O blog publica às sextas-feiras
decisões da Primeira Turma do Colegiado Recursal dos Juizados Especiais de
Vitória, no biênio 2004/2006, período em que tive a honra de integrar aquele
dinâmico sodalício. Não há compromisso de publicação da integralidade dos
julgados nem com a identificação das partes, vez que interessa apenas revelar
alguns temas interessantes que são debatidos no cotidiano dos Juizados
Especiais, os quais inegavelmente deram uma nova dinâmica ao judiciário
brasileiro. E de tal sorte que cada vez mais são ampliadas suas competências.
Pelo andar da carruagem, em breve o que era especial passará a ser comum, o que
faz alguns preverem em futuro próximo o sepultamento das varas cíveis comuns,
onde ou se consegue um provimento cautelar ou antecipatório ou não se vê
resultado concreto em pelo menos longos anos de litígio.
Hoje o caso tratado refere-se ao valor de alçada para todas
as ações de competência dos Juizados Especiais Cíveis, como segue:
EMENTA: RECURSO INOMINADO. COBRANÇA DE QUOTAS CONDOMINIAIS. AÇÕES
DESDOBRADAS QUE REUNIDAS SUPERAM O VALOR DE QUARENTA SALÁRIOS MÍNIMOS.
TENTATIVA DE BURLA DO TETO LEGAL QUE DEVE SER CONTIDA COM APLICAÇÃO DO DISPOSTO
NO ART.51,II, DA LEI 9.099/95.
1.- OS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS TÊM A
COMPETÊNCIA DEFINIDA PELA QUALIDADE DAS PARTES, PELA MATÉRIA NELA VERSADA E,
SOBRETUDO, PELO VALOR DA CAUSA.
2.-AS CAUSAS ENUMERADAS NO ART. 275, II, DO
CPC TAMBÉM SUBMETEM-SE AO TETO DE
QUARENTA SALÁRIOS MÍNIMOS, POR INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA DO ART. 98, I, DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL E INCISO I e §3º DO ART. 3º C/C ARTIGOS 15 E 39, TODOS DA
LEI 9.099/95.
3.-A OPÇÃO PELO PROCEDIMENTO DO JUIZADO
ESPECIAL CÍVEL, AFORA A HIPÓTESE DE CONCILIAÇÃO, IMPLICA RENÚNCIA AO CRÉDITO
EXCEDENTE, NOS TERMOS DO § 3º DO ART. 3º DA LEI 9.099/95 OU SUA EXTINÇÃO, NOS
TERMOS DO ART. 51, II, DO MESMO DIPLOMA LEGAL.
4.- RECURSO IMPROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos, ACORDAM os
Juízes da Primeira Turma Recursal do Colegiado Recursal dos Juizados Especiais,
à unanimidade, conhecer do recurso para negar-lhe provimento, nos termos do
voto do Relator que deste passa a fazer parte integrante.
Vitória,
ES, de outubro de 2005.
R E L A T Ó R I O
O
Condomínio da Praia, por seus advogados, ajuizou Ação de Cobrança de Quota
Condominial em face do condômino FVC, alegando que o requerido deve quotas de
condomínio referente às lojas 37 e 38 do segundo piso do referido Condomínio,
que somam R$ 9.348,00, vencidas no período de 01/01/99 a 05/06/99, conforme demonstrativo
anexo, aduzindo, mais, que os valores estão atualizados pela tabela judicial de
março/04, apensa,acrescidos de juros de 1% ao mês, multa de 10% e ainda despesa
com a cobrança, na ordem de 15%, com autorização do § 3º, do art. 12 da Lei
4.591, cláusulas 65 e 66 da Escritura Condominial, do Regulamento Interno e §
2º, da cláusula primeira do “Contrato de Prestação de Serviços Advocatícios”,
anexados.
Regularmente
instruído o feito, adveio a r.sentença de fls. 43, que julgou extinto o
processo, bem como o processo em apenso, sem julgamento de mérito, com fulcro
no art. 51,II, da Lei 9099/95, vez que, somados os valores de ambos, com as
mesmas partes e causa de pedir, burlam o teto de quarenta salários mínimos, vez
que outros pedidos foram julgados procedentes.
