Nelson Sá Gomes Ramalho
Advogado
A criação de empresas, com a
participação acionária do Estado, para o desenvolvimento de funções na
economia, se intensificou no século passado (século XX), após a Primeira Grande
Guerra Mundial.
O denominado Estado liberal
encontrava-se ideologicamente em declínio, sobrevindo o Estado Social,
ocorrendo consequentemente o incremento das atividades estatais, não mais se
restringindo àquelas atividades típicas do Poder Público, contudo alargando-se
a noção originária de ser viço público, passando o Estado a desenvolver,
outrossim, atividade industrial e comercial.
Esta modificação alterou ainda a
postura do Poder Público no que toca ao processo econômico, passando o Estado a
não apenas fixar e resguardar as normas (lato senso) do livre mercado,
evoluindo para a figura do Estado Empresário, isto é, o Estado atuando
efetivamente como verdadeiro agente econômico.
Para lograr êxito nestas novas
atividades, incompatível com o modelo de organização tipicamente burocrática da
Administração Pública, foi utilizada a empresa estatal em larga escala.
Daí surgiu a necessidade de se
criar uma legislação específica para as empresas com esta natureza (de sociedade de economia mista), tendo se
verificado, igualmente, a imprescindibilidade de, apesar de dar maior liberdade
de atuação, esta espécie de sociedade precisar observar, em razão da
participação direta do Poder Público, regras claras que preservassem os princípios basilares do Estado, ou seja, a
transparência, a moralidade e impessoalidade.
Assim, quando o Estado decidiu
por atuar no mercado, por questões estratégicas ou mesmo como única solução
para incentivar o início ou desenvolvimento de determinadas atividades, ara a qual
não havia interesse da inciativa privada em investir, verificou-se desde logo a
imprescindibilidade de ser elaborada normatização específica, de modo a
permitir maior agilidade do Estado empresário.
Sem tencionarmos adentrar em debate
de cunho ideológico, há os que esposam também a tese de que deve o Estado ter,
outrossim, outras formas de renda do que tão somente o imposto recolhido direta
ou indiretamente dos cidadãos. Assim, em se tratando de uma empresa de economia
mista lucrativa, eficiente, por que, perguntam estes, o Estado não ter na mesma
uma fonte de recursos?
Retornando à seara originária,
temos que restou claro a importância da existência de legislação específica
para reger as sociedades de economia mista e, para tanto, ter-se clareza quanto
à natureza jurídica e fática das mesmas .
Constatou-se, desde logo, que a
legislação que regia o Estado nas suas atividades típicas (esfera
administrativa), era incompatível para que o Estado empresário desenvolvesse
suas novas atribuições.
Nesse sentido Hely Lopes
Meirelles discorre com precisão:
A sociedade de economia mista no
Brasil anda não recebeu a devida regulamentação legal. .A Constituição da
República a ela se refere apenas para estabelecer que, quando for utilizada
para explorar atividade econômica, deve operar sob as mesmas normas aplicáveis às
empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias
(art. 173, $ 1º.) ... (omissis)... Permanecem ao lado do Estado, mas guardando
sempre sua personalidade de Direito Privado. (Direito Administrativo
Brasileiro, Hely Lopes Meirelles, 17ª. Edição, 1990, Malheiros Editores, p.
331).
Temos por certo que se faz
imprescindível certa liberdade de atuação para que o Estado logre êxito para
executar atividades no mundo da indústria e da mercancia.
Tão somente liberto das amarras
inerentes à burocracia da administração direta, pode o Estado desempenhar o
papel de empresário, o que, aliás, não ocorre apenas no Brasil.
Vislumbrou o legislador, com rara
clarividência, a imprescindibilidade de
despir o Estado, enquanto Governo, da burocracia existente, dando-lhe maior agilidade
para atingir a produtividade.
Neste ponto, vale chamar a atenção
para o fato de que a previsão contida na Constituição Federal, promulgada em 5
de outubro de 1988, no sentido de que “a Lei estabelecerá o estatuto jurídico
da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que
explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de
prestação de serviços, dispondo sobre: II a sujeição ao regime jurídico próprio
das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis,
comerciais, trabalhistas e tributários:” (Art. 173, inciso II, da Constituição
Federal), até hoje não se concretizou.
Constitui-se em ledo equívoco acreditar
que um Estado empresarial, com pesada estrutura burocrática, tal como a
existente na administração direta, que desenvolve atividades de mero
expediente, gere um maior controle das empresas.
