Clito
Fornaciari Júnior
Mestre em Direito.Advogado.Presidente da Comissão da Reforma do CPC da
OAB/SP
O
chamado agiota tem recebido de nossa Justiça um tratamento inclemente. Tal
quiçá se deva à repugnância que por ele se encontra no meio social,
olvidando-se, todavia, seus devedores e também seus julgadores de que sua
atuação comercial se dá sob enorme risco, pois passa a atender exatamente a
quem não tem (ou não mais tem) acesso ao crédito bancário, sendo, pois,
considerado inidôneo para a realização de transações dessa ordem. Resta-lhe,
assim, o caminho do "mútuo civil", ao qual se rende sem questionamento
algum, até por não ter força para discutir. Parece mesmo ter se difundido a
ideia de que a própria atividade do empréstimo de dinheiro a juros estaria
vedada ao particular e pessoa física, ficando restrita aos estabelecimentos
bancários, o que não é correto, tanto que o mútuo tem no Código Civil ampla
disciplina, que não teria sentido e razão de ser caso fosse reservada aos
bancos, em vista do que suas normas estariam deslocadas.
O divisor de águas
entre o simples mutuante e o endemoniado agiota está na taxa de juros, tanto
assim que a chamada Lei de Usura (Decreto nº 22.626/1933),
em seu art. 1º, diz ser vedado estipular em contratos juros a taxas superiores
ao dobro da legal. Acrescenta, ainda, o artigo que quem o fizer "será
punido nos termos desta lei", colaborando essa asserção para reforçar a
difusão do caráter pecaminoso da prática em questão.
É
lógico e se faz de rigor recriminar práticas de mutuantes que buscam burlar a
previsão legal, maquiando ajustes e garantias, como, por exemplo, se verifica
com a simulação de venda de bens, com cláusula de recompra mediante certo
preço, no qual se embutem juros, ou, então, firma-se contrato de locação, de modo
que o suposto aluguel seria o quanto dos juros. Esse tipo de negócio,
objetivando eliminar o risco da operação, não pode prevalecer, sendo de se
proclamar a nulidade da suposta compra e venda ou da locação, fazendo
desaparecer a garantia (cf. TJRS, Revista de Jurisprudência, 218/188; TJSP,
Revista dos Tribunais, 830/192). De qualquer modo, isso não deve afetar ou
comprometer o negócio do mútuo e sua real dimensão, que há de ser honrado nos
limites da legalidade.
Para tanto e também
para enfrentar a questão da taxa de juros, o sistema criou regra de inversão do
ônus da prova, desde que se mostrem indícios da prática da agiotagem. Nessa
linha, o art. 3º da Medida Provisória nº 2.172-32,
objeto de sucessivas reedições, prevê que, nas ações em que se discutem
contratos que ofendam a taxa de juros permitida, "incumbirá ao credor ou
beneficiário do negócio o ônus de provar a regularidade jurídica das
correspondentes obrigações, sempre que demonstrada pelo prejudicado ou pelas
circunstâncias do caso, a verossimilhança da alegação". Tanto se faz
possível, desse modo, quer para provar atos simulados, como para demonstrar a
simples taxa de juros praticada, reclamando-se do credor, nesse caso, a prova
do quanto despendeu em favor do devedor, de modo a também evitar que o todo
pago pelo devedor seja entendido como quitação de juros (TJSP, apelação
0013689-62.2010.8.26.0000, rel. Rubens Cury, julgado em 16.11.2011).
O
que não pode ocorrer é a consideração de que exista agiotagem sem a prova, que
pode ser direta ou decorrente da inversão, da cobrança de juros acima do
percentual legal. O fato, por exemplo, de existirem indícios de práticas de
agiotagem autoriza a inversão do ônus da prova, podendo entender-se como a
verossimilhança reclamada pela medida provisória, mas isso não é o bastante
para incriminar o ato específico que se discute, como já se deu em decisão do
Tribunal de Justiça de São Paulo (Apelação nº 7044450-5, rel. Melo Colombi,
julgado em 31.01.07), pois não se pode reputar estar havendo agiotagem, em
certo e determinado caso, por simples atuação passada do mutuante nesse
segmento.
De outro lado, há que
se ter cuidado, que tem faltado muito à miúde (cf., entre outros, TJRS,
apelação nº 70002802940, rel. Luiz Ary Vessini de Lima, Revista de
Jurisprudência, 219/222), para se definir as consequências da cobrança de juros
acima do patamar legal, não se podendo usar esse pecado para conferir uma carta
de alforria ao devedor, até porque pode estar se permitindo o seu
locupletamento ilícito, isentando-o do pagamento do quanto efetivamente deve
por lhe ter sido mutuado. A lei de usura dá ao prejudicado o direito de repetir
o que houver pagado além da taxa legal (art. 11), não se lhe concedendo, a contrario sensu, nada mais
pagar, sequer mesmo restituir o quanto recebera. Não há sanção desta ordem
contra o credor.
Nessa linha,
importante e qualificada luz vem de ser trazida à questão por acórdão da
Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, da pena de Sidnei Beneti, no
julgamento do REsp 1.106.625 (julgamento em 16.08.2011), por meio da qual o
devedor buscava o reconhecimento da nulidade do negócio jurídico firmado, de
vez que fora reconhecida a cobrança de juros acima da taxa permitida.
Escorava-se o recorrente no art. 145, II, do Código de 1916 (atual 166, II),
que reputa nulo o ato jurídico cujo objeto for ilícito. Colocou-se o relator o
dilema de perquirir se a nulidade é inafastável ou se possível se faz salvar o
ato, naquilo que não for comprometido. Enfatizou, então, que a ordem jurídica
não é inimiga dos interesses individuais, sendo a teoria dos negócios jurídicos
informada pela conservação desses, por aí estar também o interesse econômico da
sociedade, existindo inúmeros dispositivos de preservação de atos e negócios
jurídicos, entre os quais o art. 184 do Código Civil atual é dos mais importantes, a ele somando-se o
§ 2º, do art. 157, que cuida da lesão e da possibilidade de reduzir o proveito,
e o art. 170, que permite a conversão do negócio jurídico, mesmo que marcado
pela nulidade.
Lançadas
essas premissas, o acórdão refuta a aplicação dos arts. 170 e 184: o primeiro
porque não se teria como afirmar a concordância do credor com a redução dos
juros; e o segundo porque não se poderia dizer existir no mútuo em questão uma
parte válida e outra inválida, na medida em que a taxa de juros é um dos
requisitos essenciais desse contrato.
Ainda assim, porém, o
julgado manteve o negócio, fazendo-o com amparo no art. 591 do Código Civil,
que prevê, como autêntico princípio dos contratos, a possibilidade de redução
de juros quando pactuados em excesso, independentemente de saberem as partes da
legalidade ou ilegalidade do quanto convencionaram. Arrematou-se, por fim, com
a regra do art. 11 do Decreto nº 22.626/1933,
dizendo que a norma se conforta com a repetição somente do excesso, importando
isso em dizer que todo o resto deve ser mantido, pois, do contrário, a previsão
legal deveria ser no sentido de apregoar a nulidade e a plena restituição das
partes ao estado anterior à celebração do negócio.
Sem
dúvida, boas luzes foram trazidas ao tema, que deve ser enfrentado com roupagem
jurídica, sem os preconceitos que a figura em si do agiota pode trazer à mente
de quem possa um dia dever.
Extraído
de Lex Magister, Ed. 14/05/2012
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