Irresignado
o Condomínio interpôs recurso inominado a fls. 50/53, assentando que o MM Juiz
a quo, contrariando o disposto no art. 3º, II, da Lei 9099/95 e ainda decisões
deste Colégio Recursal proferidas no Mandado de Segurança 0090/03 e RI
4.462/03, entendeu não ser o Juizado Especial competente para julgar processos
cujos valores excedam a quarenta salários mínimos, acostando cópias de
referidos julgados. Desse modo, requereu provimento do recurso para anulação da
r.sentença hostilizada e determinar a descida dos autos ao juízo de origem para
redesignação de nova audiência de Instrução e Julgamento, pois somente desata
forma se estará restabelecendo a justiça.
Regularmente
intimado, o recorrido não apresentou contra-razões, conforme certidão de fls.
96.
É
o relatório.
V
O T O
Verificando que foram
atendidos os pressupostos de admissibilidade, sobremodo diante do despacho de
fls. 93, conheço do recurso.
A discussão posta nos autos
gira em torno da interpretação do artigo 3º, da Lei 9099/95, ou seja, se as
causas constantes do inciso II, do referido dispositivo devem ou não guardar
obediência ao teto de quarenta salários mínimos.
Veja-se o teor do
dispositivo:
Art. 3° O Juizado Especial Cível tem
competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor
complexidade, assim consideradas:
I–as causas cujo valor não exceda a 40
(quarenta) vezes o salário mínimo;
II–as enumeradas no art. 275, inciso II,
do Código de Processo Civil;
Art. 275. Observar-se-á o procedimento sumário: (Redação dada pela Lei nº 9.245, de 26.12.1995)
I - nas
causas, cujo valor não exceder 20 (vinte) vezes o maior salário mínimo vigente
no País; (Redação dada pela Lei nº
5.925, de 1º.10.1973)
I
- nas causas cujo valor não exceda a
60 (sessenta) vezes o valor do salário mínimo; (Redação dada pela Lei nº 10.444, de 7.5.2002)
II - nas causas, qualquer que seja o valor (Retificado) (Redação dada pela Lei nº 9.245, de 26.12.1995)
a) de
arrendamento rural e de parceria agrícola;
b) de
cobrança ao condômino de quaisquer quantias devidas ao condomínio;
c) de
ressarcimento por danos em prédio urbano ou rústico;
d) de
ressarcimento por danos causados em acidente de veículo de via terrestre;
e) de
cobrança de seguro, relativamente aos danos causados em acidente de veículo,
ressalvados os casos de processo de execução;
f) de
cobrança de honorários dos profissionais liberais, ressalvado o disposto em
legislação especial;
g) nos
demais casos previstos em lei.
Parágrafo
único. Este procedimento não será
observado nas ações relativas ao estado e à capacidade das pessoas. (Redação dada pela Lei nº 9.245, de 26.12.1995)
III–a ação de despejo para uso próprio;
IV–as ações possessórias sobre bens
imóveis de valor não excedente ao fixado no inciso I deste artigo.
§ 1° Compete ao Juizado Especial promover
a execução:
I–dos seus julgados;
Il–dos títulos executivos extrajudiciais,
no valor de até 40 (quarenta) vezes o salário mínimo, observado o disposto no §
1° do art. 8° desta Lei.
§ 2° Ficam excluídas da competência do
Juizado Especial as causas de natureza alimentar, falimentar, fiscal e de
interesse da Fazenda Pública, e também as relativas a acidentes de trabalho, a
resíduos e ao estado e capacidade das pessoas, ainda que de cunho patrimonial.
§ 3° A opção pelo procedimento previsto
nesta Lei importará em renúncia ao crédito excedente ao limite estabelecido
neste artigo, excetuada a hipótese de conciliação.
A matéria é polêmica, suscitando
respeitáveis opiniões, quer em prol da tese da inexistência de teto para as
ações referidas no art. 275 do CPC, quer em sentido contrário. Entretanto, vem
ganhando cada vez mais corpo, a posição que defende a limitação de teto para os
Juizados Especiais Cíveis.
Aponta o recorrente dois
precedentes desta Turma, cumprindo verificar que:
No primeiro julgado
referido, ou seja, o RI 4.462/03, o tema não foi enfrentado pela Turma, posto
que a preliminar de incompetência argüida, dizia respeito à impossibilidade do
Condomínio, como pessoa jurídica, postular perante os Juizados Especiais. E foi
repelida com o seguinte fundamento:
“Tenho que as restrições impostas
no parágrafo 1º, do art. 8º da Lei nº 9099/95 não se aplicam às pessoas que
gozam de personalidade judiciária como o espólio e o condomínio.