O engessamento da estrutura
gerencial das empresas de economia mista, precipuamente daquelas que
desenvolvam atividade empresarial em regime de concorrência, as levaria
certamente à situação que geraria a indispensabilidade de repasse de recursos
do Governo para mantê-las, vez que deixariam de cumprir seu objetivo de
produzir e gerar progresso e dividendos, uma vez que, com as amarras
administrativas, restariam impedidas de competir, de terem agilidade indispensável para atuar no mundo
dos negócios.
Tem sido esquecido em nosso país,
que a finalidade da existência das sociedades de economia mista é na verdade
dar condições ao Estado para atuar como empresário, principalmente naquelas
atividades onde se faz indispensável sua presença, seja pelo aspecto econômico,
político, social e/ou estratégico.
Criou-se sistema de
fiscalização que acaba, em razão do
modelo adotado, gerando danos em razão de efeitos colaterais, impedindo-se o
desenvolvimento tecnológico e econômico destas empresas que, indubitavelmente,
constituem-se em força motriz a
impulsionar o progresso do Brasil.
Em momento algum está a se
defender o fim da fiscalização, porém a alteração de como ela é realizada.
Verifica-se que o controle das
sociedades de economia mista, quando exercido com racionalidade, sem
comprometimento emocional ou moral, mostra-se eficaz.
A União, na qualidade de
acionista controladora, deve proceder como
o majoritário na empresa privada:
defender suas posições e interesses na assembleia de acionistas.
Por outro lado, devem os órgãos
de controle externos procurar especializar seus integrantes no mister do
trabalho no campo da indústria e do comércio, para terem eficiência na
fundamental função de fiscalizar.
Deve-se exigir qualidade e
resultados, tendo o Estado para tanto poder de eleger e destituir, nas
assembleias de acionistas, a Diretoria da Companhia por ele controlada, que melhor
se adeque a estes parâmetros.
Como, entrementes, pretender que
uma economia mista possa atuar competitivamente no mercado, se a mesma encontra-se
defesa até mesmo de estabelecer por
conta própria níveis salariais compatíveis com esse mercado e com os resultados
da empresa, de forma a poder evitar a perda de técnicos altamente gabaritados?
Para um controle mais efetivo
deve-se deixar de lado o hábito de se monitorar cada ato de gestão e de se
exigir relatórios e mais relatórios ao administrador, obrigando-se as empresas
a terem custos extraordinários, com a criação inclusive de áreas somente para
atender as muitas requisições frequentemente solicitadas.
Afigura-nos que o caminho sadio é
criar no administrador a obrigatoriedade de praticar o exercício da
criatividade, da inteligência e obriga-lo a assumir responsabilidade.
O que propomos, em apertada síntese,
é que se deixe de tutelar estas empresas, sem se exercer a indispensável
fiscalização, de forma a se preservar os princípios constitucionais da
moralidade e da transparência. Ao se tutelar alguém, impede-se que haja
crescimento, pois o tutelado não mais se preocupa em criar, ousar e se
preocupar com os resultados: passa a aguardar pacientemente pelo próximo
comando.
Campo fértil, no entanto, para que estas iniciativas
frutifiquem, somente adubado com alguma liberdade de ação.
Acreditamos que a solução é a
celebração dos denominados contratos de gestão, a serem celebrados entre as
sociedades de economia mista e o acionista controlador. Tal iniciativa já foi
implementada no passado, tendo sido assinado contratos de gestão, contudo não
se materializou no campo pragmático.
Com a ausência de certo grau de
autonomia para agir, podem ser gerados prejuízos ao Tesouro, que para suprir
estas empresas tem de destinar-lhes recursos, invertendo-se, desta forma, a
ordem natural das coisas: que seria a empresa gerando dividendos para seu
acionista controlador.
A matéria, ora em tela,
encontra-se dissecada com raro brilhantismo no Parecer no. JCF- 18/93, de 27 de
Janeiro de 1993, da lavra do Dr. José de Castro Ferreira, verbis:
É que, se o regime jurídico das
sociedades de economia mista, por exemplo, é o das sociedades anônimas, o Poder
Público nãoi poderá adotar formas de interferência na administração dessas
empresas que venham a ser incompatíveis com os procedimentos de uma sociedade
anônima. Da mesma forma, não será lícito nem conveniente adotar normas
referentes a seus empregados, que se
conflitem com as disposições da legislação trabalhista, societária,
tributária, civil, entre outras, pois significaria esvaziar de sentido o
excerto constitucional que subordina estas empresas ao regime jurídico aplicável
às empresas privadas. Demais disso, o poder do Estado, nessas empresas, é o
poder do acionista controlador e não o poder de governo... (omissis). As
sociedades de economia mista e as empresas públicas, assim como as demais
entidades que explorem atividade econômica, são regidas por lei, mas não geridas
por lei (o negrito consta do original).
