois simultaneamente.
Há uma
relação perversa e sadomasoquista que, vez ou outra, adoece o país. Conhecemos
de sobra nossos problemas, desde os primeiros sintomas até os casos mais
agudos, bem como o remédio para esses males. Para minimizar a necessidade de
cura, banalizamos a moléstia, sem perceber que ela chegou a um estado de
epidemia antiética e que não temos à mão as vacinas necessárias para evitar o
mal que nos assola nem sua reincidência.
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