Coaduna com este o magistrado
Joel Dias Figueira Jr. (Comentários, cit., p. 169), quando destaca a Conclusão
10 dos integrantes da Seção Cível do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, nos
seguintes termos:
“O Espólio, que goza de
personalidade jurídica de direito processual e o condomínio, na defesa da
comunidade dos condôminos, podem litigar perante o Juizado Especial, por não se
incluírem no conceito de pessoa jurídica (art. 8º, § 1º, da Lei nº 9.099/95).”
Não é o caso dos autos.
Entretanto, no julgamento
de mérito do Mandado de Segurança 090/03, ficou assentado pelo eminente
Juiz-Relator, acompanhado pelos demais pares:
“Logo, para delimitar a
competência do Juizado Especial Cível, serviu-se o legislador de 2 (dois)
critérios, a saber, o qualitativo e o quantitativo.
No caso da ação de cobrança ao
condômino de quaisquer quantias devidas ao condomínio, a competência do Juizado
Especial Cível dá-se pelo critério qualitativo.
Por isso, tem o Juizado Especial
competência para processar e julgar tais ações, independentemente do valor em
cobrança, entendimento este sufragado pelo Enunciado nº 58 dos Juizados
Especiais Cíveis e Criminais do Brasil antes mencionado, assim redigido: “As causas
cíveis enumeradas no art. 275, II, do CPC, admitem condenação superior a 40
salários mínimos e sua respectiva execução, no próprio Juizado.”
Logo, sendo lícito ao condomínio
propor no Juizado Especial Cível ação para cobrança de valores que lhe sejam
devidos por condômino, em importe superior a 40 (quarenta) vezes o salário
mínimo, nada obsta que proponha mais de uma ação, versando sobre encargos
referentes a períodos e a unidades condominiais distintas, ainda que os
importes em cobrança em todas elas, somados, superem a 40 (quarenta) vezes o
salário mínimo.”
O supra-referido Enunciado
nº 58 (aprovado no Encontro de Maceió-AL, em novembro de 2002) foi confirmado
no XVII, ENCONTRO NACIONAL DE COORDENADORES DE JUIZADOS ESPECIAIS DO BRASIL,
realizado em Curitiba-PR, no período de 25 a 29/05/2005. Transcrito no DJ-ES,
edição nº 2614, de 17.06.2005.
Tal entendimento, contudo,
tem enfrentado severas críticas de diversos doutrinadores, como se procurará
demonstrar.
Em interessante artigo
publicado na internet sob o título “Juizados Especiais: Compreendendo o valor
de alçada” assevera JOSÉ CARLOS DE ARAÚJO ALMEIDA FILHO, advogado no Rio de
Janeiro e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico, o seguinte:
Analisando o art. 3º. da Lei 9099/95, podemos
concluir que estão sujeitas aos Juizados Especiais as causas de menor
complexidade, sendo consideradas como tal: I- as que não excederem a 40 vezes o
valor do salário mínimo; II- aquelas enumeradas no art. 275, II, do CPC; III-
despejo para uso próprio e IV- as ações possessórias.
Comparando o art. 3º. da referida
lei com o nosso paradigma italiano, ou seja, o Juiz de Paz, podemos
perceber que no art. 7º. do CPC Italiano há ressalvas – o que o nosso
legislador não cuidou de fazer nos incisos. Diante desta omissão [17],
surgem as correntes a favor de não limitação de valor (ou teto) e a que
admite que as causas enumeradas nos incisos II a IV estão sujeitas ao teto.
A
primeira corrente, que encontra diversos adeptos, se encontra equivocada. Não
podemos interpretar a Lei 9.099/95 pelo caput do art. 3º., sem levarmos
em consideração toda a sistemática dos Juizados Especiais.
A fim de expurgarmos de vez com a
idéia de que não há teto, a ressalva contida no parágrafo terceiro do próprio
artigo em questão afirma, peremptoriamente, que "a opção pelo procedimento
previsto nesta Lei importará em renúncia ao crédito excedente ao limite
estabelecido neste artigo, excetuada a hipótese de conciliação".