Obviamente, isso não significar
obstar o Estado de baixar legislação aplicável às empresas do setor público. A
Lei das Sociedades Anônimas já encerra
tal previsão ao dizer que as sociedades de economia mista se regerão pela lei
das sociedades anônimas privadas, sem
prejuízo das disposições de leis federais (Lei no. 6.404/76, art. 235). O
que queremos dizer é que se mostra incabível além de inadequada a intervenção
do Estado na organização e funcionamento das sociedades de economia mista
mediante a promulgação de leis que não tenham
a característica de norma geral endereçadas a todas as empresas, mas se destinem à área de deliberação
própria do acionista e até a atacar o varejo das atribuições gerenciais dos
conselhos de administração (o realce é reprodução do original).
No regime capitalista, quando o
Estado atua no domínio econômico não produz, como consequência, a estatização
da economia, mas sim a sua assimilação
como ente privado, desvestido do ius
imperii e em igualdade de condições com os demais agentes econômicos
privados. A transmudação ocorre nesse sentido e não no oposto. Isso é o que
explica a vetusta regra isonômica, repetida na atual Carta em seu art. 173,1º.
(Parecer JFC -18/93, da Consultoria Geral da República).
No mesmo sentido manifestou-se o
Tribunal Superior do Trabalho, em mais de uma oportunidade:
Essas empresas, que com petem no
plano econômico, têm que ter um
tratamento diferenciado dentro do serviço público, uma vez que não é possível
que venham a ser atreladas aos rígidos preceitos da administração direta ou das
entidades fundacionais especificamente mencionadas. (TST; PLENO, Proc. DC
07/89, julgado em 4/5/94; Rel. Min. Orlando Teixeira da Costa).
O Banco do Brasil é notoriamente
sociedade de economia mista...(sic). Com efeito tratando-se de sociedade de
economia mista, ainda que possa ser visto como integrante da Administração
Pública Indireta, o Banco, porque explora evidente, manifesta, incontroversa e
iniludível atividade econômica, sujeitando-se à concorrência e no mercado de
captação de dinheiro, e na realização de contratos de natureza financeira, não
pode deixar de se submeter ao regime jurídico próprio das empresas privadas. “inclusive
quanto às obrigações trabalhistas”, como ressalta, com zelo pleonástico o texto
constitucional.(TST,PLENO, Proc. DC 16/89; Rel. Min. Almir Pazzianotto).
Sobre a imprescindibilidade de se
conceder maior autonomia às empresas de sociedade de economia mista, abrangidas
pelo disposto no art. 173, da Carta Maior, discorreu com raro acerto o ministro Adhemar Paladini
Ghisi, do Tribunal de Contas da União, que vem igualmente a robustecer a tese
neste esposada, verbis:
(...) Não temos dúvida, neste
Tribunal, da necessidade de se dar aos órgãos da administração indireta no
Brasil, principalmente àqueles referidos na Constituição no Art. 173, uma maior
flexibilidade. Essa liberdade permitirá uma maior agilidade nesse sistema
competitivo a que estão submetidas as empresas em geral, principalmente as
públicas. É preciso que essa possibilidade esteja prevista na Carta Magna, que
hoje não consagra essa liberdade de ação ... (Sessão Plenária de 2 de fevereiro
de 1994, publicada no DOU DE 17/2/94).
Assim, até que se promulgue lei,
prevista na Constituição Federal, para regulamentar a atividade das economias
mistas, deve-se cuidar de modo a que não se venha a manietar a atuação desse importante
braço do Estado, no desenvolvimento do País, procurando-se fiscalizá-las sem
tutelar, bem como proferir decisões equilibradas, isto é, fora do binômio público/privado, eis que não se
encontram essas sociedades em nenhuma das duas espécies.
(Extraído
da Revista da Escola Nacional da Magistratura, Ano VII, ed. No. 6, Brasilia:
Escola Nacional da Magistratura, [2012],
p 521/527 .