Ou seja, ainda que não haja
ressalvas em cada um dos incisos, o teto será sempre o de quarenta (40) vezes o
valor do salário mínimo. Há, sem maiores polêmicas ou necessidade de
problematização, a certeza de que não há qualquer possibilidade de ter no
Juizado Especial causa acima de 40 salários mínimos. Não trataremos da
transação, porque nesta sempre haverá renúncia de parte a parte.
O conjunto legal dos Juizados
Especiais fixa, sim, o limite para a competência, bastando analisarmos, em
conjunto com o art. 3º., o art. 39. Ainda que somente tenhamos um artigo estipulando
valor de alçada, ou teto para aplicação das normas dos Juizados Especiais,
qualquer sentença acima de 40 salários mínimos será ineficaz.(Texto inserido no
Jus Navigandi nº 768 (11.8.2005).
Elaborado em 05.2005. Acesso em: 12 out. 2005).
No mesmo sentido
manifesta-se a professora da Universidade Federal de Sergipe e magistrada no
Estado da Bahia, MARIA AUXILIADORA SOBRAL LEITE, no alentado trabalho “Juizados
Especiais Cíveis”, assim abordando a questão:
“Como última motivação à tese de
que não deve prevalecer o valor para as causas enumeradas no inciso II do art.
3º da Lei 9.099/95, baseia-se na idéia de que as causas enumeradas no art.
275,II, do CPC, não encontram limitação de valor, daí por que não podem sofrer
restrição nos Juizados Especiais. Também aqui esse entendimento não pode
prosperar. A questão da limitação ao valor já estava prevista no art. 98, I, da
Constituição Federal que determina a criação dos Juizados Especiais e que se
encontra regulamentado nos arts. 3º, caput, 15 e 39 da lei supramencionada.
Ademais, conforme é sabido, em
princípio, as causas enumeradas no inc. II do art. 275 são, de um modo geral,
causas de menor complexidade.
Assim, ao aplicador da lei,
cumpre realizar uma interpretação teleológica do novo texto legal, como ainda
analisar o texto de forma sistemática, não só com outros dispositivos inseridos
na própria lei (arts. 3º c/c 15 e 39 da Lei n. 9.099/95), como ainda diante de
todo o sistema jurídico vigente, tendo por parâmetro maior a Constituição
Federal.”
(Procedimentos especiais cíveis :
legislação extravagante/ Cristiano Chaves Farias, Fredie Didier Jr.,
coordenadores – São Paulo : Saraiva, 2003, p. 477).
Igual posicionamento adota
o ilustre juiz aposentado e professor da Universidade de Santa Maria, Estado do
Rio Grande do sul, ALFEU BISAQUE PEREIRA, quando aduz:
Questão não menos polêmica vai se
estabelecer quanto ao valor máximo dos pedidos para definir a competência dos
juizados especiais cíveis.
Tratando da competência, o
legislador não foi muito feliz em definir o que seja causa cível de menor
complexidade.
Ao defini-la, estabeleceu três
critérios aparentemente distintos.
No inciso I, para as causas cujo
valor não exceda a quarenta vezes o salário mínimo estabeleceu a competência
apenas em razão do valor da causa;
No inciso II, para as causas
enumeradas no art. 275, II do CPC, fixou a competência em razão da matéria;
No inciso III, para as ações de
despejo para uso próprio e, portanto, também em razão da matéria, para, ao
final, no inciso IV, estabelecer a competência em razão da matéria e do valor
para as possessórias sobre bens imóveis de valor não excedente a 40 vezes o
valor do salário mínimo. Portanto, critério diverso do inc. I que se refere ao
valor da causa, o que nem sempre é igual ao valor do bem, especialmente em
possessórias onde há divergência quanto ao que se deve considerar como sendo o
valor da causa.
A questão que se coloca, como a
mais relevante, dentre outras também polêmicas, é a de saber se quando o
legislador, ao tratar da competência em razão da matéria, dispensou o limite de
alçada dos juizados especiais cíveis. Ou seja, as hipóteses elencadas no inc.
II e III não estão sujeitas ao limite de 40 vezes o valor do salário mínimo?
Os autores têm sustentado que
apenas a matéria é limitadora da competência. Assim, seria possível aforar pedido
de reparação de danos materiais e morais decorrentes de acidente de trânsito,
por exemplo, em que a soma chegasse a R$ 150.000,00, por hipótese.
Várias razões justificam a
impossibilidade dessa interpretação, a meu sentir.
Inicialmente é preciso atentar
para a razão da própria existência deste procedimento, a partir dos anteriores
juizados especiais de pequenas causas.
Quando imaginados e implantados
os primeiros procedimentos, mesmo os extrajudiciais na Comarca de Rio Grande de
onde tudo começou, pretendia atender à s demandas reprimidas,
compreendidas estas como as que, em razão da significação econômica pouco
expressiva, não justificavam o procedimento tradicional.
Sob este fundamento se espalharam
os juizados com a idéia de que essas contendas fossem trazidas a juízo e
resultassem em composição. Disso decorreram algumas conseqüências, entre as
quais a dispensa de assistência de advogados, informalidade do pedido,
limitação dos meios de prova, etc. sendo significativa para a conclusão que se
pretende a isenção de custas.
Como se tratavam de demandas sem
maior expressão, as custas seriam dispensadas, como continuam sendo, ex vi do
art. 54 da L. 9.099/95. Assim, seria um estímulo às partes para que viessem a
juízo compor seus litígios.
Essa mesma característica foi
mantida pela nova lei, como, aliás, acentua a exposição de motivos subscrita
pelo Min. NELSON JOBIM.
A par disso, quando o inc. II
menciona as causas enumeradas no art. 275, II do CPC, não repete o mandamento
daquele dispositivo que acrescenta: nas causas qualquer que seja o valor;
Portanto, o legislador de 1973
estabeleceu o elenco de matérias inseridas no procedimento sumário, como fez o
de 1995, mas excluindo qualquer limite de valores, o que não foi feito agora e,
entendo, nem poderia, dada a finalidade e princípios norteadores dos juizados
cíveis.
Mas não é só por isso que a
competência sempre estará limitada ao valor da causa, ou do bem pretendido.
Quando o art. 15, inserto na
seção V - que trata da instauração do processo, dos requisitos da petição
inicial, etc. estabelece que os pedidos mencionados no art. 3º desta lei
poderão ser alternativos ou cumulados; nesta última hipótese, desde que conexos
e a soma não ultrapassse o limite fixado naquele dispositivo, não exclui nenhum
dos incisos do art. 3º. Logo, no exemplo antes citado, o pedido de reparação de
danos materiais e morais, mesmo elencado entre os que compõe o inc. II do art.
275 do CPC, em sede de juizados especiais deve se limitar ao valor de alçada
estabelecido na lei especial.
Ainda com o mesmo exemplo, não há
como compatibilizar um pedido de reparação no valor de R$ 150.000,00 com a
regra do art. 3º § 3º que estabelece a
renúncia do que exceder o limite fixado no art. 3º, não havendo, a exemplo do
art. 15, qualquer referência à exceção.
No mesmo sentido, para confirmar
o propósit1o do legislador em limitar a um certo valor todo e qualquer pedido,
determina o art. 39 a ineficácia da sentença que exceder a alçada estabelecida
nesta lei. Qual é a alçada instituída nesta lei? Claro está que é o valor
fixado pelo art. 3º, não estabelecendo, também, o art. 39 qualquer exceção.
Poderia ser argumentado que esse
limite se refere apenas para os pedidos de créditos, ou pedidos de condenação
em dinheiro, e que para os demais, quando o bem da vida não é propriamente um
crédito pecuniário, esse limite não existiria.
Entretanto, não há como imaginar
que para algumas espécies de pedidos constantes do inc. II haja limite e para
outros este seja ilimitado, especialmente porque todos os quatro incisos dizem
respeito ao art. 3º que demonstra como se conceitua causa cível de menor
complexidade. Mesmo tratando o inc. II de competência em razão da matéria, esta
se encontra limitada ao valor de alçada do juizado, conforme se verifica não só
do art. 3º, mas também do art. 15, do art. 39, do § 3º do mesmo art. 3º e de
todo o sistema.
Esse mesmo sistema também limitou
expressamente as execuções de títulos extrajudiciais no art. 53 ao valor de
alçada, não o fazendo quanto aos títulos judiciais, porque a própria lei já
determina a ineficácia do que exceder ao valor e autoriza a execução de valor
superior ao de alçada, quando decorrente de conciliação - art. 3º § 3º última
parte ou quando homologado acordo extrajudicial de qualquer natureza ou valor -
art. 57.
Portanto, quando o sistema
autoriza valor superior a alçada, expressamente consigna, tendo o art. 57 sido
expresso em mencionar qualquer natureza ou valor. Logo, aqui é exceção à
regra do art. 3º que é a regra geral.
Há mais uma evidência desse
limite, seja de natureza patrimonial ou não o pedido.
Imaginemos um pedido de
condenação em obrigação de fazer, por exemplo, que consista em restabelecer
servidão de caminho entre duas propriedades rurais, sendo o prédio dominante
utilizado para o plantio de 1.000 quadras de arroz.
Essa espécie de pedido está
elencada no inc. II e, para os que sustentam não estar limitado ao valor,
porque apenas competência em razão da matéria, seria possível, independente do
valor da causa, receber para processo e julgamento nos juizados especiais.
Instruído o feito e julgado
procedente o pedido, em sede de execução há inadimplemento, o que determina a
transformação da condenação em perdas e danos que devidamente comprovadas
alcançam o valor de uma safra anual de 1.000 quadras de arroz. Aproximadamente
200.000 sacas de arroz a um preço de hoje de R$ 7,00 a saca, o que alcançaria
R$ 1.400.000,00 depois do que se seguiria a execução por quantia certa, na
forma do art. 52, V da lei em estudo.
Sabe-se que nenhuma condenação
pode ultrapassar o valor de alçada porque o excedente é ineficaz. A própria lei
estabelece quando esse limite pode ser ultrapassado, fixando que apenas quando
se tratar de transação - art. 3º § 3º última parte, ou quando for homologado
judicialmente acordo extrajudicial de qualquer valor ou natureza - art. 57.
Sendo assim, não é possível
imaginar que o devedor se submeta a uma execução, como a do exemplo, em sede de
ajuizado quando o procedimento não autoriza valores superiores ao estabelecido na
lei.
Some-se a todas essas evidências,
as circunstâncias de que o Estado estaria impedido de receber custas por ações
com esses valores e os profissionais advogados impedidos de receberem
honorários advocatícios, que na hipótese elencada somariam R$ 140.000,00 se
fixados no mínimo legal.
Seguramente não foi para isso que
os juizados especiais foram criados, implantados e desejados por toda a
sociedade.
Assim, entendo como melhor
interpretação quanto às s matérias em exame, o entendimento de que o procedimento
continua sendo uma faculdade de escolha por parte do autor para os pedidos
autorizados pela L. 9.099/95, desde que limitados ao valor da causa em 40 vezes
do valor do salário mínimo para todas as hipóteses, salvo se decorrentes de
transação ou homologação de acordo extrajudicial de qualquer valor ou natureza,
quando estará autorizado, para a execução, valores superiores ao que determina
a lei como sendo o limite de alçada dos juizados cíveis.
(PEREIRA,
Alfeu Bisaque. Juizados Especiais Cíveis: uma escolha do autor em demandas
limitadas pelo valor do pedido ou da causa. Site do Curso de Direito da UFSM.
Santa Maria-RS. Disponível em:
www.ufsm.br/direito/artigos/processo-civil/jec.htm.
Acesso
em: 14.OUT.2005).
Por último, o não menos
brilhante e conceituado comentarista da lei dos juizados especiais JOEL DIAS
FIGUEIRA JÚNIOR ministra, com a propriedade de haver produzido a obra de maior
aceitação da comunidade jurídica sobre a matéria:
“Polemizou-se na doutrina e nos
tribunais a questão da limitação do valor da causa para as matérias elencadas
no art. 3º, inc. II, da Lei 9.099/95 que correspondem, em outros termos, ao rol
das demandas insculpidas no art. 275, II, do CPC, isto é, as causas que se
inserem no novo procedimento sumário.
Quando escrevemos a primeira
edição destes Comentários (publicação de novembro/95) não tivemos qualquer
dúvida em afirmar categoricamente que as demandas referidas ficavam limitadas a
quarenta salários mínimos, ressalvada a hipótese de renúncia ao crédito
excedente.”
(Comentários à Lei dos Juizados
Especiais Cíveis e Criminais, 3ª. ed. rev.atual. e ampl.- São Paulo : Editora
Revista dos Tribunais, 2000, p. 99).
Esclarece, ainda, o
renomado jurista que quatro pontos centrais são tomados como referência pelos
defensores da tese contrária, quais sejam: 1) a competência é absoluta em razão
da matéria; 2) onde o legislador quis limitar o valor da causa assim o fez
(art. 3º, IV e § 1º, II); 3) a limitação contida no § 3º do art. 3º, diz
respeito tão somente ao inc.I do mesmo dispositivo) e 4) as causas enumeradas
no art. 275,II, do CPC, não encontram limitação de valor.
Após discorrer e rechaçar
os argumentos sobre cada uma delas, especialmente sobre a última, isto é, a
limitação do valor da causa, assentou:
“Se é exato que o legislador
negligenciou a redação do art. 3º, por outro lado, também não é menos
verdadeiro que a sua intenção era apenas aludir às demandas enumeradas nas
alíneas contidas no inc. II, do art. 275, que representam, ao menos em
princípio, causas de menor complexidade. A limitação de valor já estava
implicitamente inserida na Constituição Federal, art. 98, inc. I e § 3º, do
art. 3º e nos arts. 15 e 39.
Reforçando o nosso entendimento,
encontramos também a matéria sumulada pelo Colégio Recursal gaúcho, sediado em
Porto Alegre, cujo teor da orientação é o seguinte:
“Competência do JEC – mesmo as causas cíveis
enumeradas no art. 275, quando de valor superior a quarenta salários mínimos,
não podem ser propostas perante o Juizado Especial.” (Súmula 11), ressalvada,
obviamente, a renúncia ao crédito excedente.
No mesmo diapasão, a orientação
fixada pelo Colégio Recursal de São Bernardo do Campo, ao assinalar que “se não
houve conciliação entre as partes para a superação do limite de quarenta vezes
o salário mínimo, única exceção a permitir inobservância de quantum nas causas
de competência dos Juizados Especiais Cíveis, não é plausível supor que a mera
menção às ações do art. 275, II, do CPC, destacada pelo legislador neste
âmbito, tivesse, a exemplo da legislação processual civil, o condão de
autorizar fosse contornado o teto máximo explicitado na lei especial”.
Como dissemos alhures, o
legislador utilizou-se dos critérios quantitativo e qualitativo de forma
híbrida e não alternadamente. Mesclou-se valor não muito elevado com matéria
fatual de menor complexidade. Assim como o sistema processual comum do CPC
admite a opção de ritos (arts. 292, incs. II e III e § 2º), o mesmo se verifica
na Lei dos Juizados Especiais. (Ob.cit.p.104).
Mais adiante, arremata:
“A vontade
da lei e do legislador nunca convergiram no sentido de admitir a tese contrária
à que defendemos. Inversamente, sua preocupação sempre esteve voltada à
manutenção do equilíbrio entre os critérios quantitativo e qualitativo, a ponto
de formar de maneira híbrida o conceito de menor complexidade. Essa, portanto,
é a interpretação teleológica que se retira do texto em exame e,
sistematicamente, do inc. I, do art. 98 da Lei Maior.”
(Idem, p. 105).
E aponta, em defesa de sua
tese, dentre tantos outros, os seguintes doutrinadores: Humberto Theodoro Jr.,
Curso de Direito Processual Civil, vol. III, p. 470/471, nos. 1.579 e 1.580;
Cândido Rangel Dinamarco, Tribuna da Magistratura, Caderno de Doutrina, p. 5/6.
n. 3, de maio/96: “Os Juizados Especiais e os fantasmas que os assombram”;
Sérgio Bermudes, A reforma do CPC, 2ª. ed. p. 33/34; Paulo Lúcio Nogueira,
Juizados Especiais Cíveis e Criminais, p. 11; Donaldo Armelin, Conferência
proferida na USP, em março/96; João B. Lopes, Repertório IOB de Jurisprudência,
n. 24, 2ª. Quinz./dez-96, p. 387, “Juizados Especiais, etc.
Também perfilho do mesmo
entendimento dessa expressiva plêiade de renomados juristas.
Com efeito, o juizado
especial não foi criado para substituir a justiça comum nem concorrer com ela.
Antes de mais nada, veio a
lume como instrumento de cidadania no bojo da Constituição Federal de 1988, a
chamada Constituição Cidadã. Por isso, a princípio, apenas pessoas físicas,
maiores e capazes, podiam dela utilizar-se.
Lamentavelmente, já se
abriu a possibilidade para entes despersonalizados e, pior, permitiu-se a
inclusão das micro-empresas como autoras, o que, segundo alguns juristas,
transforma o juizado em verdadeiro balcão de cobranças mercantis.
Portanto, torna-se
necessário e até mesmo imprescindível que se mantenha o limite de sua alçada em
quarenta salários mínimos, valor que já é maior do que os juizados congêneres
em muitos países, como Estados Unidos, de onde veio a idéia.
É preciso lembrar que a
experiência exitosa dos juizados especiais cíveis inspirou os juizados cíveis
federais.
Neles o legislador, através
da Lei 10.259, de 12.07.2001 foi mais cuidadoso, estabelecendo de forma clara e
induvidosa a sua competência e o limite de alçada, dispondo:
Art. 3o Compete ao Juizado Especial
Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça
Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas
sentenças.
Assim, fica
demonstrado sem sombra de dúvida que os juizados especiais destinam-se a apreciar
determinadas causas dentro de certos limites que, a meu ver, não podem ser
ultrapassados por interpretações equivocadas, ainda que decorrentes de redação
inadequada do legislador.
Não se pode permitir que
seja desvirtuada a finalidade precípua da criação dos juizados especiais:
cuidar de causas de menor complexidade e de valor limitado.
A continuar assim,
incorporando mudanças, caminhará celeremente no sentido de sua completa desfiguração.
Se a isso somarmos a
dificuldade de sua ampliação, considerando-se a escassez de recursos humanos e
materiais disponíveis, muito em breve os juizados poderão se tornar tão ineficazes
e morosos como a justiça comum.
Isso seria mais uma grande
frustração para o povo brasileiro já tão desencantado com suas instituições.
Em face do exposto e
desnecessárias outras tantas considerações, nego provimento ao recurso.
Sem ônus sucumbenciais, vez
que não houve contra-razões.
É
como voto.
EM TEMPO:
Nesse mesmo sentido decidiu o Superior Tribunal de JUstiça, através de sua
Quarta Turma, no julgamento do RMS 33155-MA, sob relatoria da ministra Maria
Isabel Gallotti, cuja publicação se deu no DJe de 29/08/2011, restando assim
ementado:
Ementa
PROCESSO CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. JUIZADO ESPECIAL.
COMPETÊNCIA. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. MULTA COMINATÓRIA. ALÇADA. LEI
9.099/1995. RECURSO PROVIDO.
1. A jurisprudência do STJ admite a impetração de mandado
de segurança para que o Tribunal de Justiça exerça o controle da competência
dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, vedada a análise do mérito do
processo subjacente.
2. Dispõe o art. 3º, § 1º, inciso I, da Lei 9.099/95, que
compete ao Juizado Especial promover a "execução dos seus julgados",
não fazendo o referido dispositivo legal restrição ao valor máximo do título, o
que não seria mesmo necessário, uma vez que o art. 39 da mesma lei estabelece
ser "ineficaz a sentença condenatória na parte em que exceder a alçada
estabelecida nesta lei".
3. O valor da alçada é de quarenta salários mínimos
calculados na data da propositura da ação. Se, quando da execução, o título
ostentar valor superior, em decorrência de encargos posteriores ao ajuizamento
(correção monetária, juros e ônus da sucumbência), tal circunstância não
alterará a competência para a execução e nem implicará a renúncia aos
acessórios e consectários da obrigação reconhecida pelo título.
4. Tratando-se de obrigação de fazer, cujo cumprimento é
imposto sob pena de multa diária, a incidir após a intimação pessoal do devedor
para o seu adimplemento, o excesso em relação à alçada somente é verificável na
fase de execução, donde a impossibilidade de controle da competência do Juizado
na fase de conhecimento, afastando-se, portanto, a alegada preclusão. Controle
passível de ser exercido, portanto, por meio de mandado de segurança perante o
Tribunal de Justiça, na fase de execução.
5. A interpretação sistemática dos dispositivos da Lei
9.099/95 conduz à limitação da competência do Juizado Especial para cominar - e
executar - multas coercitivas (art. 52, inciso V) em valores consentâneos com a
alçada respectiva. Se a obrigação é tida pelo autor, no momento da opção pela
via do Juizado Especial, como de "baixa complexidade" a demora em seu
cumprimento não deve resultar em execução, a título de multa isoladamente
considerada, de valor superior ao da alçada.
6. O valor da multa cominatória não faz coisa julgada
material, podendo ser revisto, a qualquer momento, caso se revele insuficiente
ou excessivo (CPC, art. 461, § 6º). Redução do valor executado a título de
multa ao limite de quarenta salários mínimos.
7. Recurso provido.